No silêncio moram pássaros

 No silêncio moram pássaros

(Créditos fotográficos: Celeste Almeida Gonçalves)

Recomeçava o jogo. Um jogo no qual fingia esquecer-se do corpo, de todo o corpo, deixando-o pendurado num qualquer cabide, para se confinar à situação de ser uma estátua. Uma estátua toda feita de espírito, sem matéria, sem imagem, porque isso lhe daria uma identidade que preferia não ter. Uma estátua invisível, porém, inquieta. Neste processo de propositado esquecimento do corpo, deveria sublinhar as mãos e os olhos. Sobretudo, esses quereria dispensar. Porque as mãos se vêem nas suas imperfeições, nas suas hesitações, quando tocamos o mundo, que é sempre o nosso, mesmo quando é o dos outros. Olhamos para as mãos. São um outro rosto da nossa existência.

(Créditos fotográficos: I.am_nah – Unsplash)

Já os olhos, só os outros os podem ver. Porque, quando olhamos a nossa imagem refletida no espelho, ensaiamos aquela viagem ao centro de nós mesmos, precisamente através dos olhos, mergulhando neles e mirabolando, então, o olhar, por escassos momentos, procurando atingir o outro lado do eu. O quer que seja esse outro lado, tentamos a travessia. Mas ele não se deixa perscrutar numa imagem. Num reflexo. E foge, à deriva. E tentamos agarrá-lo, prendê-lo. E ele foge.

Talvez, por isso, escrevesse. Para vencer este e outros paradoxos. Poderia lá dispensar as mãos e os olhos. Pendurar o corpo num cabide, talvez. Mas a estátua invisível teria de ter mãos e olhos. Não, não poderia dispensá-los.

(Créditos fotográficos: Bacila Vlad – Unsplash)

Sentou-se em frente do computador. Aguardava uma ordem. Habituara-se a este ritual de espera, como se estivesse prestes a iniciar um combate. Arregaçou ligeiramente as mangas, colocou as mãos sobre o teclado e a folha em branco ali estava, no ecrã, aguardando que ela depositasse nela e nas que se seguiriam a sua dor e os seus anseios. Porque, sem anseios, de nada serve a dor. E a dor tem uma utilidade. Deu por si a pensar que não valeria a pena escrever sobre a dor, sobre o sofrimento. Quem quer saber da dor e do sofrimento alheios? Afinal, para quem escrevia? Nada disso interessava naquele momento. Aconchegou-se, pois, na ideia de que a dor e o sofrimento são universais e alimentam a vida. Alimentam-na mais do que a efémera alegria ou a inefável felicidade. Ouvia-se a dizer, para si mesma, que a alegria pouco nos ensina e que com o sofrimento tudo aprendemos ou, pelo menos, alguma coisa aprendemos.

Então, começou.

(Créditos fotográficos: Glenn Carstens-Peters – Unsplash)

Ela sabia que o que fosse escrever não principiava naquele momento, nem nas primeiras palavras escritas na página em branco, nem naquele encontro consigo mesma. Começava num espaço invisível da sua memória e num tempo desenhado pela presença dos outros, nessa mesma memória.

A vida sulca-nos por dentro, escreve no nosso corpo cada pedaço de alegria e de dor, cada sinal de tristeza e de lamento, cada palavra exaltada ou docemente pronunciada. E o olhar, esse mar imenso de sensações e de sentimentos tão diversos, fica, para sempre, preso dentro de nós. Pensava. Sentia. Escrevia. Ultimamente, tinha-se dado conta, do quanto recordamos o olhar, aqueles segundos em que os olhos de alguém atravessam os nossos, ficando, assim, cativos, como imagens fotográficas, pelo tempo fora. Ou, antes, somos nós que ficamos cativos naqueles olhares. Tanto faz.

As recordações dos últimos três anos eram, recentemente, o seu alimento. E estranhamente reparara que a dor a habitava, ainda. Não, não era só a alma que lhe doía. Era uma dor física. Começava no peito e descia pelas entranhas que se contorciam perante as imagens que apareciam, insidiosas e fortes, ainda não difusas nem fugazes, mas presenças acesas.

Por tudo isto, voltara a escrever. Um exercício tantas vezes interrompido. Como se os solavancos da vida lhe criassem esta necessidade e a urgência de partilhar o seu sentir. O sentir deles. O sentir entrelaçado naquela dialética de sentimentos e de ideias que os tornavam tão humanos, quanto desumanos; tão bondosos, quanto cruéis.

De qualquer modo, o amor estava ali. O amor estava ali e, por isso, voltava a escrever. Pelo amor.

(Créditos fotográficos: Danie Franco – Unsplash)

Fora ver a mãe. A sala estava escura. Se não fossem as nesgas de luz que, teimosamente, espreitavam pelas persianas verticais semi-cerradas, estaria mesmo demasiado escura. As cadeiras e os cadeirões estavam dispostos geometricamente ao longo do salão e uma panóplia de almofadas, de bancos, de mantas, de bengalas e de andarilhos abundavam por todo o espaço. Os rostos vincados, projectavam a sua presença, com o olhar perdido no vazio de toda aquela imensa sala, sacudido por perguntas e por vozes ecoando soltas, desconexas. Parecia não haver sentido. As cores em tons pastel das paredes, a televisão gritando estupidamente a vida, o bar a fazer de conta, a estante com os poucos livros que ninguém lia, o jardim que ninguém usava, com a solitária árvore abandonada, tudo se conjugava para fazer da existência uma ausência mascarada. E depois… a partida esperada de alguns, inesperada de outros. A morte a rondar a sorte. Todos com hora marcada. Todos com história contada, repetida nos pormenores, em cada momento que conseguiam conquistar com o seu engenho, a quem por ali passava.

