Mineiros e o teatro documental

(Créditos fotográficos: João Tuna – TNSJ)
O teatro documental é definido por Patrice Pavis, no seu “Dicionário do Teatro” (edição de 2005, página 387), como: “Teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, sele[c]cionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo.”
Por sua vez, David Giordano, no seu “Breve ensaio sobre o conceito de Teatro Documentário”, seguindo o pensamento de Patrice Pavis, reconhece que “o termo se origina de uma dramaturgia associada a uma ideia documental, partindo para isso de documentos e de como estes últimos se relacionam com a encenação, a estética e a poética do espetáculo”. Logo, para si, “o Teatro Documentário se distingue particularmente por apresentar uma dramaturgia documentária que faz uso da reutilização de fontes e documentos históricos”.

Ainda que com maior produção e projecção no século XX, as origens do teatro documental remontam às experiências dramatúrgicas de autores do século XIX, como Georg Büchner (1813-1837) e nas propostas naturalistas de Émile Zola (1840-1902), em que já se evidencia a “inserção do real em cena”. Das três obras dramáticas de Büchner, duas delas são de referências reais/históricas, como “A Morte de Danton” e/ou sociais como o “Woyzeck”, uma das minhas favoritas. Ficando de fora a bela fábula amorosa de “Leôncio e Lena”, separados por uma frágil linha de horizonte onde confinam o Reino Popo (do príncipe Leôncio) do Reino Pipi (da princesa Lena). Também a sua novela fragmentada “Lenz” tem referências históricas e documentais.
Mas será com o autor Peter Weiss que o conceito de teatro documental ganha mais força e expressão. Das suas peças destacamos “Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat representado pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade”, mais conhecida como “Marat/Sade”, datada de 1964, a qual teve um grande êxito mundialmente. E também “O Interrogatório, Oratório em 11 Cantos” (“Die Ermittlung, Oratorium in 11 Gesängen”), peça de 1965, o qual relata o processo que julgou os criminosos de guerra de Auschwitz.

Peter Weiss acompanhou o processo e visitou o campo de concentração nazista com os membros do tribunal. É de 1967 a sua peça musical política “O Canto do Fantoche Lusitano” (“Der Gesang von Lusitanischen Popanz”), um dos poucos textos dramáticos que se debruçaram sobre o colonialismo português e acerca das guerras das coloniais (ou do Ultramar). Lembro que, com os meus alunos, no Teatro Experimental do Porto, em 1975, realizámos uma encenação sobre este texto, sob a minha direcção e dramaturgia.
Recentemente, no Teatro Carlos Alberto/Teatro Nacional São João (TNSJ), assistimos ao espectáculo “Tribunal Mina” (em 2023), que a Companhia Hotel Europa apresenta como “uma obra sobre os problemas ambientais provocados pela deposição nas antigas galerias, da mina de carvão de São Pedro da Cova[,] em 2001, de toneladas de resíduos tóxicos provenientes da Siderurgia Nacional e ainda hoje não totalmente removidos”.
Segundo a mesma informação do TNSJ e da Companhia, este texto que compõe um díptico com o anterior “A Mina” (de 2022), “são duas peças que voltam agora à superfície e podem ser vistas separadamente, ou em conjunto numa sessão única”. “Como é habitual no seu trabalho, a Companhia Hotel Europa explora as possibilidades do teatro documental, recorrendo a ‘a[c]tores’ da comunidade local, e combinando as histórias pessoais dos mineiros e das suas famílias com diversos tipos de registos documentais. Num tempo em que se proje[c]tam novas minas, não de carvão, mas de lítio, é essencial conhecer estas histórias”, adianta a respectiva sinopse.

Como espectadores que somos, transformamo-nos em testemunhas e em juízes (na ausência destes), quando assistimos aos diferentes documentos e depoimentos apresentados durante a representação. Os intérpretes, de diversas gerações, são as vítimas e as testemunhas de um processo silencioso e fatal, quando se lembra dos efeitos nocivos que o chumbo – elemento químico presente, entre outros, nos resíduos – tem sobre a saúde humana.
André Amálio (que é co-director artístico, com Tereza Havlíčková), enquanto responsável pela dramaturgia e pela encenação, além de ser intérprete, chama-nos a atenção, na folha de sala, para o trabalho intergeracional deste projecto e da sua importância para a comunidade: “Depois de termos apresentado ‘A Mina’, o grupo de trabalho para a construção do ‘Tribunal Mina’ cresceu ainda mais, o número de jovens aumentou consideravelmente, durante os ensaios muitos iam descobrindo mais coisas sobre os seus familiares que tinham sido mineiros. Este proje[c]to acabou por ser uma enorme passagem de testemunho entre gerações, onde o legado da identidade mineira era transmitido pelos mais velhos. Um sentimento de pertença ligado ao trabalho duro e à sobrevivência. Lembro‑me, por exemplo, de a Maria Vicente comentar num ensaio: ‘Era um trabalho duro, mas era o nosso trabalho’.”
Estamos perante um teatro–tribunal para julgar os crimes de São Pedro da Cova, em que os participantes neste espectáculo são não-actores, mas habitantes desta localidade afectada pelos problemas ambientais criados pelo depósito de resíduos tóxicos da Siderurgia Nacional, nas minas de carvão. É, sem dúvida, um teatro incómodo, mas necessário!

Nasci numa cidade do Sul, muito próxima das minas de carvão de Lota (empresa Carbonífera Lota-Schwager), que é uma das principais reservas de carvão do Chile, junto da região de Valdívia e Magalhães. A sua exploração ocorreu desde o começo do século XIX até ao ano de 1997.
Visitar uma mina de carvão daquelas que se adentram debaixo do mar é uma experiência assustadora. Como foi assustadora a vida que tiveram de viver os mineiros da minha região. Assisti a um dos maiores acidentes mineiros na década de setenta que fez lembrar o trágico acontecimento similar provocado por gás grisu em Lota, no mês de Junho de 1947, que vitimou 17 mineiros e deixou uma dezena de feridos.

Da realidade mineira, das suas doenças e acerca da vida de sacrifício, ficaram-nos grandes relatos que, afortunadamente na minha época, eram leitura obrigatória, a exemplo de “El Chiflón del Diablo”, “Sub-terra” e “Sub-sole”, obras do autor chileno Baldomero Lillo (1867-1923). Através dos seus relatos, ficamos a conhecer o sofrimento humano dos mineiros da minha região. Sofrimento que estava tão próximo de nós geograficamente, mas socialmente tão afastado.
A este respeito, tenhamos em conta a opinião do narrador, poeta, ensaísta e professor universitário Fernando Alegria (1918-2005): “En manos de Baldomero Lillo el campo y los pueblos provincianos de Chile adquieren un sentido mágico de vida; mágico, digo, en su capacidad de sentir desorbitadamente, de ansiar, de sufrir, y de enfrentarse a la muerte fortalecidos por la esperanza de una justicia, de un amor, de una paz, que, en su perfección absoluta, alcanzan el significado de un absurdo sublime.”
.
15/02/2024