Na hora da despedida de Joan Manuel Serrat
Uma voz que acompanhou a dor e a esperança do Chile
Sem Joan Manuel Serrat (de nome completo Joan Manuel Serrat i Teresa), nós, os Chilenos, ter-nos-íamos sentido mais isolados e ausentes. Ele foi a voz que nos acompanhou nos “anos de chumbo” instaurados pela ditadura militar de Augusto Pinochet. A recordação das suas actuações no Chile democrático e os seus discos, guardados e ouvidos mil vezes na clandestinidade, foram alento e esperança na longa noite militar.
A sua estreia no Chile foi no palco do Teatro Municipal de Santiago, em 1969. Mas Joan Manuel Serrat já visitou o país em 25 oportunidades e teve duas actuações no Festival Internacional da Canção de Viña del Mar (o mais importante do género na América Latina), onde interpretou as suas primeiras versões das canções de Violeta Parra, de Víctor Jara e de outros clássicos latino-americanos.
De volta ao Chile, na sua última digressão internacional de despedida, declarou à imprensa chilena: “Eu amo o Chile…” E, claro, os Chilenos souberam retribuir esse amor de décadas com uma multitudinária assistência nos seus últimos espectáculos na capital, Santiago.
A digressão na América Latina começou na Cidade do México, em Novembro de 2022. Depois de mais de 55 anos de carreira artística, o cantor e compositor catalão Joan Manuel Serrat despedia-se dos palcos. Assim o fez com um grande show no Zócalo (1), na capital do México, com apresentação gratuita.
Os poetas que Serrat cantou
Autor de mais de 40 álbuns com mais de 500 canções, a sua influência, numa nova geração de cantautores, é indiscutível.
Quando nos aferrávamos, nostalgicamente, à poesia lunar de Federico García Lorca, símbolo da tragédia da Guerra Civil Espanhola, Serrat recordou-nos algo que já sabíamos, mas que parecia estar esquecido: havia mais autores, mais poetas sofredores e fecundos nessa Espanha que – todos nós, tal como Pablo Neruda – levávamos no coração. Serrat ajudou-nos a lembrar poetas esquecidos e marginalizados pelo franquismo e pela poeira da ingrata História, que é escrita pelos vencedores. Vejamos, seguidamente, alguns deles.
Antonio Machado (1875-1939) – O mais importante poeta da Geração de 98 e considerado um mártir na Guerra Civil Espanhola, Antonio Machado foi o protagonista do primeiro álbum dedicado por Joan Manuel Serrat a um único autor.
Corria o ano de 1969 e a divulgação de poemas de autores republicanos era seriamente censurada pelo governo de Francisco Franco. Canções como Cantares, Del pasado efímero (Españolito), Guitarra del Meson ou A un Olmo Seco têm a sua fonte de inspiração em poemas escritos por Antonio Machado em obras como Proverbios y Cantares, Soledades e Campos de Castilla, considerada a sua obra-prima.
Miguel Hernández (1910-1942) – Não foi um, mas dois… Sim, foram dois os registos fonográficos dedicados à memória de Miguel Hernández, considerado o poeta mais representativo da Segunda República Espanhola (2) e que morreu de tuberculose numa prisão de Alicante, durante a ditadura. Canções como Nana de las cebollas (3), Para la libertad, Canción última ou Andaluces de Jaén transformaram-se em clássicos do repertório de Joan Manuel Serrat.
Joan Salvat-Papasseit (1894-1924) – Talvez para nós o menos conhecido ou, até mesmo, desconhecido entre todos estes autores. Operário, popular e um dos protagonistas do movimento literário conhecido como Renaixença catalã (4), é um dos vários bardos em língua própria que Serrat assumiu ao longo da sua carreira. De facto, o seu álbum Res no és mesquí (Nada es mezquino, em Castelhano) é inteiramente dedicado ao trabalho poético de Joan Salvat-Papasseit.
El poema de La rosa als llavis (de 1923), Óssa Menor e Poemes en ondes hertzianes são alguns dos volumes recomendados para apreciar a obra do poeta catalão. É considerado o máximo representante do futurismo em língua catalã e um importante agitador cultural a incentivar a poesia de vanguarda.
Rafael Alberti (1902-1999) – Foio primeiro poeta que Joan Manuel Serrat retomou numa das suas canções. Nascido em Porto de Santa Maria (Cádis), Rafael Alberti é conhecido como o poeta de Málaga. O seu poema La paloma fez parte do álbum homónimo (de 1968), que marcou a carreira de Joan Manuel Serrat na década de 1960. Entre asobras mais conhecidas de Rafael Alberti, recordamos Marinero en tierra, Sobre los ángeles e Versos sueltos de cada día. Também dramaturgo, a sua peça de teatro mais representada éNoche de guerra en el Museo del Prado (escrita em 1956).
Poema Se equivocó la paloma, do livro “Entre el clavel y la espada” (de 1941):
Josep Vicenc Foix (1893-1987) – Outro poeta catalão que, ao longo da sua carreira, Joan Manuel Serrat incorporou no seu repertório alternando canções na sua língua nativa, o Catalão, e em Castelhano. Josep Vicenc Foix, como Pere Quart (pseudónimo do poeta Joan Oliver i Sellarès) e Josep Palau i Fabre (poeta e escritor, representante da literatura catalã durante a Primeira Guerra Mundial, além de especialista sobre o trabalho do pintor Pablo Picasso) também foram retomados pelo cantor e compositor Serrat.
