Não há machado que corte a raiz ao pensamento…

 Não há machado que corte a raiz ao pensamento…

(Créditos: dmytro_R / Pixabay)

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Na frase expressa nos dois primeiros versos do poema “Livre”, de Carlos Oliveira, musicado e cantado por Manuel Freire, em 1968, o poeta complementa, por belas palavras, que o pensamento é um produto imaterial da matéria e, como tal, não tem dimensão física. Não tem volume nem massa, nem peso, nem cor, não é quente nem frio e não ocupa espaço. Para o pensamento não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais ou prisões. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, no ínfimo interior de um núcleo atómico ou na infinita abrangência do Universo, aqui e nas estrelas mais longínquas, a milhares de milhões de anos-luz.

O pensamento não surgiu da noite para o dia. É o culminar de uma evolução da matéria surgida com o começo de Universo, há cerca de 13.800 milhões de anos. É algo que está acima do poder de quem quer que seja.

(Créditos: Nova Escola)

Através do pensamento, o homem adquiriu capacidade de intervir no seu próprio curso, no da sociedade em que está inserido e, até, no da Natureza que o criou e lhe permite viver, seguindo por caminhos ditados pela sua imensa capacidade de decisão. E é aqui que os poderes totalitários procuram servir-se dos “machados”, referidos na poesia de Carlos Oliveira.

Se recuarmos aos primórdios da civilização grega, servir-se do pensamento (esta maravilhosa e complexa capacidade da condição humana) foi o que os chamados filósofos ousaram fazer e, daí, o nome de pensadores por que são, muitas vezes, referidos. Foi a admiração e a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.

Foi o confronto entre a realidade que se lhes deparou e as ideias que, a partir dessa realidade, foram formulando, que lhes conduziu o pensamento no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase primitiva, se confunde com a filosofia, no sentido de interesse ou preocupação pelo saber. É nessa fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências”.

“Escola de Atenas”, pintura de Rafael, no Vaticano. (Direitos reservados)

Terá sido, pois, na Grécia Antiga que começou a audácia e a grande aventura do pensamento. Terá sido no decurso do século VII a.C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais (leia-se pensar) que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade que então se vivia.

A História ensina-nos que, muito antes do despontar do pensamento filosófico, nesta que foi o berço da civilização ocidental, os mitos (à semelhança das religiões) davam respostas às múltiplas perguntas, muitas delas perplexidades que pairavam e, até, inquietavam o espírito das gentes. Para além de marcarem padrões importantes de comportamento na vida social (na ética, na moral) e política, os mitos veiculavam uma concepção religiosa do mundo à sua volta.

O Partenon foi um templo dedicado à deusa grega Atena, construído no século V a.C. na Acrópole de Atenas, na Grécia Antiga. (Direitos reservados)

O pensamento surgiu, assim, como uma espécie de rotura com a visão mítica do mundo grego. Enquanto os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, o pensamento inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e na argumentação, formulando concepções do mundo e da sociedade, isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico. Ao contrário da crença, que não contesta, respeita e não se afasta da narrativa mitológica (ou religiosa), o pensamento serviu-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe depararam.

Deuses gregos no Olimpo – Sala dos Gigantes, no Vaticano. (Pintura de Giulio Romano / Pixabay)

Um parêntese para dizer que mito (do grego “mythos”) começou por significar apenas, “palavra”, no simples sentido de “fala”, mas evoluiu, ganhando o valor de uma “palavra proferida com autoridade e digna de crédito”. Entende-se, assim, por mito um conjunto de crenças fundamentadas em relatos fictícios e imaginados pelos autores, poetas nos casos de gregos e de latinos. Acrescente-se que a religião, seja ela qual for, visa ainda criar rituais ou práticas com a finalidade de estabelecer laços com a espiritualidade.

(Créditos: Dulana Kodithuwakku / Unsplash)

Todos sabemos que os governos, uns mais outros menos, estão condicionados, quer pelos grandes interesses económicos e financeiros, quer pelos sinistros e retrógrados poderes religiosos, dois grandes travões às legítimas aspirações da grande maioria das populações deste planeta, a caminho da exaustão. Não lhes interessa, pois, que a maioria dos governados pensem demasiado.

Desviar o cidadão de pensar sempre foi preocupação dos poderes políticos e religiosos, propósito declarado, com censuras, proibições e outras limitações, em sociedades totalitárias, e mal disfarçado naquelas tidas por democráticas, com liberdades ditas asseguradas.

Um exemplo de um destes travões por parte do poder religioso, que nos toca de perto, é o facto de os países da Europa onde a Reforma protestante vingou, se terem desenvolvido muito mais do que os que ficaram amarrados ao catolicismo.

Este propósito de desvio do acto de pensar, ainda que disfarçado, afecta uma parte considerável dos nossos concidadãos, mantendo-os incultos, destituídos de pensamento autónomo, alienados pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora. Neste quadro, são muitos os que não votam nos actos eleitorais próprios da democracia que lhes foi oferecida, ou votam (religiosamente) sem procurarem conhecer as teses ou os programas que lhes são apresentados.

(Créditos: Klimkin / Pixabay)

Em Portugal, é com mágoa que constato que, nas últimas décadas, a orientação seguida pelos políticos, que elegemos para nos governarem, tem sido a de colocar o sucesso escolar obrigatório à frente do gosto pelo conhecimento indispensável à verdadeira condição de cidadania. Um propósito que satisfaz, plenamente, não só as estatísticas, como também, e muito, a nunca declarada, mas existente preocupação do poder político em o manter distraído.

A terminar, ocorre-me trazer aqui, uma vez mais, uma afirmação do nosso primeiro-ministro, em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto. Disse ele, para quem quis ouvir: “De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.

Esta afirmação, que vem ao encontro do que, há muito, ando a dizer e que, para infelicidade de todos nós, não passou de palavras. E a verdade é que não vejo qualquer propósito de alteração visando esta nódoa (há outras) da nossa democracia.

Nota final:

Muitos autores consideram a Grécia como o berço da filosofia, todavia outros, os chamados “orientalistas”, defendem que o pensamento racional grego terá sido herança e posterior desenvolvimento de uma sabedoria vinda de povos orientais. Tem havido controvérsias sobre a origem desta forma de organização do pensamento, se na Grécia, se em civilizações orientais mais antigas, na Pérsia, na Índia, na China…

Manhã de Primavera no Palácio Han, Qiu Ying.

16/06/2022

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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