Neruda volta a morrer
As notícias apareceram nos jornais nacionais e no estrangeiro: quase meio século depois da morte do chileno Pablo Neruda, a comissão que investigava, há anos, o processo vem à luz com a descoberta de um agente exógeno – isto é, estranho ao corpo – que actuou fatalmente contra a vida do poeta.
Na sua edição de 13 de Fevereiro de 2023, o El País destaca, em título: “El informe pericial concluye que Pablo Neruda murió envenenado, según la família” O mesmo diário espanhol adianta que o “asesinato supuestamente se cometió por medio de la bacteria del botulismo inyectada en el cuerpo del poeta chileno”. Um sobrinho de Neruda diz que a bactéria encontrada nos seus restos mortais “estaba en su cuerpo en el momento de la muerte”.
Entretanto, os jornais replicam a notícia da agência noticiosa EFE de que se confirmaria a tese da denúncia do Partido Comunista do Chile, segundo a qual a substância “foi injectada como arma biológica”.
Lembro-me do dia em que soubemos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura, a Neruda. Éramos 12 e estávamos na cidade de Cali, no sudoeste da Colômbia. Albergados, no melhor sentido da palavra, no Teatro Experimental de Cali (TEC), a famosa companhia de teatro criada e dirigida pelo dramaturgo colombiano Enrique Buenaventura.
Aí, representámos o espectáculo “Manuel Rodrigues”, da autoria de Juan Curilem Fincheira e com interpretação e encenação minha. Voltávamos do Festival Internacional de Teatro de Manizales, no qual participámos, no ano de 1971, e havíamos realizado uma viagem de mais de 10 mil quilómetros e quase sempre à boleia. Éramos jovens, muito jovens, e a notícia do Prémio Nobel para Pablo Neruda encheu-nos de orgulho, depois de o Prémio Nobel da Literatura ter distinguido (em 1945) a nossa poetisa (gosto muito desta palavra!) Gabriela Mistral, educadora, mulher extraordinária da cultura latino-americana.
A relação com Neruda, na nossa juventude, foi sempre muito próxima. Pablo Neruda esteve sempre presente nas nossas vidas, convivemos com ele na escola, na rua, nos seminários, na universidade e, igualmente, ao ter o seu nome sido escolhido como pré-candidato presidencial, no ano de 1970. Pouco depois, ele renunciaria a essa possibilidade eleitoral e indicou o seu apoio à candidatura do socialista Salvador Allende, no âmbito da Unidade Popular (UP), movimento que triunfou, tendo Allende sido eleito presidente em 1971 e nomeado Neruda embaixador na França.
O escritor Pablo Neruda estava aí ao lado, à mão de semear, com os seus poemas e as suas odes. E também, nessas datas próximas, as suas duas incursões no teatro, a versão e a tradução de “Romeu e Julieta” e da cantata “Fulgor y Muerte de Joaquín Murieta”.
Com o motivo dos 400 anos do nascimento de William Shakespeare (1564-1616), no ano de 1964, o Teatro Universidad de Chile (igualmente conhecido como teatro Ceac, por pertencer ao Centro de Extensión Artística y Cultural de la Universidad de Chile) solicitou ao poeta Pablo Neruda uma nova tradução desta tragédia clássica de Shakespeare, peça que foi montada, pela primeira vez, nesse mesmo ano, com encenação de Eugenio Gúzman (1925-1988).
De ambos os espectáculos tenho memória. “Romeo y Julieta”, na sua estreia no ITUCH (Instituto del Teatro de la Universidad de Chile – hoje, Teatro Nacional Chileno) com um belíssimo actor Marcelo Romo, amigo de família, e uma belíssima Julieta, por Diana Sanz, actriz ainda viva e que conserva a beleza que a destacou nessa época e nessa representação.
““Fulgor e Morte de Joaquín Murieta” é a única peça teatral de Pablo Neruda, escrita na sua juventude, que aborda a vida do emigrante chileno (sendo Murieta também um herói para alguns mexicanos) na Califórnia, na época da procura e da “febre do ouro”.
Em Setembro de 1973, eu estava preso (por razões políticas) quando Neruda morreu. E ficámos a saber dessa notícia por meio de um recorte de jornal que alguém introduziu sub-repticiamente no interior da prisão.
No ano de 1974, já no exilio na RFA (República Federal Alemã ou Alemanha Ocidental, no período da “Guerra Fria”), participei – como convidado de um grupo chileno de exiliados – no Festival Internacional de Curta-Metragem de Oberhausen, foi aí que vi, pela primeira vez, num documentário realizado por um cineasta mexicano sobre o enterro de Pablo Neruda, a primeira grande manifestação contra Augusto Pinochet. Eram os punhos erguidos, as lágrimas e, junta ao hino nacional, a canção que nos acompanhou e nos acompanhará sempre: “A Internacional” 1.