O poeta, notável escritor e ensaísta catalão assinava o seu trabalho usando a abreviatura J.V. Foix. Na sua obra encontram-se volumes como Sol i de dol, On he deixat les claus e Les irreals omegues. O segundo livro de poemas publicado por J.V. Foix, em 1949, difere completamente do anterior Sol i de dol, no qual dominava o classicismo. Aqui, o que domina é a arte de encontrar a chave trovadoresca e o hermetismo da poesia de todos os tempos.
“[…] O grande enigma dos homens era, para o meu barqueiro, uma peixeira esférica que caía pelos espaços celestiais para o consolo dos anjos.” (Excerto de Notas sobre o Mar)
Jaime Sabines – O poeta mexicano Jaime Sabines também faz parte do vasto cancioneiro de Serrat. Entre as canções do álbum Sensitive Material está La luna, criada a partir do poema homónimo do famoso autor de Los amorosos, mas interpretada em Catalão.
León Felipe (1884-1968) – Serrat cantou louvando os poetas que sofreram represálias durante a Guerra Civil Espanhola. E nenhum outro é mais icónico do que León Felipe Camino, exilado no México e cuja obra gira em torno do ibérico, através da metáfora de Dom Quixote. Com a sua criação Vencidos, Joan Manuel Serrat homenageia o poeta nascido em Zamora.
Mario Benedetti – No seu seu álbum El sur también existe, Joan Manuel Serrat presta homenagem ao poeta, escritor e ensaísta uruguaio Mario Benedetti, que integrou a Geração de 45. Será esta, talvez, a criação mais comprometida politicamente do cantautor. Na obra de Benedetti, destacam-se os livros de poesia como Amor, Mulheres e Vida, o romance La borra del café ou a peça de teatro, tantas vezes representada em Portugal, Pedro y el Capitán, ambientada na ditadura uruguaia dos anos 70.
Na introdução ao seu romance La borra del café, Benedetti cita dois autores já comentados noutros artigos, o escritor argentino Julio Cortázar e o homem de teatro (actor e director) e cineasta francês:
Para onde vão o nevoeiro, a borra do café, os almanaques de outros tempos? (Julio Cortázar)
Nada é mentira. Basta um pouco de fé e tudo é real. (Louis Jouvet, em Entrada de Artistas)
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Notas:
1 – A Praça de Constituição é a principal praça da Cidade do México, informalmente conhecida como “el Zócalo”. É a quarta maior praça do Mundo e o centro da identidade nacional do México.
2 – A Segunda República Espanhola foi proclamada a 14 de Abril de 1931, na sequência da vitória republicana nas eleições municipais, tendo como primeiro presidente Niceto Alcalá-Zamora. Recorrendo à Wikipédia, ficamos também a saber que a Constituição Espanhola de 1931 foi aprovada, a 9 de Dezembro, pelas Cortes Constituyentes, após as eleições desse ano, que originaram a proclamação da Segunda República Espanhola. Esteve em vigor até ao final da Guerra Civil Espanhola, em 1939.
3 – As “nanas” são as nossas canções de embalar. Em 1928, Federico García Lorca escreveu uma conferência sobre as canções de ninar espanholas: “[…] en esta conferencia no pretendo, como en las anteriores, definir, sino subrayar, no quiero dibujar, sino sugerir, animar, en su exactosentido. herir pájaros soñolientos. donde hay un rincón oscuro, poner un reflejo de nube alargada y regalar unos cuantos espejos de bolsillo a las señoras que asisten […]”
Com estas palavras, o poeta granadino iniciava aquela que foi, possivelmente, a sua mais bela e bem-sucedida conferência. Uma obra que deslumbra pela sensibilidade e rigor, tanto no conteúdo como na forma, e que seduz com o seu embalo, lembrando-nos, mais uma vez, porque Lorca é um dos mais importantes escritores de Espanha de todos os tempos.
4 – Consultando novamente a Wikipédia, lemos que a Renaixença foi um grande movimento restaurador da língua, da literatura e da cultura catalã, que se iniciou no princípio da primeira metade do século XIX. O seu nome (Renascença ou Renascimento, em Português) surgiu da vontade de fazer renascer o Catalão como idioma da literatura e da cultura.
Nota final – Joan Manuel Serrat apresentou-se pela primera vez no Chile, em 1969, no Teatro Municipal de Santiago. Foi ao país 25 vezes, em algumas delas sozinho, noutras acompanhado dos seus amigos Joaquín Sabina, Victor Manuel, Ana Belén e Miguel Ríos. Cantou no Festival Internacional de Viña e no Festival de Teletón, no Teatro Caupolicán e no Rex. Em 1990, sob o título Por Fin Serrat e, após a restauração da democracia, lotou (ou esgotou) o Estádio Nacional. Em 2018, com o concerto Mediterráneo da Capo. Outros palcos onde actuou foram o Teatro Nescafé de las Artes, a Aula Magna Universidad Federico Santa María (UTFSM, em Valparaíso), o Teatro Regional del Maule (Talca), o Teatro del Lago (Frutillar), o Teatro Municipal (Temuco), o Teatro UdeC (em Concepción) e a Arena Movistar de Santiago. Segundo Alfredo Saint-Jean, produtor e organizador de muitos dos seus concertos, “a relação entre o público chileno e Joan Manuel Serrat transcendeu o puramente musical” e há “um vínculo profundo que se entrelaçou com nossa própria História como país”, deixando vestígios ou influências culturais.
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02/02/2023