Notas soltas sobre o nosso “querido mês de agosto”

 Notas soltas sobre o nosso “querido mês de agosto”

(pumpkin.pt)

No verão, o tempo existencial é outro. Talvez tenhamos mais descontração e se observem pormenores que nos escapam noutras épocas do ano. É provável que estes meses sejam mesmo diferentes e nos mostrem um Portugal mais exposto e intenso.

Enquanto panorama de um país contraditório, a praia é um bom começo de conversa, um espaço geográfico aberto e um território de múltiplas coexistências.

(www.mundolusiada.com.br)

Nestes areais de lazer e turismo, são muitas as nuances. Desde logo, nota-se a oposição entre o tempo excecional que deriva do afastamento em relação ao quotidiano e o tempo imparável e contínuo imposto pelo consumo e pela omnipresença do ecrã.

Protegidos por invólucros plastificados suspensos no pescoço ou acoplados ao braço, os smartphones dominam o ambiente, entram na água e vão a banhos. Mesmo submersos, os telefones inteligentes fotografam e filmam.

Jonathan Crary e a paralisia da modernidade.
(porumaoutranarrativa.medium.com)

Neste mundo tecnológico 24/7 (citando Jonathan Crary, referente a um acesso contínuo à Internet: 24 horas por dia, nos sete dias da semana), todos somos consumidores e produtores de conteúdos.

Nesta imersão digital, fotógrafos e cineastas amadores produzem selfies, encenam poses e fotografam mergulhos nas águas salgadas.

Estes sorrisos plastificados refletem a “Ditadura da felicidade”, de Edgar Cabanas e Eva Illouz (em 2019). Não importa a substância nem a experiência. É preciso mostrar aos outros que fomos ou estamos felizes e somos perfeitos, que vivemos espaços e tempos superlativos. Se a tudo isto juntarmos topónimos de prestígio e imagens apelativas de areias brancas, águas transparentes e palmeiras, tanto melhor.

(Direitos reservados)

Enquanto palco de ilusões, o areal turístico continua a ser um território ininterrupto de consumo. A circulação de serviços e a oferta de produtos que vão ao encontro do cliente não é uma novidade (a recente pandemia serve-nos de exemplo). Toalhas, óculos de sol, bolos e bebidas, massagens e tatuagens, cadeiras e barracas que protegem do sol e do vento, tudo se mercantiliza, tudo está disponível num espaço geográfico que é a continuidade do hipermercado.

Talvez para tirar partido do corpo estendido (e com o olhar apontado para cima) de uma parte dos veraneantes, este território do consumo apropriou-se dos céus. Muitas praias são sobrevoadas por pequenas avionetas que arrastam e expõem painéis que divulgam marcas, convidam a comprar e fazem o apelo à participação em eventos estivais.

Estes céus de verão espalham também algumas mensagens privadas. Porque estamos numa cultura que parece castigar o silêncio e a introspeção, é importante exibir os sentimentos no espaço público.

Seguindo uma moda inspirada num reality show da nova paisagem televisiva pós-moderna, num desses voos lia-se que S. ama A., assim dito, desta forma (omitem-se os nomes completos), para que todos vejam e não restem dúvidas.

(airemotions.com)

Seguindo a mesma lógica exibicionista, nos areais, notou-se a multiplicação de gadgets eletrónicos, como as colunas portáteis de som, que alargaram o território pessoal de quem escolhia a playlist e a impunha aos outros. Alguns desses aparelhos serviam, ao mesmo tempo, de travesseiro improvisado na cama atapetada pela toalha de praia.

Noutra parte do areal, um conjunto de banhistas de todas as idades reúne-se dentro de água, com parte do corpo submerso no mar. Em terra, uma jovem monitora orienta os movimentos; faz abanar as cinturas; ordena o levantamento das pernas, de início uma, depois outra; entusiasma e exalta o grupo e faz-lhes levantar os braços, primeiro o da direita, segue-se o da esquerda.

A exibição vai acabando. Antes disso, os participantes devem levantar e girar um colorido esparguete de piscina. Para fechar o exercício, a animada instrutora pede-lhes que golpeiem a água, todos em uníssono, com força e violência, para que o trovão se faça ouvir, uma e outra vez.

Em redor do grupo, levantam-se os telemóveis. Tudo é devidamente filmado, registado e, calcula-se, colocado nas redes sociais, como prova de uma experiência superlativa de felicidade.

(avozdoalgarve.pt)

Nesta geografia indefinida, o areal não é um território de exceção e a imersão digital é permanente. O mês de agosto vai captando e aprisionando a atenção através de jornalistas inexperientes e amadores que nos submergem num rol repetitivo de conteúdos trágicos. Estes variam entre os incêndios rurais, a seca, os acidentes rodoviários, a violência doméstica, os assaltos ou os conflitos entre gangues, tudo apresentado como se se tratasse de um espetáculo televisivo ou de uma hiper-realidade cinematográfica.

