Mestre-escravo
A extraordinária capacidade dos seres humanos para idealizar, desenvolver e utilizar ferramentas e tecnologias está na base de todas as civilizações, impérios e sociedades. No passado, o domínio de diversas tecnologias determinou o destino de povos e de nações e, em última análise, a própria História da Humanidade. Poder-se-ia pensar que tudo isso já passou, que a História é história e está morta e enterrada. Mas, se a experiência nos ensinou algo, a História é tudo menos passado que se repete incessantemente. Pelo simples facto de que quem a faz são as pessoas. E essas, por muito sofisticadas que sejam – desenvolvidas ou não, ricas ou pobres, cultas ou incultas – têm instintos, desejos, sentimentos e comportamentos que permanecem inalterados, esculpidos nos genes, passando de geração em geração, resistindo teimosamente ao passar do tempo.
Nos nossos dias, as ferramentas de que dispomos recorrem, cada vez mais, às tecnologias da informação e comunicação (TIC). Sem estas tecnologias, o nosso mundo deixaria de funcionar e a sociedade retrocederia para uma situação que já não seria sustentável. Nenhuma área de atividade permaneceria inalterada, muitas empresas entrariam em falência e desapareceriam, a riqueza de pessoas e de países desvanecer-se-ia, o caos instalar-se-ia, as guerras despontariam por toda a parte. As TIC são, por isso, essenciais a nível profissional, social, político e também, não o esqueçamos, a nível pessoal.
Que todo o tipo de empresas e entidades recorram às tecnologias da informação e comunicação para funcionarem mais eficientemente, bem como para fornecerem novos e melhores bens e serviços, é algo que nos beneficia a todos. O mesmo não se pode dizer quando reduzimos as nossas vidas, no plano pessoal, à utilização das TIC, conferindo-lhes o estatuto de fim e não de meio.
Façamos uma experiência e tentemos viver 48 horas – digamos, 24 horas apenas – sem a utilização direta das TIC. Digo “utilização direta” porque, indiretamente, as TIC já se encontram por detrás de tudo o que fazemos, experimentamos, consumimos e vemos, sendo impossível não as utilizar. É uma experiência que, digo já, está condenada ao fracasso para uma elevadíssima percentagem da população, mas não há nada como tentá-la para percebermos o nível de dependência a que chegámos.
É por isso que são inúmeras as iniciativas que visam levar as pessoas a entender que se, por um lado, as TIC são incontornáveis e indispensáveis, por outro, não podemos chegar a um ponto de dependência compulsiva, viciante, doentia. Infelizmente, a julgar pelo que se vê em todo o lado, seja nos transportes, na rua, em casa, nas cidades, no campo, esse vício atingiu níveis de pandemia, afetando irremediavelmente a nossa forma de interagir com os outros e com o mundo que nos rodeia, o qual, para muitos, se reduz ao que veem num ecrã de telemóvel.
Como em quase tudo, temos de encontrar um equilíbrio entre a utilidade e a sanidade. Quando usamos as TIC para facilitar a nossa vida e atingir, de forma mais eficaz, os objetivos pretendidos, ou seja, quando utilizamos as TIC como ferramenta controlada por nós, estamos no bom caminho. Já quando vivemos para as TIC e quando são as tecnologias que ditam o que fazemos, privando-nos do contacto com os nossos semelhantes, impedindo-nos de ver e de desfrutar a vida e o Mundo, deixamos de ser o mestre que usa a ferramenta e passamos a ser o escravo que faz aquilo que lhe permitem.
Cabe a cada um de nós decidir – se tal ainda for possível – se queremos ser livres para decidir o que fazer e como fazer, se queremos abdicar da privacidade e do livre-arbítrio, se queremos controlar ou ser controlados, ou seja, se queremos ser mestres ou escravos.
.
13/05/2024