As floristas de Santiago do Chile, chamadas “pergoleras” (há uma longa história sobre a luta destas mulheres em Santiago) engalanaram o carro fúnebre e não calaram as suas vozes. “Companheiro Pablo Neruda! Presente! Agora e sempre!”, repetiram, em incansáveis vezes, durante o cortejo fúnebre.
A notícia sobre a segunda morte anunciada de Neruda, não me surpreendeu, sabendo que quando Pablo Neruda morreu, em 23 de Setembro de 1973, apenas 12 dias se passaram desde o golpe militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende, no Chile, e que, então, todos os actos públicos foram proibidos. Por conseguinte, o caixão do poeta saiu da Clínica Santa Maria, em Santiago, “quase às escondidas”, acompanhado pela sua viúva, Matilde Urrutia, pela sua irmã e por uma amiga do casal. Mas, Neruda era popular demais para fazer isso sozinho. Sabe-se, igualmente, que amigos e chilenos se juntaram espontaneamente, na rua, ao carro fúnebre, enquanto os soldados armados que o vigiavam nada puderam fazer para impedir a multidão que o acompanhava…
Existe diversa documentação sobre outras intervenções da mão criminosa da ditadura chilena no estrangeiro, onde também esteve presente.
Por exemplo, o general Carlos Prats González, que foi comandante-chefe do Exército chileno no tempo de Salvador Allende, e a mulher, Sofía Esther Cuthbert, morreram em 1974, mesmo estando exilados em Buenos Aires, na Argentina. Quando o casal entrou num automóvel, uma bomba explodiu e matou o casal, nesse atentado.
Outro exemplo dessa influência directa de Pinochet no estrangeiro é o de Orlando Letelier del Solar, diplomata e político chileno que, posteriormente, se assumiu como activista político contra a ditadura de Augusto Pinochet, tendo sido um dos principais apoiantes do governo da Unidade Popular de Allende, inclusive ocupando cargos de destaque, como o de Embaixador do Chile nos Estados Unidos da América. Foi assassinado, juntamente com sua assistente, Ronni Muffet, em Washington, D.C. Nessas circunstâncias, admite-se que os agentes da DINA (Dirección de Inteligencia Nacional) – a polícia política do regime militar chileno –, terão entrado em contacto com exilados cubanos da CORU (Coordinación de Organizaciones Revolutionarias Unidas).
Refira-se ainda o caso de Bernardo Leighton Guzmán, advogado e político democrata-cristão, ministro do governo de Eduardo Frei, que sofreu em 1975, durante o seu exilio na Europa, um atentado contra a sua vida, à porta da sua casa (em Roma), apesar de ter sobrevivido, bem como a sua esposa, Ana Fresno. Esse atentado foi perpetrado por agentes italianos contactados pela DINA, no âmbito da Operação Condor (a Operación Cóndor2 ou Plano Condor). Apesar de não morrer, Bernardo Leighton viu afectadas as suas funções cerebrais e a sua mulher, Ana Fresno, ficou paraplégica de forma permanente.
Tal era o “prestígio” do regime de Pinochet, que o atentado que vitimou, a sangue frio, o social-democrata Olof Palme (em 28 de Fevereiro de 1986, em Estocolmo) foi imputado aos serviços secretos chilenos, o que ainda não está completamente esclarecido.
Quero terminar este artigo com o texto, de Gabriela Mistral, “Recado sobre Pablo Neruda”. Afortunadamente, os poetas não morrem:
“[…] Neruda significa un hombre nuevo en la América, una sensibilidad con la cual abre otro capítulo emocional americano. Su alta categoría arranca de su rotunda diferenciación. […] Ahora digamos la buena palabra americanidad. Neruda recuerda constantemente a Whitman mucho más que por su verso de vértebras desmedidas por un resuello largo y un desenfado de hombre americano sin trabas ni atajos. La americanidad se resuelve en esta obra en vigor suelto, en audacia dichosa y en ácida fertilidad. […]”
Porque a História se faz a partir de factos socialmente marcantes, ficam na memória colectiva as imagens da massiva e expressiva despedida do poeta Pablo Neruda, em que os familiares, os amigos e centenas de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre que percorreu as ruas de Santiago do Chile, em 25 de Setembro de 1973.
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Notas:
1 – “A Internacional” é um hino internacionalista, sendo também uma das canções mais conhecidas de todo o Mundo. Recordamos que a letra original da canção foi escrita em Francês, no ano de 1871, por Eugène Pottier, que tinha sido um dos membros da Comuna de Paris.
2 – Segundo a Wikipédia, o Plano Condor foi estabelecido oficialmente em 25 de Novembro de 1975, numa reunião realizada em Santiago do Chile entre Manuel Contreras, chefe da DINA (polícia secreta chilena), e os líderes dos serviços de inteligência militar da Argentina, da Bolívia, do Chile, do Paraguai e do Uruguai.
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09/03/2023