Monsanto e a inspiradora linguagem das pedras

 Monsanto e a inspiradora linguagem das pedras

Ei-lo! O cabeço. Irrompe abruptamente na paisagem. Do ponto mais alto do seu castelo templário, os meus olhos navegarão pela extensa campina, a perder de vista, divisando lugarejos dispersos, desde o sopé de Mons Sanctus, tocando o céu, aconchegando-se, inevitavelmente, na sua dimensão fantástica. Alcandorada no cabeço que se impõe ao olhar desde a maior parte dos horizontes, a aldeia histórica de Monsanto é um miradouro sem igual, abrindo-se à leitura da paisagem e convidando-nos à apreensão sensitiva do espaço envolvente. É um festim para os sentidos, uma vertigem para a emoção enlaçada com a razão.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

Estou quase lá. Já percorri os cerca de 25 quilómetros de distância a partir da vila de Idanha-a-Nova. Sei que, ao chegar, sentirei o deslumbramento da sua imponência e que me aguardam novas descobertas.

Foi sempre assim desde que, pela primeira vez, recebeu a minha visita e a minha paixão. O mergulho naquela encosta rochosa é uma viagem ao que julgo estar muito próximo do sobrenatural. A cada passo se desvelam mistérios, “estórias”, lendas, mitos e superstições que habitam sabiamente as gentes e se mesclam com monumentais penedos graníticos, guardadores do tempo, de formas difusas e extraordinárias.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

Com os enormes penedos, os seus habitantes foram – por causa das condições naturais e sociais, políticas, económicas e culturais – casando a necessidade e o engenho humanos com a alma da natureza, ímpar e profusa, conferindo a todo aquele espaço força e vivacidade, qual centro do mundo, onde o humano se encontra, quiçá pequeno, perante tamanha grandiosidade.

Há algo de mágico e de portentoso, algo desmedido, que nos suga para dentro de nós mesmos quando, paradoxalmente, olhamos o mundo, daquele lugar.

Recordo um fim de ano passado em Monsanto. Um capricho, pensei eu, do que se revelou ser uma experiência inesquecível. No último dia daquele ano, choveu amiúde. Habituada ao sol assolando as gigantescas pedras, dourando-as e acendendo-as durante o verão, não esperava que uma outra luz as pintasse de outra cor. Adentrei-me na noite, esquecendo o ano que findava e sem me aperceber do novo ano que, então, chegava. Caminhei, com uma interior exaltação, percorrendo os espaços e as veredas do íngreme cabeço, sempre acompanhada do luminoso cinzento das pedras molhadas pela água que caíra. Todo o lugar era, então, outro. Deixei-me conduzir e transportar para lá do tempo. De tão inspirador, Monsanto ofereceu-me o que buscava.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

Em Monsanto, não é possível ignorar o apelo das pedras graníticas. E, logo, encetamos um diálogo que interpela os nossos sentidos enquanto percorremos as vielas, por entre as casas, contemplando grutas e escarpas, num desafio constante à nossa capacidade de compreender e de sentir a sua linguagem.

A criatividade humana rasgou obstáculos e aliou-se às rochas. Entendeu essa linguagem. O resultado é uma fusão harmoniosa da natureza e dos seus acidentes geográficos com a acção do homem, dando tal ligação origem a singulares utilizações de grutas e de penedos, integralmente convertidos em peças de construção. As casas descobrem-se entre as pedras, que ora são chão ora são teto ou paredes. Falarão as pedras?

Terão alma (do latim anima, ae, sopro, ar, respiração, princípio vital) e poderes? Coisa estranha, a linguagem das pedras. Um desses poderes, sublime, digo-vos eu, é o de libertar a nossa imaginação, de despertar a resiliência e de transformar o infortúnio em ventura. A História é disto mesmo a melhor testemunha.

Não raro, das grutas emergem seres que povoam o imaginário dos Monsantinos e de quem os visita. Assim aconteceu ao longo dos séculos e se perpetuará no futuro.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

A aldeia histórica de Monsanto aninha-se, pois, na elevada encosta escarpada. Lugar muito antigo, propício a inusitadas descobertas, já o dissemos, nele se regista a presença humana desde o Paleolítico. Vestígios arqueológicos dão conta de um castro lusitano e da ocupação romana no denominado Campo de São Lourenço, no sopé do monte, que terá sido habitado pelos Bárbaros. Vestígios da permanência visigótica e árabe foram também encontrados.

