Meninas iranianas mortas por recusa de véu e do canto de hino pró-regime
Asra Panahi, estudante iraniana de 16 anos, foi espancada até à morte, na sala de aula, pelas forças de segurança, no dia 12 de outubro, depois de se ter recusado a cantar um hino pró-regime.
Refere o The Guardian que a polícia invadiu uma sala de aula da Escola Secundária Shahed, exclusivamente feminina e situada na cidade de Ardebili, no Irão, para reprimir violentamente manifestações e exigir que um grupo de meninas cantasse um hino em que se elogia o líder supremo, o aiatola Ali Khamenei. E, como recusaram cantar, os polícias começaram a espancá-las, pelo que várias tiveram de ser transportadas para o hospital e outras foram presas. Asra Panahi, que também fora levada para o hospital, morreu no dia 14, na sequência dos ferimentos.
O caso provocou mais uma onda de protestos em todo o país, durante o fim de semana. Porém, as autoridades iranianas negam que tenham sido as ações das forças policiais que levaram à morte da jovem. E um homem identificado como tio de rapariga apareceu nos canais de televisão estatais a alegar que ela terá morrido na sequência de um problema cardíaco congénito.
A repressão nas escolas iranianas foi reforçada, naquela semana, quando surgiram, nas redes sociais, vídeos de alunas que se recusavam a usar o hijab (o véu tradicional muçulmano que cobre a cabeça e os ombros) e que gritavam “morte ao ditador”.
A 16 de outubro, o Sindicato dos Professores do Irão condenou, em comunicado, a intervenção das forças de segurança, apelidando-as de “brutais e desumanas” e sugerindo que o ministro da Educação, Yousef Nouri, se demita. O último relatório do grupo iraniano de Direitos Humanos, publicado no dia 17, assegura que 215 pessoas, incluindo 27 crianças, morreram durante os protestos que têm decorrido em todo o país.
O caso está longe de ser único. O Irão tem sido palco de manifestações em série desde a morte, em 16 de setembro, de Mahsa Amini, uma curda iraniana de 22 anos (alguns dizem 23 anos), sob escolta policial, após a sua detenção em Teerão pela polícia moralista, que a acusou de violar o código de indumentária da República Islâmica. Os protestos começaram na capital, mas espalharam-se pelo país e continuam mesmo em províncias distantes, apesar de as autoridades terem restringido o acesso à Internet e bloqueado aplicações como o WhatsApp e o Instagram.
“Os ‘media’ hostis à República Islâmica do Irão informaram que Sarina Ismailzadeh, natural de Karaj (capital da província de Alborz), foi morta pelas forças de segurança durante os protestos”, relataram as autoridades, mas acrescentaram que “os primeiros elementos da investigação” revelaram que a adolescente “cometeu suicídio”. Com efeito, na versão do procurador de Alborz, Hossein Fazeli Harikandi, a jovem saltou de um “edifício não muito longe da casa da sua avó, no distrito de Azimieh”. Nestes termos, o relatório forense conclui que “a morte se deveu ao choque causado pelo impacto da queda, além de vários ferimentos, fraturas e hemorragias”.
A justiça iraniana, já no dia 12 de outubro, negara a ligação entre a morte de outra jovem de 16 anos, Nika Shakarami, com os protestos no Irão. Segundo os familiares, morreu depois de participar numa manifestação, acusando as autoridades de terem assassinado a jovem.
A Amnistia Internacional (AI) denunciou, em 30 de setembro, que Sarina Ismaïlzadeh, uma jovem de 16 anos, “morreu após ser espancada na cabeça com cassetetes” da polícia, em 23 de setembro, durante uma manifestação na província de Alborz (noroeste). E um meio de comunicação oficial divulgou, no dia 14 de outubro, um pequeno vídeo da mãe de Sarina Ismaïlzadeh, no qual esta garante que a filha “não teve nada a ver” com as manifestações.
Segundo indicam os dados de várias organizações internacionais, dezenas de pessoas, sobretudo manifestantes, mas também membros das forças de segurança, foram mortas desde 16 de setembro, durante protestos descritos como motins pelas autoridades.
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No Irão, os maiores protestos das últimas décadas têm sido enquadrados por uma canção intitulada ‘Baraye’, cuja letra é feita de mensagens escritas no Twitter pelos participantes nas manifestações e que Shervin Hajipour, de 25 anos, musicou. A palavra ‘Baraye’ significa algo como “porque” ou “em nome de” e reúne muitas das motivações que têm levado os iranianos para as ruas. “Em nome de dançar nas ruas” é o primeiro verso, aludindo a uma atividade proibida no Irão. Seguem-se frases como “em nome de todas as vezes que tivemos medo de beijar os nossos amantes”, “por causa da vergonha de um bolso vazio” ou “em nome do desejo de uma vida normal”.
Na canção, Shervin Hajipour canta “em nome da minha irmã, da tua irmã, da nossa irmã”, referindo-se a Mahsa Amini, que terá sido morta por violar o código de vestuário das mulheres iranianas, e também “por causa dos escombros das casas mal construídas”, uma alusão a um edifício de dez andares que se desmoronou, em maio passado.
