Mercantilização da medicina: crónica de uma experiência pessoal
Como portador de doença coronária, vulgo “angina de peito”, de há uma vintena anos a esta parte, venho beneficiando do muito bom acompanhamento, por cardiologistas competentes que, regularmente (mais ou menos, de seis em seis meses), me têm seguido, prescrevendo os exames que se aconselham e a medicação adequada.
O último destes profissionais é uma jovem médica de um hospital privado (a ADSE – Instituto de Proteção e Assistência na Doença permite-me fazê-lo em condições de preço bastante acessíveis) que tem continuado esta rotina, ao estilo e ao ritmo próprios da mercantilização do acto médico, que é, em teoria, reprovada pelo Código de Ética Médica. Mas, na prática, é a que existe nos hospitais privados, com administrações e accionistas naturalmente interessados no lucro.
Em menos de meia hora, esta doutora, delicadamente, embora quase sem falar comigo, cumpre, e bem, diga-se, as suas obrigações contratuais com a entidade que lhe paga o salário. Observa os exames que me prescreveu na consulta anterior, sempre calada, de olhos fixos no monitor e mãos a dedilharem no teclado. Ausculta-me com o estetoscópio, mede-me a tenção arterial e só me diz os valores se eu lhos perguntar. Uma vez mais, calada, dedilhando no teclado, prescreve os exames a fazer e a medicamentação habitual. Posto isto, levanta-se e, com um sorriso distante, estende-me a mão e abre-me a porta do consultório. E… até daqui a seis meses. O sistema funciona, mas, tristemente desumanizado, afastado de valores essenciais à vida em sociedade, como o afecto ou o carinho, tão apreciados nestas ocasiões.
À semelhança de muitos dos seus colegas, quando se me dirige, ela, uma jovem e eu um velho com mais de 90 anos, trata-me por você. Fui educado a não cometer essa deselegância, face e um desconhecido, sobretudo, se esse desconhecido for pessoa mais velha. Não aprecio ser tratado assim por pessoas de estatuto social elevado, como são, por exemplo, os juízes e os médicos, no exercício das respectivas funções, principalmente, quando mais novos do que eu. Aceito-o perfeitamente se o “você” vier da boca de pessoa de mais baixo estatuto sociocultural, como, por exemplo, o caixeiro da drogaria, o amola-tesouras que passa na rua ou a senhora da limpeza.
O doente é, via de regra, uma pessoa diminuída física e emocionalmente. Precisa que lhe cuidem do corpo e, quanto a isso, não há nada a dizer, mas também precisa (tantas vezes, muito) de amparo e de conforto psicológico. Salvo as pouquíssimas excepções, que sempre as há, os médicos e as médicas que me têm assistido trataram-me e tratam-me, não como uma pessoa inteira, de corpo e alma, a necessitar de ajuda, mas, sim e apenas, como um corpo material, a pedir tratamento. Executam, e muito bem, essa parte que lhes diz respeito, como bons profissionais, tal como um bom mecânico automóvel executa o seu trabalho na sua oficina. Pouco ou nada lhes interesso como pessoa. Não estabelecem qualquer diálogo de aproximação comigo, um seu doente. Agem como robôs guiados por inteligência artificial. Não têm tempo nem disponibilidade para mais. Para eles, sou, apenas, mais um “senhor António”.
Por uma questão de segurança, para, em caso de necessidade, a poder contactar, pedi a esta minha cardiologista, logo na primeira consulta, o número do seu telefone, mas ela não mo facultou. Delicadamente, preferiu dar-me o seu e-mail. Acontece que, em começos de Dezembro, neste último, comecei a sentir-me particularmente cansado. O próximo exame (ecocardiograma com Doppler) e a subsequente consulta só estavam agendadas para meados de Janeiro. Não podendo contactá-la, a pedir orientação, recorri à Urgência do hospital, no dia 9 de Dezembro, do que resultou a necessidade de antecipar os ditos exames e a consulta.
Em resultado, foi-me diagnosticado uma estenose aórtica grave e o subsequente encaminhamento urgente para o cirurgião cardiovascular. Foi assim que a 5 de Janeiro recebi a implantação percutânea de uma válvula artificial, em substituição da minha, que estava já demasiado fechada.
Seguiram-se 24 horas em cuidados intensivos, mais três infindáveis dias e noites de internamento. Aqui, como no consultório, nada falta ao tratamento do corpo, mas tudo falta ao conforto da alma. Médicos, apareceu-me um, muito fugazmente, ao fim da tarde do segundo dia de internamento, sem tempo para conversar; e o que me operou, ao fim do último dia, apenas para me entregar o documento da alta. Não tive, sequer, visita da minha cardiologista (a trabalhar no mesmo hospital), a que me encaminhou, e bem, para esta cirurgia que me permitiu voltar à vida.
A versão de 2017, do juramento médico (Juramento de Hipócrates), creio que, actualmente, usada em Portugal, diz, num dos seus preceitos: “A saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações.”
.
07/03/2024