No meio é que está a virtude

 No meio é que está a virtude

Créditos fotográficos: Marvin Meyer (Unsplash)

Nos nossos dias, já não é possível viver de forma dita “normal” sem competências digitais. Trabalhamos e produzimos todo o tipo de bens, materiais ou imateriais, com recurso a ferramentas digitais. Cuidamos da saúde, vivemos e convivemos recorrendo a todo o tipo de meios digitais. O mundo em que vivemos está fortemente dependente de computadores e de redes de comunicação, que processam, transmitem e recebem informação digital.

É claro que, em qualquer sociedade, existem sempre exceções ou casos extremos, mas, porque a sociedade se quer inclusiva, são muitas as iniciativas e os programas de combate à exclusão digital, que abrangem variados setores e escalões etários. Neste contexto, são frequentes as ações de formação digital e de literacia mediática para idosos, desempregados e grupos vulneráveis.

Créditos fotográficos: Benjamin Hung (Unsplash)

Por outro lado, investe-se no futuro, atraindo o público mais jovem para as profissões fortemente baseadas em tecnologias da informação e comunicação, e realizam-se cursos de tecnologias emergentes. Investe-se, igualmente, em competências digitais para a educação, com projetos especificamente direcionados para a qualificação digital de professores. Muito do futuro de qualquer sociedade passa pela formação que, forçosamente, tem de abranger as competências digitais.

No entanto, como em quase tudo, há sempre exageros. Uma coisa é a inclusão digital e outra é a obrigatoriedade de limitar tudo ao “digital”. São cada vez mais frequentes os serviços e empresas cuja única interface com o público é a digital. Chatbots e assistentes virtuais “ouvem-nos”, mas não nos entendem. Nestes casos, o objetivo não é o de servir melhor o cliente, mas sim o de reduzir custos de operação à custa de um mau serviço ao cliente. Noutros casos, também em número crescente, o pagamento presencial de bens e de serviços (por exemplo, um café ou um almoço) só permite meios eletrónicos, banindo o pagamento em numerário, sob pretexto de uma qualquer modernização, contrariando a lei. Também estes são casos extremos, que denotam uma clara desumanização associada ao “mundo digital”.

Créditos fotográficos: Julien Tromeur (Unsplash)

Todavia, a pior exclusão digital não é a dos que não sabem ou não podem utilizar ferramentas digitais. É, sim, a dos que se excluem do mundo real, porque a sua dependência do mundo digital é tão grande e tão viciante que já nada mais existe para eles. São os chamados “junkies” digitais, cuja exclusão do mundo real até a eles próprios passa despercebida, pois para eles só existe o mundo que veem através do seu dispositivo digital – que, frequentemente, é um telemóvel. Poder-se-á dizer que também estes são casos extremos, mas é certo que são cada vez mais frequentes e abrangem todas as idades, ainda que com maior incidência nos mais jovens.

A este respeito, é curioso recorrer às tecnologias, em particular à já famosa ferramenta de processamento de linguagem natural ChatGPT, desenvolvida pela OpenAI, para tentar perceber o que a tecnologia nos pode ensinar sobre a dependência das tecnologias.

Vejamos um texto gerado pelo ChatGPT sobre a nossa dependência dos telemóveis:

É importante que encontremos um equilíbrio saudável entre o uso do telemóvel e o envolvimento com o mundo real. Devemos desligar o telemóvel de vez em quando, ter conversas cara a cara e desfrutar das atividades ao ar livre. É importante lembrar que a tecnologia é uma ferramenta que deve ser usada para melhorar a nossa qualidade de vida, mas nunca para substituir completamente a experiência humana.

Eu, traduzindo isto para Português mais corrente, diria que temos de evitar extremos. Por um lado, não queremos a exclusão de ninguém por iliteracia digital. Por outro, devemos evitar a (auto)exclusão digital, que leva um número crescente de pessoas a viver num mundo totalmente virtual, alheadas das pessoas que as rodeiam e do mundo em que vivem. Como diz a sabedoria popular (e não o ChatGPT), “nem tanto ao mar nem tanto à terra”, porque “no meio é que está a virtude”.

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02/03/2023

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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