Na cidade

 Na cidade

Vista aérea de Coimbra.

A “culpa” é das cidades e, claro, dos pangolins chineses

Ainda que com muitas cautelas, estamos a começar a sair de casa. Lentamente, muito lentamente, estamos a recuperar o gosto da cidade.

Desde os primeiros tempos da pandemia, algo inédito nesta geração, começaram-se a elevar as vozes que caem no equívoco clássico de considerar as cidades como problemáticas, do ponto de vista higiénico e ambiental.

Donald Trump, um reconhecido exemplo de coerência e fiabilidade, começou por culpabilizar a China e os chineses para mais tarde se virar contra as grandes cidades, sobretudo contra os seus centros, demonizando-os. Mais do que um bode expiatório, Trump precisa de gerar a alteridade da culpa — os chineses, os habitantes das cidades de maioria democrática — para que o seu eleitorado redneck rural e suburbano se convença que a pandemia veio de fora, do mal socialista que se esconde em sítios tão recônditos como a China ou as cidades.

Considerar as cidades problemáticas, do ponto de vista higiénico, é um contra-senso. É muito mais fácil e barato concentrar as infraestruturas nas zonas mais densas, quer os ductos de saneamento, quer o abastecimento de bens essenciais à higiene, com a água em primeiro lugar. Os tratamentos e reciclagens de resíduos, por seu lado, são muito mais facilmente planeados e organizados em cidades do que nas grandes extensões suburbanas, desordenadas e com distâncias imensas entre os fogos. E aqui já estamos a entrar no plano ambiental. Uma percentagem elevadíssima da investigação sobre o comportamento ambiental dos estabelecimentos humanos, tendente à redução de emissões de carbono, é dedicada à escala dos edifícios. É frequente vermos spots de boas práticas ambientais para a arquitectura e construção cujo modelo é uma vivenda suburbana de luxo, porque tem isolamento térmico perfeito, auto produção de energia não fóssil, etc.

A investigação sobre uma questão com esta gravidade não deve ser tratada à escala de um edifício, deve ser tratada à escala dos conjuntos edificados que se articulam na construção das cidades, nas ruas, nas praças, nos quarteirões, nos bairros. Sim, inclusivamente os das chamadas “áreas históricas”. Basta pensar no problema do ponto de vista global, teremos de equacionar as formas de vida de oito mil milhões de seres humanos, e aí, convenhamos que é impossível imaginá-los todos isolados numa casinha unifamiliar com uma quintinha ou uma frondosa mata à sua volta. Os recursos que teriam de ser despendidos em infraestruturas, em energia, em abastecimento, em transportes, sobretudo em espaço. Gostava muito de ver um tal investimento ser classificado como sustentável.

Claro que hoje temos meios muito mais eficazes, no quadro sanitário e ambiental, para gerir e resolver a questão dos espaços urbanos densos, do que tínhamos há um século atrás. Mas a verdade é que raramente os utilizamos. A organização de um mesmo espaço, com a mesma densidade considerada em abstracto, pode tomar formas muito diversas. Pode proporcionar quadros de vida inseguros, insalubres, nefastos e quadros de vida saudáveis, confortáveis e benéficos para a existência.

Como criar estes últimos? Como promovê-los? A tecnologia contemporânea e a inovação ajudam? Sim, têm de ajudar, mas não podem comandar os processos. As cidades existentes também já acumulam experiências milenares, o seu estudo e a sua observação são essenciais para a criação dos ambientes do futuro. Com excepção de alguns períodos de ruptura no século passado, sempre foi assim ao longo da história.

Claro que, para isso, é necessário esclarecer também um outro equívoco muito comum, cidade e metrópole são frequentemente mencionadas como sendo uma e a mesma coisa. Muitas cidades de média dimensão ambicionam mesmo tornar-se metrópoles, subir nas desreguladas escalas estatutárias das redes urbanas. As diferenças entre uma e outra, mesmo as de índole mais empírica, são, contudo, muito significativas, tão significativas quanto impossíveis de explanar nestas contidas linhas.

A verdade é que, por uma razão ou por outra, as cidades são sempre as primeiras a ser atacadas.

Os conservadores acham que são ninhos de ideias socialistas, subversivas mesmo, de actividades criminosas que subjazem à ruindade do espírito dos seus habitantes. Sim, sim, ainda e cada vez mais pensam isso.

Os liberais acham que são demasiado dispendiosas, que a representação política do Estado, que também as caracteriza, não deve existir. Mais, acham que devem imitar as empresas, ser absorvidas por outras cidades, entrar em falência, criar holdings e sucursais. Mas o mais engraçado é que o resultado, frequentemente, é ter o contrário, ou seja, as empresas a imitar cidades, como nos centros comerciais, nos casinos, nos parques temáticos. Enfim, os liberais não lhes acham piada nenhuma, às cidades,  excepto quando as podem pôr a render e, então, querem é comprá-las e, se não conseguem, fazem imitações para o efeito.

Os ambientalistas, aqueles mais românticos e bem pensantes, acham que as cidades e as inerentes densidades humanas  devem desaparecer debaixo do verde por eles plantado no meio das suas artérias, nos terraços dos seus edifícios. O problema é que os seus habitantes têm de ir para algum lado e então vão — já estão a ir — para o verde verdadeiro, construindo idílicos resorts rurais que ocupam dez vezes mais espaço em terrenos agrícolas e/ou florestais, para os quais se deslocam em viaturas individuais, que só muito raramente são Teslas.

Mas as cidades vão subsistir. É necessário, agora e mais que nunca, que olhemos para elas não com a visão normativa absurda que herdámos da modernidade positivista, com os mesmos instrumentos, abstractos e generalistas, de há um século atrás, adaptados em cima do joelho aos clichés inovadores da contemporaneidade. É necessário que olhemos para elas como o nosso habitat natural, como a coisa humana por excelência, como lhes chamava Lévi-Strauss, ou como o nosso divino aposento, como chamava Camões à cidade projectada. Sim, temos de as projectar novamente, mas agora para as reconstruir, com respeito e com talento, se possível ainda com mais respeito e mais talento do que todos aqueles que as foram construindo.

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José António Bandeirinha

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