Morto ou salvo pelos alfabetos

 Morto ou salvo pelos alfabetos

Antoine Merour (Unsplash)

Escrevo isto no Dia Mundial dos Refugiados. Actualmente, são 82 milhões as pessoas que perderam o direito a um lugar a que possam chamar seu. 82 milhões de pessoas que fogem da guerra e da pobreza extrema, da perseguição que resulta da diferença das suas ideias, da sua cultura, religião, cor de pele ou etnia — tudo aquilo a que um dos meus poetas, Robert Duncan, designava como os inventados “limites que impomos à nossa própria humanidade.”

Porque só há diferença no seio da nossa humanidade, é essa a razão que, de forma só aparentemente paradoxal, nos permite falar de igualdade. E contudo, mesmo ao nosso lado, continua a haver gente a perder a vida no Mediterrâneo. E, do outro lado desse mar, há pessoas forçadas a sair das suas casas para que entrem e delas tomem posse as forças ocupantes do seu território— as forças do estado que mais vezes desrespeitou as decisões das Nações Unidas e de um povo que se considera superior por acreditar ter sido escolhido pelo seu deus para ter um direito inalienável sobre aquele território. Mas o absurdo da “Real Politik” sobrepõe-se a tudo o resto, como me ensinam os meus colegas cientistas sociais ou políticos, e esquecem-se os ensinamentos que a História já nos deveria ter dado acerca das consequências de uma pretensa superioridade de um qualquer povo.

Sim, neste Dia Mundial dos Refugiados, não posso deixar de pensar em todos os palestinianos e palestinianas amontoados/as em campos de refugiados, ou espalhados um pouco por todo o mundo, e em todas as crianças que assim aprendem a odiar. Perante a injustiça e talvez pela força da poesia, tenho-me recordado muito, nos últimos tempos, de um acontecimento particularmente ilustrativo de como isso não deveria constituir uma inevitabilidade. Passados mais de 20 anos, acho que posso relatá-lo.

Em 1998, num dos primeiros Encontros Internacionais de Poetas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, estiveram como convidados os poetas Abdel Karim Sawabi, palestiniano então refugiado na Austrália, e Yitzhak Laor, israelita. Era uma decisão nossa, comissão organizadora, nunca convidarmos um representante de um desses países sem que também estivesse presente o representante do outro. Mais: decidíramos que ambos iriam sempre ler a sua poesia na mesma sessão e que, nesse ano, isso teria lugar num templo cristão, a igreja do Museu Machado de Castro.

Apesar de ter recebido o programa antecipadamente, Abdel Karim Sawabi só se deu conta quando chegou a Portugal de que estaria na mesma mesa de Yitzhak Laor — e fez-nos uma cena, afirmando que nunca se sentaria à mesa com um israelita e ameaçando não participar no evento. Já não me lembro dos detalhes, mas a presidente da organização, a Prof.ª Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, lá conseguiu, com toda a sua paciência e diplomacia, convencê-lo a estar presente na sessão, embora Sawabi continuasse a dizer que não iria ler poemas, antes optando por fazer uso da palavra para um protesto contra a situação na Palestina.

Escusado será dizer que todos/as nós, membros da comissão organizadora, estávamos incomodados/as e um pouco nervosos/as com a situação. E muito expectantes…

A sessão iniciou-se com o poeta palestiniano a sentar-se na ponta da mesa, o mais distante possível de Laor. Porém, quando chega a vez de Sawabi, o fio do microfone não é suficiente e simplesmente não chega à ponta da mesa, apesar de todos os nossos esforços. O poeta palestiniano já está em pé, disposto a começar mesmo sem microfone, quando se houve a voz do israelita, alto e em bom som, ecoando pela igreja: “Come, I give you my place!” (Vem, eu dou-te o meu lugar).

Fez-se um enorme silêncio. Só a organização conhecia exactamente a verdadeira amplitude do que estava a acontecer, mas o público tinha ouvido o significado político daquelas palavras.

Laor levantou-se e já dava a volta para se ir sentar na ponta da mesa, enquanto Sawabi permanecia parado, sem saber muito bem o que fazer. Quando finalmente se cruzou com o poeta israelita, os dois entreolharam-se… e o abraço aconteceu. Foi um dos momentos mais emotivos dos nossos Encontros de Poetas, com o aplauso do público, em pé, a ressoar pela igreja.

Ali, dois homens na nudez da sua humanidade — essa vida nua, de que nos fala Giorgio Agamben — a dar-nos uma verdadeira lição de vida: de filosofia e também de poética, na evidência de todos os artifícios contruídos pela linguagem e pelas crenças, políticas, religiosas ou outras, a que esta dá forma. Uma lição de verdadeira cidadania, que nos obriga a pôr em causa todo o entendimento daquilo a que, comummente e desde Kant, chamamos “cidadania” moderna.

Não conhecia Agamben na altura, mas hoje percebo que aquele foi talvez, avant-la-lettre, o momento em que a ideia de os refugiados se poderem constituir como uma vanguarda de toda a humanidade começou a fazer sentido para mim. Afinal, se só existe o não-lugar, tudo passa a ser o lugar de todos/as. Assim, como Agamben e Duncan querem, sem fronteiras, sem posse, sem limites, restam o bem e as necessidades de todos/as os/as cidadãos e cidadãs do mundo — a vida nua, neste lugar azul a mover-se pelo infinito lugar do universo.

Sawabi fez o seu protesto e leu o seu poema, que dizia:


[…]
Quando abri o frasco da tinta
E fitei a tinta
Encontrei um génio adormecido lá dentro
Assustei-me, a tinta manchou-me as pontas dos dedos
[…]
Será que fui morto ou salvo pelos alfabetos
Queimaram-me a língua com balas
A tinta correu em todas as minhas veias
E o meu sangue correu nas veias dos jornais*.

Nunca mais ouvimos falar deste poeta/jornalista palestiniano.

De Laor, soubemo-lo preso em Israel. Por dissidência e traição. Lê-se, no final de um dos seus poemas:

(…) Todos os dias me levanto e vou logo
ao teu quarto ouvir
os gorgolejos do teu mamar, um a
um, a esvaziar os momentos
da minha vida para dentro dos dias da tua vida (e quando cresceres procura
a paz, meu filho, mesmo nos que te perseguem)**.

*Tradução do inglês: Maria José Canelo, in Maria Irene Ramalho et al. (orgs.). Poesia do Mundo, 3. Porto: Afrontamento, 2001, 11.

**Tradução de Isabel Pedro (a partir da tradução inglesa de Linda Zisquit), in Maria Irene Ramalho et al. (orgs.). Poesia do Mundo, 3. Porto: Afrontamento, 2001, 185.


Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)

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Graça Capinha

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