Na gestão do dinheiro público tem de haver lei, não basta a ética
O Correio da Manhã noticiou, a 24 de dezembro de 2022, que a secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, recebeu uma indemnização no valor de 500 mil euros por sair antecipadamente do cargo de administradora executiva da companhia aérea portuguesa, a Transportes Aéreos Portugueses, SA (TAP, SA), quando ainda tinha de cumprir funções durante dois anos.
Alexandra Reis, que tomou posse como secretária de Estado do Tesouro na remodelação do Governo, a 2 de dezembro de 2022, como consta de nota biográfica da página eletrónica do Governo (www.portugal.gov.pt), ingressou na TAP, em setembro de 2017, como chief procurement and real estate officer da TAP Air Portugal; e, passados três anos, tornou-se membro da Comissão Executiva e do Conselho de Administração da TAP, SGPS, TAP, SA, e da Portugália, presidente do Conselho de Administração da Cateringpor – Catering de Portugal, SA, membro não executivo do Conselho de Administração da UCS – Cuidados Integrados de Saúde, SA, cargos que desempenhou até fevereiro de 2022. E, de julho a dezembro, por nomeação governamental, foi presidente do Conselho de Administração da Navegação Aérea de Portugal – NAV Portugal, EPE.
Refere a comunicação social “da nossa praça” que a antiga administradora executiva da TAP e até agora (o ministro das Finanças, Fernando Medina, acaba de pedir a sua demissão, que a própria aceitou) secretária de Estado do Tesouro saiu da companhia aérea por vontade própria, tendo renunciado ao cargo em fevereiro de 2022. Porém, teve direito à indemnização de 500 mil euros por ter deixado o cargo dois anos antes da altura em que deveria cessar funções. E, poucos meses depois, o ministro que tutela a TAP, Pedro Nuno Santos, chamou-a para a NAV, empresa pública que assegura os serviços de navegação aérea. Não chegou a estar lá seis meses porque, entretanto, Fernando Medina a foi buscar para secretária de Estado do Tesouro.
Esta questão motivou críticas de vários partidos da oposição, que também exigiram explicações sobre a indemnização paga pela TAP à governante. O partido Chega entregou um requerimento para ouvir três governantes no Parlamento. O Partido Social Democrata acusa o ministro da Habitação e das Infraestruturas de não saber o que se passa na companhia que tutela. E a Iniciativa Liberal diz que “isto é gozar com quem trabalha”.
O Presidente da República, num primeiro momento, considerou não ver incompatibilidades na nomeação para o Governo e que Alexandra Reis só recebeu da TAP um terço da indemnização a que tinha direito, mas admitiu que os valores envolvidos são difíceis de serem compreendidos pelos Portugueses.
Por sua vez, o ministro das Finanças, sob cuja alçada tem trabalhado a secretária de Estado, e o ministro das Infraestruturas e da Habitação (Pedro Nuno Santos), que tutela a TAP, solicitaram à companhia aérea, no dia 26 de dezembro, informações “sobre o enquadramento jurídico” do acordo que valeu à, até agora, secretária de Estado do Tesouro uma indemnização de meio milhão de euros ao sair da empresa. Os dois ministros fizeram saber, através de despacho conjunto, que o montante atribuído a Alexandra Reis é uma das situações que pretendem clarificadas. Em comunicado, informam que “emitiram hoje [26 de dezembro] um despacho a solicitar ao Conselho de Administração da Transportes Aéreos Portugueses, SA, informação sobre o enquadramento jurídico do acordo celebrado no âmbito da cessação de funções como vogal da respetiva Comissão Executiva, de Alexandra Margarida Vieira Reis, incluindo sobre o apuramento do montante indemnizatório atribuído”.
O despacho adianta que, “considerando a cessação de funções como vogal da Comissão Executiva da Transporte Aéreos Portugueses, SA (TAP, SA) de Alexandra Margarida Vieira Reis, com efeitos a 28 de fevereiro de 2022” e que, “considerando os regimes legais aplicáveis à mencionada empresa pública, designadamente o Regime Jurídico do Setor Público Empresarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, e o Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, ambos nas suas redações atuais”, decidiram solicitar ao Conselho de Administração da TAP “informação sobre o enquadramento jurídico do acordo celebrado no âmbito da cessação de funções como vogal da respetiva Comissão Executiva, de Alexandra Margarida Vieira Reis, incluindo sobre o montante indemnizatório atribuído”.
No despacho, lê-se que o pedido surgiu na sequência da cessação de funções de Alexandra Reis como vogal da comissão executiva da TAP, “com efeitos a 28 de fevereiro de 2022”.
Como se disse, a oposição tem criticado os valores envolvidos na indemnização e o Presidente da República afirmou, no dia de Natal, que, apesar de legal, o processo é questionável, fazendo eco do que, no seu entender, é a posição dominante no país sobre o caso.
A este respeito, Marcelo Rebelo de Sousa comentou: “É como pensam muitos portugueses. Dizem: a senhora saiu daquele lugar, tinha direito por lei a ter aquilo, mas, na medida em que está a exercer uma função pública, há quem pense que era bonito prescindir disso, atendendo a que está noutra função. Mas, do ponto de vista jurídico, a lei permite isto.”
O chefe de Estado não duvida de que “houve acordo” entre a companhia aérea e a, entretanto demissionária, secretária de Estado do Tesouro, apesar de esta ter saído da TAP por vontade própria. Todavia, pretende que o Governo explique porque é que a TAP lhe pagou 500 mil euros de indemnização, após ter sido revelado que o contrato entre as duas partes terminou por vontade da agora governante.