Como explicita o jornal Washington Post, a letra da canção evoca a corrupção, a censura, a discriminação de género, a degradação ambiental e as tragédias nacionais, tal como a iminente extinção da chita persa ou o abate de um avião de passageiros ucraniano em 2020, que o Governo iraniano considerou um incidente militar. A canção termina com a deixa “em nome das mulheres, da vida, da liberdade”. E Shervin Hajipour partilhou a canção no seu Instagram, em finais de setembro, alcançando rapidamente mais de 40 milhões de visualizações. Entretanto, o músico foi detido e a canção retirada do site, mas continua a ser partilhada por toda a Internet e nas ruas do país. Depois, o artista foi libertado, mediante pagamento de fiança, tendo agradecido, nas redes sociais, aos seus seguidores e professando o seu amor pelo Irão, mensagem que alguns suspeitam ter sido escrita a mando das autoridades.
Os protestos pela morte de Mahsa Amini aprofundaram o descontentamento em relação à necessidade de existir uma polícia da moralidade, destinada a zelar pelo cumprimento do rígido código de vestuário no Irão, onde as mulheres devem cobrir os seus cabelos e não é permitido usar roupas curtas nem apertadas, entre outras proibições.
Os cidadãos, para lá da repressão e da violência generalizada, protagonizadas pela polícia da moralidade, e das mortes referidas, põem a nu, agora, o aumento significativo das restrições sociais e do desemprego e a subida dos preços dos bens de primeira necessidade; e revoltam-se agora também contra a pobreza, contra repressão e contra a violação dos direitos humanos.
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O líder supremo iraniano, após longas semanas de silêncio sobre os maiores protestos no Irão em anos, veio a terreiro, a 3 de outubro, para condenar os “tumultos” e responsabilizar os Estados Unidos da América (EUA) e Israel pela contestação e pelas manifestações. Descreveu a morte de Mahsa Amini, sob custódia da polícia da moralidade do Irão, o que desencadeou os protestos em todo o país, como “um triste incidente” que deixou todos os iranianos com o coração partido.
Mahsa Amini, originária do Curdistão (noroeste), foi detida pela polícia da moralidade, a 13 de setembro em Teerão, por “vestir roupas inadequadas”, tendo morrido três dias depois num hospital, estando ainda sob custódia policial.
O aiatola Ali Khamenei afirmou que a morte de Amini foi aproveitada por terceiros para conspirar e desestabilizar o regime, tal como já tinha afirmado, no dia 2 de outubro, o presidente da República Islâmica, Ebrahim Raisi, que acusou os “inimigos” do Irão de “conspiração”, dizendo que falharam na tentativa de manipular os protestos contra o Governo. Na verdade, desta feita, Khamenei garantiu a um grupo de estudantes da academia de polícia em Teerão: “Esses tumultos e protestos que causaram insegurança foram planeados pelos Estados Unidos e pelo regime sionista e os seus funcionários. Tais ações não são normais, não são naturais.”
As declarações de Khamenei surgiram na altura que os protestos iniciados após a morte de Mahsa Amini se alastraram a todo o país e continuam apesar dos esforços do Governo para os reprimir.
As autoridades iranianas têm repetidamente culpado países estrangeiros e grupos de oposição exilados pela escalada dos protestos e manifestações, mas sem apresentar provas. Para os opositores, que acusam a polícia da moralidade de abuso de poder e do uso de força excessiva, as atribuições da instituição podem ser garantidas pela polícia nacional.
Entretanto, a 18 de outubro, a atleta iraniana Elnaz Rekabi, de 33 anos, terá sido obrigada a regressar ao Irão e detida. Ter-lhe-ão confiscado o telemóvel e o passaporte e tê-la-ão encerrado em prisão de presos políticos, após ter participado sem véu no campeonato asiático de escalada, na Coreia do Sul.
Com efeito, após usar um hijab, nas primeiras eliminatórias do campeonato, competiu de cabelo solto na final, em que obteve a medalha de bronze. O gesto foi visto como uma demonstração de apoio às mulheres iranianas, que protestam, há um mês, contra a obrigatoriedade do uso do hijab, após a morte de Mahsa Amini. Porém, as autoridades iranianas negam tal detenção ou mesmo a obrigação de regresso ao país. Não era de esperar outra coisa!
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Enfim, as pessoas, sobretudo as mulheres, são presas e até assassinadas por se calarem e por falarem, por não cantarem e por cantarem, por andarem semidestapadas. As escolas são apenas masculinas ou femininas. Não sei como vivem em casa. A religião e a política confundem-se e misturam-se. Tudo isto é o resultado do fundamentalismo (político e/ou religioso). É-se preso por ter cão e por não o ter. A culpa é dos outros. Crê-se que estas movimentações induzam a mudança de regime. Teremos os efeitos das “primaveras árabes”? Mas direitos iguais exigem-se!
20/10/2022