A vitimização coletiva não fica por aqui, pelo menos para quem pertence ao grupo etário acima dos 50 anos. Nesta faixa demográfica, a doença é um destino certo. Atuais ou futuros enfermos, esta geração será necessariamente afetada pela falta de cálcio, por dores reumáticas, por problemas de audição e insuficiências digestivas, pelo excesso de (mau) colesterol e, no caso dos homens, pelo funcionamento deficiente da próstata.

Propaganda antiga brasileira. Leite Vigor com o Capitão 7 (TV
Record). (br.pinterest.com)

A sequência seria longa e não ficaria por aqui num país que começa por produzir doentes que não podem evitar uma lista interminável de medicamentos e produtos preventivos. Tudo isto acompanhado de cadeirões especiais, sem os quais não nos poderemos sentar ou seremos incapazes de nos levantar.

Neste sistema híbrido e contraditório, cria-se doentes, mas deve produzir-se também turistas. Algumas revistas que foram pensadas como futuras publicações de referência para o debate profundo e sério de assuntos nacionais e internacionais de uma atualidade em ebulição, afinal chegam às bancas com capas inócuas que convidam ao passeio por regiões como o Alentejo ou o Ribatejo (são apenas exemplos), mostrando os melhores locais para comer, dormir e relaxar. Passear, comer e abstrair-nos, eis a fórmula.

A saga de estigmatização e adormecimento do “bom povo português” continua nos estúdios televisivos e nos programas matinais (não só de verão) que recebem e ouvem cidadãos anónimos que ali expõem as suas tragédias pessoais.

Nessas mesmas manhãs, entretém-se a população com concursos, convida-se a comunidade a telefonar e a participar num sorteio em que se dita o número privilegiado de quem vai entrar em direto. Primeiro, o comunicador de serviço quer saber o nome do candidato a ganhar 2500 euros, depois pergunta-se “Qual a sua terra?” (assim mesmo, “terra”) e “Quem o/a acompanha?”. Por vezes, questiona-se sobre o que vai almoçar. Logo de seguida, virá uma questão difícil, a tal que dará direito a um crédito monetário: “Que dia da semana é hoje? Se ontem foi segunda e amanhã quarta-feira, que dia da semana será hoje?” Entretanto, deixa-se uma pista preciosa: começa por um “t”!

(Direitos reservados)

Noutros casos, e aqui sente-se mais o verão, são os estúdios de televisão e os seus animadores urbanos que visitam o indígena no seu habitat natural. Nestas longas tardes, desce-se às profundezas das tradições rurais e da autenticidade do interior. Este é o Portugal genuíno e original, quase sempre filmado à mesa, com comes e bebes que intermedeiam o desfile de artistas coloridos que abrilhantam a festa, cantam e dançam num palco montado na praça central.

Por falar em espetáculos musicais, nos nossos telefones “inteligentes”, aqueles que protegemos da água do mar, continuam a passar imagens de um concerto de verão no qual um célebre cantor popular português faz flexões em palco.

Na mesma performance, ainda que os tempos e os espaços sejam outros, este mesmo artista vai mais longe, levanta a camisola e faz ondas com a barriga (e desculpe-se a crueza da linguagem).

Coldplay vão atuar no Estádio Cidade de Coimbra, em maio de 2023.
(© Everything Is New)

Já no final deste “querido mês de agosto”, e continuamos nos espetáculos musicais, assistiu-se a um fenómeno geográfico-social (inventei agora essa derivação) e à divisão da Humanidade entre quem conseguiu e quem não conseguiu entradas para os quatro concertos dos Coldplay a realizar em Coimbra, no mês de maio de 2023.

A corrida desenfreada aos bilhetes, também ela com contornos trágicos, parece ter aberto uma outra fenda e uma nova linha abissal na geografia do Mundo, com o necessário apoio psicológico aos condenados a ficar à porta do Estádio Cidade de Coimbra.

Sem qualquer ironia, este é um exercício de agregação de fragmentos, uma junção de peças soltas (mas reais) que nos mostra uma representação parcelar do nosso mês de agosto.

Cena do filme “Aquele Querido Mês de Agosto”, cujo título foi tirado da canção “Meu Querido Mês De Agosto”, do cantor popular Dino Meira.
Realizado por Miguel Gomes, é um género entre o documentário e a ficção. (www.vinilepurpurina.com)

Outros mundos observaríamos a partir de outras janelas de observação e análise. Contudo, sabe-se também que a população (não apenas a portuguesa) está submersa num complexo sistema de adormecimento, alienação e sonambulismo. Na raiz está uma constelação combinada de fatores como o consumo, as tecnologias, o lazer, o turismo e, entre outros, a comunicação social.

Já no longínquo 1983, Gilles Lipovetsky publicou um livro que anunciava uma “Era do Vazio”. Entende-se a intenção e deixa-se uma nota a respeito desta obra admirável. Contudo, nem este é um verdadeiro “vazio”, nem será neutro sob o ponto de vista cultural e, sobretudo (o que mais nos preocupa), político.

Entretanto, esperemos que A. também ame S, mas que, em nome das alterações climáticas, encontre um meio mais sustentável para enviar a resposta. Em vez de uma avioneta, porque não um telefonema, uma mensagem por sms ou um encontro pessoal, sem exposição pública.

01/09/2022

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João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

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