O 25 de Abril: um projeto coletivo sempre inacabado

 O 25 de Abril: um projeto coletivo sempre inacabado

Soldados com cravos nas armas, em Lisboa. (Créditos fotográficos: CONTATO – elmundo.es)

É fantástico, à distância de 50 anos, celebrar a Revolução dos Cravos, que encontrou no povo a soberania do seu destino popular. O povo é soberano e, nas democracias representativas, delega apenas o exercício do poder nos seus representantes, eleitos através do sufrágio universal, mas sem abdicar do direito a outros tipos de intervenção, como a crítica e a petição.

Entretanto, a História regista quer os tempos de democracia – imperfeita ou quase perfeita – quer os tempos de ditadura, tenha esta a roupagem que tiver. No caso português, um grupo de militares usurpara, em 1926, a soberania do povo e acabou por entregar o governo do país a um homem tido como génio, porque sanou as finanças públicas, à custa de intensos e prolongados sacrifícios, tidos como inevitáveis, mas suportados pelas famílias com menores recursos.

António de Oliveira Salazar (Créditos fotográficos: Reprodução –
oglobo.globo.com)

Para suporte do regime, eram postos de parte ou até eliminados aqueles que significassem problema, fosse qual fosse o quadrante político de que proviessem, com realce para os considerados comunistas, ainda que não o fossem.

Para fazer vincar o agrado geral do regime, implantou-se um Estado opressivo-repressivo travestido da aparente e propalada brandura de tratamento policial, correspondente à proverbial brandura de costumes do nosso povo. A igualdade de todos perante a lei só funcionava entre os mais pobres. Não entrámos, oficialmente, na guerra civil do país vizinho, nem na II Guerra Mundial, mas vivemos em economias de guerra e, mais tarde, suportámos a guerra colonial de 13 anos, em nome da descontínua integridade territorial da nação e, curiosamente, em nome da elevação civilizacional dos povos colonizados, remando contra a vontade do escol promotor da autonomização dos mesmos, com o geral apoio do concerto das nações.   

Guerra colonial portuguesa. (upload.wikimedia.org)

Em tudo isso, o líder solitário e genial foi sucedido por um político que se dizia “homem comum”, com o lema da evolução na continuidade. E, sem descaraterizar o regime, antes reforçando, em certos aspetos, o seu rigor, foi avançando com minirreformas sociais e políticas.

Porém, o cansaço da guerra colonial, a jugulação dos movimentos fautores de ideias democráticas e dos adversários do pensamento único ou da mordaça censória, a crise petrolífera (Quem não se lembra das enormes filas de automóveis parados à espera de se abastecerem de combustível, bem como das tentativas de açambarcamento?) e a denúncia de vários massacres, em tempo de guerra, criaram ambiente propício ao derrube, pelas armas, do regime ditatorial, que dava pela designação de Estado Novo, definindo o Estado Português como uma “República unitária e corporativa” (mais tarde, a definição intercalava o adjetivo “democrática”), mas em que a maior parte dos cidadãos era impedida de votar para a Assembleia Nacional (AN), a que o regime dava pouca relevância, ou para o chefe de Estado, o qual, a partir de 1958, era eleito por um colégio eleitoral.

Aspeto da sala na Sessão Solene de abertura da Assembleia Nacional, vendo-se na primeira fila o Governo, em 11 de janeiro de 1935. (Créditos fotográficos: Arquivo Fotográfico da Assembleia da República – AF-AR / parlamento.pt)

Havia, para os crimes políticos (ditos contra a segurança do Estado), tribunais especiais, que funcionavam em plenário. Às vezes, tratava-se de só de delito de opinião. A polícia política, através dos seus agentes e dos informadores, acolitada pelas forças de segurança, vigiava os costumes e as ideias. As pessoas não podiam exprimir ideias que fossem ou aparentassem algo contra o regime, nem podiam tomar determinadas atitudes, sendo, muitas vezes, obrigadas a falar (confessar crimes não cometidos, denunciar, apoiar as autoridades), a bater palmas a discursos e a ir a manifestações. Pessoas desconhecidas abeiravam-se, por vezes, do cidadão a provocar conversa contra o governo, para, a seguir, o denunciarem, se fossem informadores da polícia política, ou para os deterem, se fossem seus agentes.  

Prédio na Rua António Maria Cardoso, n.º 22, em Lisboa. Antiga sede da PIDE/DGS (até 1974). (researchgate.net)

Sobre a situação difícil que a maioria dos Portugueses vivia, vêm sendo publicados vários dados e até são publicados indicadores muito diferenciadores entre a situação vivida em 2022 e a vivida em 1974. Apenas destaco os seguintes: a maioria dos habitantes das aldeias e das vilas vivia da enxada, uma forma de empobrecer alegremente; a maioria das pessoas não passava do ensino primário (eu, filho de pais pobres, prossegui estudos, graças ao sacrifício da família e às enormes ajudas de pessoas generosas, algumas das quais nunca conheci); a maior parte das pessoas, nas aldeias e nos subúrbios das cidades, morria sem assistência médica, por falta de dinheiro, e muitas parturientes morriam de parto; estava-se longe de tudo, pois a maior parte das aldeias não era servida de estradas, não tinha água canalizada, nem eletricidade, nem saneamento básico; e abundavam as barracas, nas cidades. Enfim, era a miséria no seu máximo.

