Natália Correia: centenário (1923-2023)
“Escrevo todos os dias e à mão. Não permito que nada me escape da escrita, porque o corpo e a palavra estão unidos. Tudo começou quando a palavra se fez corpo. Deito-me tarde porque o dia divide e a noite une. O poeta tem que banhar-se na lunaridade da festa nocturna. De contrário é um tecnocrata do verso que só conhece metade da vida.” (Natália Correia, como regista Ana Paula Costa, em “Fotobiografia”)
Tive dois contactos com a poeta Natália Correia. Foram encontros breves, mas suficientemente intensos para serem recordados. O primeiro aconteceu no ano de 1981, ou em 1982, na cidade do Funchal, na ilha da Madeira, num encontro de poesia no qual estava presente uma amiga, também poeta: Maria Aurora1 (foi jornalista nos jornais A Capital e Diário de Lisboa, bem como animadora cultural e coordenadora da revista Margem, editada pela Câmara Municipal do Funchal, a cujo departamento cultural pertenceu, tendo dinamizado a Feira do Livro).
As similares características físicas e de temperamento foram suficientes para fazer desse evento memória futura.
Em 1982, por ocasião da III Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira, organizei um encontro de teatro associado ao evento, com a ajuda do sempre amante do teatro, o amigo e escultor José Rodrigues (co-fundador da Cooperativa Árvore, no Porto) e também pelo pintor Jaime Isidoro. Nesse encontro de teatro estiveram presentes o Teatro Art´Imagem, grupo de teatro “O Realejo” e um grupo galego, do qual lamento não recordar o nome.
Com a ajuda das alunas do Curso Superior de Teatro da Cooperativa de Ensino Superior Artístico Árvore (hoje, ESAP – Escola Superior Artística do Porto), organizámos uma sessão de poesia religiosa na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em Vila Nova de Cerdeira. Na oportunidade, Isabel Menezes, Manuela Espírito Santo e Celeste Guedelha leram poemas de diferentes autores subordinado ao tema da religião, entre eles, São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila.
No final da récita, o escultor José Rodrigues, acompanhado de duas grandes mulheres, Eunice Muñoz e Natália Correia, desafiou-me para dar oportunidade de elas também recitarem alguns poemas. À actriz Eunice, que já conhecia, entreguei um livro de Teresa d’Ávila, enquanto Natália Correia nos desafiou com a pergunta: “Afinal, o que é a religiosidade?” E ela recitou um poema dedicado à sua mãe.
Em determinado momento, a voz fraquejou e o poema parou… Depois de algum tempo, a poeta retomou, com a palavra mágica “maracujá”! Durante muito tempo, julguei que fosse improviso, mas não, o maracujá está aí, impresso, latente, imenso e eterno no poema: “[…] No quintal de incontinente / o maracujá enlanguescia / e pedra a pedra se reconstruía / a casa infinitamente. […]” (do poema “Mãe Infusa”)
A minha amiga e diseuse Cidália Santos, tinha-me desafiado, há algum tempo, para fazer um recital de poesia com as obras de Natália Correia. Aconteceu recentemente: estreámos a 13 de Setembro, no dia do seu aniversário, o nosso recital “Natália vs Natália”. Juntou-se a nós o grupo de teatro “Não Cabe Mais Ninguém”, teatro de artes do espectáculo de Rio Tinto. Paula Castro, Cátia Ferreira e Joana Linhas juntaram-se a Cidália Santos e, com ajuda de três músicos, deram vida aos poemas e a momentos biográficos de Natália Correia, como deputada, escritora, dramaturga, política e criadora de um espaço de poesia e de tertúlia, o bar Botequim, que ficou na história como um lugar de oposição ao antigo regime.
O espetáculo foi uma antecipação do programa das comemorações do centenário da Ala de Nun’Álvares de Gondomar (ANAG, clube fundado em 30 de Setembro de 1923), na sala de espetáculos da ALA, no Largo de Santo António (no Souto).
Como prólogo para este recital, escolhi um texto que enfatiza a problemática à volta da utilização das designações “poetisa” e “poeta”:
[…] Na opinião da feminista norte-americana Andrea Nye, “as palavras assinaladamente femininas no vocabulário sistematicamente encerram uma conotação negativa”. A diferença entre “poeta” e poetisa” exemplifica essa tendência.
“A escolha insatisfatória permanece entre uma raspagem superficial de palavras ofensivas a mulheres e, por outro lado, uma recusa a participar de qualquer significado publicamente constituído. Assim, um termo numa oposição, que deveria ser simétrico, é assinalado como superior”, avalia Nye. Conforme a feminista, “uma reforma linguística deveria restaurar a igualdade; se o termo masculino denotava poder, o mesmo devia acontecer com o feminino. Ou as mulheres devem ser poetas, ou poetisa devia ser revalorizado”.
Ora, do ponto de vista histórico e social, a parte final da palavra – o “-isa” de “poetisa” – traz, sim, o significado de diminutivo. Infelizmente, a diminuição não está somente na origem da palavra – mas também no uso social que se fez e que se verifica na crítica da época, para a qual “poetisa” tem clara denotação menor.
Não é à toa que Cecília Meireles rejeitava ser chamada de “poetisa”, conforme explicita nos versos iniciais do seu poema “Motivo”: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta”. […] (Ver: “Adriane Savazoni: Por que poeta, e não poetisa?”)2
Intensa, telúrica, oceânica, polémica, erótica, vulcânica… muitos são os atributos de Natália Correia e de uma poesia luminosa que viveu, também, momentos de trevas!
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Notas:
1 – Aurora Augusta Figueiredo de Carvalho Homem (1937-2010), conhecida pelo pseudónimo literário de Maria Aurora, foi uma jornalista, poeta e escritora portuguesa, uma das mais populares figuras da cultura da Madeira. Nos anos que dirigi o Teatro Experimental do Funchal, Maria Aurora colaborou com os Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal, e como actriz no meu espectáculo “Enquanto o Mundo for Mundo”, da autoria de Francisco Ventura e Carlos Lélis.
2 – Adriane Savazoni é uma professora, ambientalista, promotora cultural e poeta brasileira.
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28/09/2023