O Presidente da República (PR), em declarações aos jornalistas, na Covilhã, questionou: “Vale a pena verificar duas coisas. Primeiro, porque é que terminou aquela colaboração: Correu mal? Incompatibilidades? E, em segundo lugar, quais foram os critérios seguidos para dar lugar àquela indemnização com aquele valor?” E explanou o seu raciocínio: “A sensação que tinha é que, para ter havido indemnização, tinha havido uma rescisão, tinha sido a empresa a terminar o contrato. Havendo um acordo, que resulta da vontade da própria de fazer cessar o contrato, e receber, em contrapartida, um quantitativo da empresa, fica-se com esta dúvida. Há um ponto em que não há dúvida, é de que houve acordo. Se fosse uma rescisão, receberia outra quantia. Não sendo uma rescisão, sendo uma decisão da própria, não haveria obrigatoriamente a indemnização.”
O chefe de Estado considera ainda ser necessário apurar as razões do fim da colaboração entre Alexandra Reis e a TAP, manifestando que esse esclarecimento é “importante” para o Governo e para o PR, para o qual é importante, porque a nomeou. Disse Marcelo Rebelo de Sousa: “Nomeei-a, há cerca de um mês, para secretária de Estado. Pedidos os esclarecimentos pelos ministros, não deve ser muito difícil dar o esclarecimento.”
O chefe de Estado salientou, ainda, que as explicações do caso “enfraquecem ou fortalecem” a posição de Alexandra Reis e que são “importantes para todo o Governo”, porque “aquilo que acontece a um membro de um Governo, acaba por, de uma ou de outra forma, ter que ver com todo o Governo”. E vincou: “Não é um caso estritamente individual.”
É preciso que o ministro das Finanças “tenha noção da plena capacidade de uma colaboradora fundamental para poder exercer as suas funções”, afirmou o Presidente da República, no dia 26 de dezembro, questionando se a polémica indemnização à ex-administradora da TAP lhe permite continuar no Governo. Porém, “quem tem que tomar uma iniciativa é a própria”. Neste caso, foi Fernando Medina quem avançou com o pedido de demissão da sua subordinada política, que a secretária de Estado acatou.
Na opinião do PR, havia duas hipóteses que a própria deveria avaliar. “Se achar que não há nada de negativo para o exercício da sua função governativa” é uma coisa, “se alguma dúvida persiste, então ela deve contribuir para esse esclarecimento”, afirmou, advertindo: “Não é por ela, é pelo Governo, porque aquilo que acontece a um membro do Governo acaba de uma forma ou de outra por ter a ver com todo o Governo.”“Se não tem ido para funções governativas, era uma coisa. Sendo governante, os esclarecimentos são importantes para o ministro que tutela a TAP e também para o ministro das Finanças poder ter uma noção plena da capacidade de uma colaboradora fundamental para exercer as suas funções”, vincou o Presidente da República. A dúvida que o chefe de Estado deixou no ar era clara: Não será melhor Alexandra Reis sair, se o Governo quiser poupar mais um caso político de consequências altamente desgastantes?
Marcelo não se pôs de fora da equação, nem ignorou quanto ele próprio se vê apanhado no caso que ameaça comprometer o respeito pelas instituições, porque foi ele quem a nomeou. “Para o Presidente da República, é importante o esclarecimento do que se passou, porque o Presidente da República nomeou-a.” E o esclarecimento é importante para todos: para quem nomeia, para quem é nomeado, para os portugueses.
Porém, numa declaração escrita enviada à Lusa, Alexandra Reis disse que o acordo de cessação de funções “como administradora das empresas do universo TAP” e a revogação do seu “contrato de trabalho com a TAP, SA, ambas solicitadas pela TAP, bem como a sua comunicação pública, foi tudo concertado “entre as equipas jurídicas de ambas as partes, mandatadas para garantirem a adoção das melhores práticas e o estrito cumprimento de todos os preceitos legais”. Argumentou: “Nunca aceitei – e devolveria, de imediato, caso já me tivesse sido paga – qualquer quantia em relação à qual não estivesse convicta de estar ancorada no estrito cumprimento da lei.” E garantiu que “esse princípio se aplica também aos termos” da sua “cessação de funções na TAP”.
Entretanto, a TAP esclareceu os respetivos ministros (informação que eles enviaram à Procuradoria Geral da República e à Comissão dos Mercado de Valores Mobiliários) de que a companhia aérea negociou com Alexandra Reis a apresentação da sua renúncia, que a própria assinou, e deu início às negociações para a indemnização. Mais informou que a renunciante não estava abrangida pelo Estatuto do Gestor Público nem pelo regime normal de trabalhador com contrato individual de trabalho, tendo a mesma exigido, inicialmente, um milhão e 495 mil euros, o que foi reduzido para 500 mil euros.
***
Não vale a pena tapar o sol com a peneira. A prestação de serviço público e as relações contratuais entre privados (e entre públicos e privados) não se pautam pelo que é importante, estético, bonito ou mesmo ético. Não é problema de consciência, mas de segurança relacional económica e ou social. E é para regular esse tipo de relações que se faz a lei e se estabelecem as cláusulas contratuais (que não devem contrariar a lei, mas regular as vontades recíprocas dentro dos parâmetros legais). Estamos saturados de casos em que não houve crime nem qualquer infração legal, mas que era bom ir além da lei, por motivos éticos. Não. Façam-se leis claras e com sanções claras. E, logo que elas permitam o laxismo relacional, que sejam modificadas. Urja-se o cumprimento da lei e não se atire com a ética para comportamentos desagradáveis ou prejudiciais à comunidade.
29/12/2022