Monsanto tem dois títulos atribuídos no século XX: o de “Aldeia mais portuguesa de Portugal”, em 1938, e o de “Aldeia Histórica”, em 1995.

Concederam-lhe foral Dom Afonso Henriques, Dom Sancho II e Dom Manuel.

Gualdim Pais, Grão-mestre da Ordem dos Templários, mandou construir o castelo de Monsanto em 1239, o qual se desenvolve no topo do cabeço, adaptado à morfologia do terreno, sendo a zona mais alta e inacessível, cujo acesso é feito pela “vila muralhada”.

Foi alvo de vários cercos ao longo dos tempos. Nas suas ruínas, encontramos a história de resistência e heroicidade de um povo.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

Escreveu o etnógrafo Jaime Lopes Dias: “Monsanto, o Monte Santo de beleza e heroísmo, vive igualmente na tradição do povo em lendas e costumes encantadores, cheios de poesia e religiosidade, bem dignos de serem perpetuados e registados para mais o elevarem no conceito geral de monumento grandioso da nossa Pátria” (in Etnografia da Beira, Vol. III, p. 18).

Há todo um mundo de fantasia e de fantástico no ancestral património cultural de Montem Sanctum, o qual constitui um tesouro que importa preservar para, assim, eternizar a sua identidade cultural.

De entre o vasto património cultural de Monsanto, sobressai a lenda do cerco ao castelo, também conhecida por lenda da Bezerra. Possuindo várias versões, foi recolhida por Jaime Lopes Dias, que a relata da seguinte forma:

Em volta do castelo estendia-se, havia anos, apertado cerco.

Da fortaleza destacavam-se guardas avançadas e vigias para as primeiras defesas.

Uma vez e outra, em noites escuras, alguns mais destemidos e conhecedores de todas as veredas e precipícios, iludindo a atenção do inimigo, escoavam-se através de refegos e ressaltos das rochas a haver fora mantimentos, que se não davam a abastança, chegavam em todo o caso para manter os heróicos defensores do castelo.

Mas a situação prolongava-se em demasia, a vigilância exterior aumentava e os sitiados já receavam pelo futuro.

Ao mesmo tempo, também os sitiantes, em face de tão prolongada e incrível resistência, começavam a ter como certo que na fortaleza havia subterrâneo ou comunicação invisível com o exterior.

Um dia, os monsantinos reconheceram que não podiam manter-se por mais tempo: tinham apenas uma vitela e meio alqueire de trigo…

A rendição? Nunca, porque jamais os moradores de Monsanto se entregaram sem luta!

Que fazer então?

Alguém opinou que se desse o trigo à vitela e depois esta se atirasse sobre os sitiantes que talvez assim se convencessem da abundância de víveres.

E, de facto, a vitela, depois de ter comido o meio alqueire de trigo e beber água a fartar, foi levada ao sítio mais alto da muralha e lançada sobre o campo dos inimigos.

Semimorta, agonizante, logo eles a abriram e esquartejaram.

E vendo que tinha no estômago, não digerida, boa porção de trigo, exclamaram: “Com carne fresca e cereal em tal abundância que até lhes chega para a alimentação do gado, não os venceremos.”

E levantaram o cerco.

(Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, Vol. III, pp. 19 e 20).

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Este acontecimento, como o conta a lenda, é, ainda hoje, anualmente comemorado pelos monsantinos, que sobem ao alto do castelo, cantando e dançando ao som dos adufes, exibindo as típicas bonecas de trapos denominadas “marafonas”, na celebração das festas da Divina Santa Cruz:

Ai! Ó divina Santa Cruz,

À vossa porta cheguei,

Tantos anjos me acompanhem

Como de passadas dei.

Uma das mulheres leva à cabeça um pote de barro, caiado de branco e enfeitado com flores. O pote é lançado do ponto mais alto das muralhas do castelo, normalmente, no dia 3 de maio. Os potes caiados de branco simbolizam a bezerra a as flores o trigo em abundância. “Lá vai o pote!”, grita-se, então.

(© Celeste de Almeida Gonçalves)

Cheguei ao ponto mais alto de Monsanto.

Sinto-me apaziguada. Como se tivesse chegado a um destino promissor.

Nas mãos, tenho uma marafona. Boneca sem olhos, sem boca, sem nariz nem ouvidos. Ligada à fertilidade, reminiscência de um antigo culto pagão, guardará segredos. Não contará nada do que viu e ouviu.

Misteriosa marafona.

A minha boneca é diferente das outras. Conta-me tudo.

Quantas vezes me sussura: “Inspiração, inspiração…”

07/07/2022

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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