Bairro de lata em Lisboa, no ano de 1972. (Créditos fotográficos: Fernando Mariano Cardeira – filhosmadrugada.wordpress.com)

Recordo que, em fins de setembro de 1973 – onde estive, durante três meses, acolhido em casa de família amiga, com outros colegas estudantes em Estrasburgo, passando os dias a trabalhar na limpeza por conta de uma multinacional –, estando de volta a casa, na véspera da viagem de regresso a Portugal, passei por um grupo de argelinos. Um deles dirigiu-se-me, pedindo-me um franco. Com prontidão lho entreguei. Todavia, para entabular um pouco de conversa, perguntou-me pela minha nacionalidade. Como respondi que era português, devolveu-me o franco, explicando: “Não quero o teu franco. Vives num país de miséria. Não há miséria maior do que a guerra. E Caetano não acaba com a guerra. Fico a pedir a Alá que livre o teu país da guerra.” Agradeci e vim embora, mas sem nunca deixar de pensar no recado do argelino.

Como a emigração era travada, por causa da guerra, tinha ido para França, supostamente como estudante turista (pois, por motivo de estudos, havia-me sido concedido o adiamento militar), levando comigo umas centenas de escudos, mas declarando milhares e alegando alojamento em casa de familiares. O dinheiro ganho constituiu boa ajuda para pagar os estudos.

***

Américo Tomás fora reeleito (candidato único do regime), pelo colégio eleitoral, a 25 de julho de 1965; e, a 28 de outubro de 1973, a Ação Nacional Popular (ANP) ganhou por esmagadora maioria as eleições para a AN.

No dia 25 de julho de 1965, o colégio eleitoral, constituído por 585 pessoas, reúne na Sala das Sessões da Assembleia Nacional para a reeleição de Américo Tomás para Presidente da República, único candidato que se apresentou ao sufrágio. (Créditos fotográficos: Arquivo Fotográfico da Assembleia da República – AF-AR / parlamento.pt)

Entretanto, multiplicavam-se os rumores da força das ideias oposicionistas e, sobretudo, dos militares. E ganhava corpo a informação de que mais de 200 oficiais estavam contra a guerra, cuja solução era política, não militar. Pensavam alguns que a substituição dos chefes de Estado e do governo resolvia o problema, mas havia um escol politizado que pretendia suscitar a democracia. Quiçá a mostrar disponibilidade para o golpe de Estado, António de Spínola fez publicar o livro “Portugal e o Futuro”, a preconizar a federação de Estados de feição lusíada, que vinha a destempo, face à pressão internacional e às exigências dos movimentos de libertação. E, após a movimentação militar de Caldas da Rainha, a 16 de março de 1974, barrada por tropas fiéis – com a prisão de alguns oficiais e a dispersão de outros por diversas unidades do país –, Marcello Caetano era aplaudido por multidões, mas sem a presença dos militares.  

Movimentação militar de Caldas da Rainha, a 16 de março de 1974. A coluna militar saiu do quartel de Caldas da Rainha em direção a Lisboa, às quatro horas da madrugada, comandada pelo capitão Varela. (roinesxxi.blogs.sapo.pt)

A 24 de abril, regressado de férias da Páscoa, bisbilhotei, junto de um oficial do Exército, que haveria 200 capitães descontentes. E ele, retorquindo que havia muitos mais, sugeriu-me atenção à noite seguinte. Obviamente, passei-a colado ao transístor. Espantou-me ouvir, à meia-noite, na Rádio Renascença, “Grândola, Vila morena”. Mudava de estações e ouvia o reiterado apelo do Posto de Comando das Forças Armadas, via Rádio Clube Português.

A primeira reação foi de dúvida, mas logo emergiu a fiabilidade da mudança: a revolução na rua tornou-se popular; e os cravos substituíram as balas.