– Quer água? – ouvia-se.

(Créditos fotográficos: Claudia Love – Unsplash)

Ela olhou para a mãe, intensamente. Não receava olhá-la. Ela já não lhe respondia. Não a interrogava. Podia, pois, olhá-la à vontade, espreitar bem, para dentro dos seus olhos, abusar daquele olhar para chegar a ela, para espreitar para dentro dela. Ela nada diria. Ela não lhe levaria a mal aquela indiscrição. Já não era dona de si. E os seus olhos estavam cegos para o mundo.

– Como estamos hoje? – alguém perguntava.

Recostado no cadeirão, um senhor sorria complacente, perante a pergunta escusada.

– Ora, estou como todos os dias, porque todos os dias são iguais. Tirando aqueles em que tenho mais dores, todos são iguais. – E o pensamento tecia recordações do vigor de outros tempos. Nele, a memória não se apagara. Ainda. Vivia, pois.

– Vamos lanchar!? – E já se ouvia o tilintar das chávenas, das cafeteiras e das leiteiras. O cheiro entrava-lhes à força pelas narinas, obrigando-os a procurar com o olhar o motivo do intervalo do tédio.

– Senhora! Senhora! – Alguém gritava, procurando uma resposta para a sua inquietação.

– Vá! Vamos lá… mais um bocadinho! – dizia uma senhora para a tia, recostada no cadeirão.

(Créditos fotográficos: Gert Stockmans – Unsplash)

Maria olhava para a mãe. Estava sentada trabalhando. Rasgava, num labor incessante, a sua roupa. Ora com as mãos, ora vergando-se, para que os dentes cortassem, como tesouras o fizeram outrora, as suas vestes. Maria pensava que as suas mãos obreiras inventavam trabalhos, quem sabe, congeminassem grandes obras. Ela trabalhava. Ela nunca soubera qual era a cor do descanso. Para uns, é verde. Para outros, azul. Mesmo, da cor do céu estrelado ou dos néons das cidades perdidas. Ela sempre olhou para essas cores de forma distraída. Agora, estava prisioneira do descanso obrigatório. Amarraram-na a uma cadeira e ali estava. Queriam forçá-la a descansar, a ela, que sempre trabalhara. O lençol branco que lhe envolvia o corpo era uma corrente de pano e ela ficava contorcendo-se dentro dele, procurando, quem sabe, o melhor contorno para o seu tormento. E as suas mãos labutando sempre, perdidas no exíguo espaço que alcançavam. Maria segurou-as, afagou-as e beijou-lhe a fronte.

– Eu já venho, sim? Não demoro! – disse-lhe.

E afastou-se devagar, fingindo que ela poderia notar a sua ausência. Depois, com os passos mais firmes e decididos, caminhou para o carro. A maldita dor a corroer-lhe o peito e ela a acelerar para longe dali, rumo a casa, rumo a si. Vinte e cinco quilómetros de pensamentos povoados pela mãe e pelo pai. Os seus rostos felizes, a dançarem na lembrança dos dias em que a urgência da vida marcava o compasso dos seus encontros, em que tanto havia para contar, tanto havia para fazer, tanto havia para sonhar.

Ao chegar, sorriu para António.

– Então, a tua mãe? – perguntou-lhe ele.

– Estava bem. Estava tranquila. Cada vez mais magrinha, parece-me. É da doença. – respondeu-lhe.

António sabia bem quando não lhe apetecia falar de um assunto. Poupava as palavras e cingia-se ao essencial.

Semana após semana, a visita à mãe repetia-se num ritual que a deixava vazia, pelo absurdo da ausência de alguém que, estando vivo, já não existe para si próprio.

Trazia os seus olhos perdidos, presos nos dela. Não, não foi a mãe que prendeu os seus olhos aos dela. Foi ela que os roubou à mãe e os trouxe consigo. E as mãos também. Trouxe as suas mãos, dobrando sem sentido um pano que levara, como quem leva um brinquedo. As mãos já contorcidas, com a saliência das veias e dos ossos, teimando na habilidade de outrora. Laboriosas… sempre inventando trabalhos. Escrevia: “A tua presença é permanente mãe. Percorro a linha suave do teu rosto. Procuro a curva do teu sorriso. As tuas mãos trémulas agarram fortemente as minhas. Fortemente e trémula, não é um paradoxo. Não, nesta doença. Balbucias palavras ao acaso e eu procuro o seu sentido. Noutros tempos, dizias palavras de ternura, palavras de felicidade, palavras protectoras e, tantas vezes, encorajadoras. Agora, as palavras são espantalhos. Mas eu estou aqui, junto de ti. Dou-te o meu sorriso, dou-te a minha mão. Pudera eu dar-te os meus sonhos e devolver-te os teus.” Redigia.

(Créditos fotográficos: Yoann Boyer – Unsplash)

As palavras cumpriam-se na página branca. Já não estava vazia. O teclado soava como se marcasse o tempo. Que tempo? Pensava. Escrevia: “Os teus olhos vagueiam perdidos de encontro aos meus e, de súbito, parece acender-se neles uma luz. Pareces acordar desse sono profundo da memória. E eu sorrio para ti. Falo-te de mim. E as tuas mãos, que seguram as minhas, distraídas se perdem de novo noutros contornos.”

A noite chegava todos os dias para lhe adormecer levemente a vida. Levemente. Mesmo de noite, Maria estava vigilante. Dir-se-ia que não dormia, verdadeiramente. Mas dormia. O quer que seja dormir. Talvez seja o mais próximo que temos da morte. Como se deixássemos de existir. Sabendo isso, adormecia na esperança de acordar de novo. De começar um novo dia. Dormia para acordar.

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18/03/2024

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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