O 25 de abril de 1974 é um dos dias mais importantes da História portuguesa. (soprasi.com)

Os acontecimentos ditaram a saída das duas figuras de topo para a Madeira e o subsequente exílio no Brasil, a assunção do poder pela Junta de Salvação Nacional (JSN), a publicitação do Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), a revogação da Constituição de 1933, a dissolução da Assembleia Nacional e a destituição do Governo e do Conselho de Estado. A JSN e o MFA nomearam o Presidente da República, que empossou o governo provisório, a que se seguiram outros, com respaldo no Conselho de Estado (a partir de 11 de março de 1975, Conselho da Revolução), com poder constitucional e legislativo. Surgidos os partidos, houve eleições (em festa) – por voto universal, direto e secreto – para a Assembleia Constituinte, que elaborou a Constituição, que passou por sete revisões. Entretanto, foi proclamado o direito das colónias à autodeterminação e à independência. A primeira a ficar independente foi a Guiné-Bissau e a última foi Angola. Era o reino da liberdade no seu fulgor e da democracia política que se ia aprendendo, exercitando-a, por vezes, não da melhor forma.

Primeira sessão da Assembleia Constituinte, que foi o primeiro parlamento eleito em Portugal por sufrágio livre e universal, a 25 de abril de 1975. (ps.pt)

Até 25 de novembro de 1975, a liberdade – de festa ou de tensão – marcava a luta pela democracia representativa, contraposta à democracia direta, de cariz soviético ou terceiro-mundista, mas a evolução foi para a democracia representativa, com eleições livres, por sufrágio universal. A partir de 25 de abril de 1976, elege-se a Assembleia da República (AR, de que emana o governo), o chefe de Estado, as autarquias e os parlamentos regionais. Porém, ficou legitimada a ação de estruturas de base, como as comissões de moradores, e reconhecido o direito de petição da parte de grupos de cidadãos, sem censuras.

No ano letivo de 1974/1975, passei a lecionar numa escola privada. Em paralelo, trabalhava na redação de um semanário e secretariava reuniões de agricultores, dinamizadas pelo Instituto de Reorganização Agrária, em prol da sensibilização para o associativismo, nomeadamente o cooperativismo. Participei em diversas manifestações e sessões de esclarecimento (e promovi algumas); e o que, a princípio, era consensual, em torno da democracia, passou a divergente, sobre o ritmo da revolução, que obedecia a um programa, e sobre o tipo de democracia a instaurar. 

Os incêndios florestais eram atribuídos aos comunistas. Houve problemas em escolas primárias, devido à pretensa educação sexual e à queima de livros. Faculdades, escolas técnicas e liceus eram geridos por comissões de gestão. E os maiores de 14 anos puderam autopropor-se a exames, por disciplina, do 2.º ano de então e os maiores de 15 a exames do 5.º ano.

Sede do jornal República, na Rua da Misericórdia, n.º 116, em Lisboa. (a25abril.pt)

O encerramento do República e a ocupação da Rádio Renascença espoletaram a reação nacional, com protestos organizados por militantes da Igreja Católica, do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido do Centro Democrático Social (CDS) (dito democrata-cristão). Tal reação, replicada, sobretudo, no Norte, sensibilizou os militares moderados e ao 5.º Governo Provisório sucedeu o de Pinheiro de Azevedo.

Entretanto, a partir de 4 de novembro de 1975, passei ao ensino público, em que me profissionalizei, e fui aprendendo a perceber as pessoas e a apostar na inclusão. A polarização cedeu à convivência. Para todos, o 25 de Abril veio para ficar. A liberdade, nota essencial da democracia, é o bem que todos apreciam e não querem perder. E a democracia política abre para a democracia económica, social e cultural. Todos dizem gostar da democracia política, mas alguns hostilizam as outras vertentes.

A democracia conhece várias datas, mas o dia 25 de abril de 1974 é fundante, primordial, inesquecível e digno de celebração popular e institucional. E a liberdade desafia-nos a lutar por ela e a usá-la com responsabilidade, no respeito pela liberdade dos outros, no exercício dos direitos e na satisfação dos deveres. A dignidade humana o impõe.

A Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974. (200anos.justica.gov.pt)

Na alvorada de 25 de abril de 1974, surgiu a democracia, que foi sendo trabalhada, com avanços e recuos e cujo processo de institucionalização se concluiu em dezembro de 1976.

O país está muito melhor do que em 1974, como o demonstram os números percentuais dos indicadores que vêm sendo publicados. É óbvio que podia estar melhor. A pobreza devia ter sido erradicada, a economia devia estar mais forte, o sistema de saúde devia prosseguir sem falhas, o sistema educativo não devia ter lacunas. Todos têm direito a casa, trabalho, proteção e segurança. Porém, há sempre um “mas”. Como todos sabemos, não há bela sem senão. Assim, é preciso continuar o projeto coletivo de democracia política, económica, social e cultural, que nunca estará acabado, enquanto houver pessoas, com necessidades, com ambições, numa sociedade de contrastes e de contradições. Além disso, a liberdade e a democracia têm inimigos (muitos valem-se das instituições democráticas, que minam e descredibilizam).

Portanto, impõe-se o zelo, a vigilância e o trabalho democráticos.

Entretanto, haja festa. Apesar dos escolhos, o 25 de Abril é sempre a andar!

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25/04/2024

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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