O centro é que sabe ou… falemos de juízo poético
Digamos que, mesmo sabendo como se chega à atribuição do Prémio Nobel da Literatura (e a Prof.ª Maria Irene Ramalho de Sousa Santos teve recentemente um excelente, ainda que curtíssimo, spot a dar conta disso mesmo na página da Universidade de Coimbra), não consigo deixar de estar bastante incomodada com a escolha de Louise Glück.
Sabemos que há lobbies fortíssimos, sabemos que a tradução para o inglês é uma obrigatoriedade (e porquê o inglês?), sabemos que as questões de índole política (e não estou a falar de políticas de língua, nem de políticas literárias ou editoriais, mas da, dita, “Real Politik”) têm um peso bastante maior do que seria legítimo para ajuizar da qualidade de um texto. Mas, pergunto, não seria mais razoável avaliar, antes de tudo o resto, o tipo de trabalho com que se dá forma à língua e de que modo o prazer do texto se instala?
Claro que isso é sempre subjectivo, porque o prazer, como Freud nos ensinou e outros/as já tanto discutiram, resulta sempre de um ritmo, básico no nosso organismo, entre repetição e variação/inovação. Claro que o que é inovação para alguns e algumas é pura repetição para outros leitores e leitoras. Porém, alguém ouve algo que se aproxime de uma justificação nestes termos quando um prémio (não só o Nobel) é atribuído?
Não. Aquelas pessoas, que tiveram o privilégio de ajuizar, não se justificam. Ouvimos generalidades do tipo “obra de grande beleza”, “grande contributo para o entendimento da Humanidade”, “uma marca indelével na língua”, etc., etc. E as perguntas passam a ser: “beleza” para quem? qual “grande contributo”? qual Humanidade? diz quem? o que é “uma marca indelével”? para quem?
Tudo isto, porque se parte de um entendimento dos pressupostos artísticos e dos valores humanos como sendo universais. E todos e todas sabemos (ou teremos de saber, porque, de outro modo, seremos apenas considerados ignorantes) o que esses “universais” significam (ocidentais, judaico-cristãos, quase sempre brancos e masculinos) — e, se forem adornados com um pequeno toque de exotismo africano, sul-americano, ou até português, tanto melhor, porque se passa por incluir a diferença e a diversidade.
O facto de tão sonantes nomes portugueses terem corrido a traduzir e a tecer loas à laureada pelo Nobel demonstra bem o que tenho andado a dizer há anos: temos uma massa crítica de um país periférico, culturalmente colonizado, que parece só conseguir apreciar o que vem do centro e que não tem a mínima curiosidade de olhar para o resto do campo literário e/ou artístico, seja ele português ou do mundo.
Pior: muitas vezes nem é por falta de curiosidade ou de conhecimento, mas apenas porque, ao centro, se obtém maior reconhecimento académico se nos ocuparmos do que surge ao centro. É por isso que só se olha para o que resulta dessa centralidade — primeiro, lá de fora e, depois, de Lisboa. Nos campos literário e artístico portugueses, “tudo o resto é paisagem”.
A descrição de Alfredo Bosi, em Dialéctica da Colonização, sobre as elites brasileiras aplica-se na perfeição ao que ainda se passa, tantos séculos depois, lá, segundo o crítico brasileiro, mas, digo eu agora, também por cá.
Têm olhado para as montras e/ou os escaparates das livrarias portuguesas nos últimos tempos? Parece que qualquer best-seller norte-americano chega aqui, em tradução, em cerca de três meses. Autores e autoras portugueses/as, raríssimo vê-los à venda, incluindo até os/as já clássicos. E que dizer, por exemplo, da grande tradição oral literária portuguesa? (parece até haver uma certa vergonha em falar de um assunto que, pelos vistos, estará a ser entendido (?) como algo que nos caracteriza como subdesenvolvidos — Arnaldo Saraiva chamava-lhe por isso, já há muitos anos, uma “literatura marginalizada”).
E quanto ao trabalho da crítica, dentro da academia e fora dela (a que ainda resta por aí, nalguns jornais ou revistas menos especializadas)? Escreve-se sempre sobre mais do mesmo. Ninguém parece atrever-se a falar e/ou escrever sobre algo de inovador. Afinal, mais do mesmo é muito conveniente e não se correm riscos de patrocinar o, dito, ilegível! (e a pergunta passa a ser: “ilegível” para quem?)
Os jovens escritores e escritoras portuguesas que procuram a inovação sabem muito bem do que é que falo. Quando conseguem publicar (e é sempre numa pequena editora desconhecida e, quase sempre, pagam para isso), os livros não aparecem e as recensões, muito menos. Mesmo que recebam prémios, se não forem outorgados por organismos ao centro (Lisboa e talvez a Póvoa), continuarão a ser invisíveis. Talvez apadrinhados/as por alguém da capital, mas isso implica continuar a ser o mais convencional possível e a abandonar o desejo por uma literatura inovadora, que verdadeiramente responda às nossas circunstâncias históricas.
Voltando ao Nobel, o meu juízo poético sobre a poesia de Louise Glück encontra-a na linha do Novo Romantismo e de autores como o britânico Dylan Thomas, marcantes nas décadas de 40 e 50 do século passado. Um certo decadentismo e uma certa crise d’esprit, que então resultavam da vivência da guerra, são a sua principal característica, nomeadamente na centralidade do “eu” poético e no tom confessional.
Mas também é notória, de modo só aparentemente paradoxal, a marca do New Criticism, escola de crítica literária que se tornou dominante, a partir dessa década do século XX, na maioria das universidades de língua inglesa, naquilo que viria também a ser conhecido como o cânone Pound-Eliot, de contornos quase classicistas na sua ironia distanciada.
Hoje, 80 anos volvidos, achamos que esta poesia nos fala? Que responde às nossas circunstâncias?
Se a ideia era outorgar o prémio a uma mulher ocidental e branca, comparem com outras que hoje escrevem: Susan Howe, Rachel Blau DuPlessis, Lyn Hejinian, só para nomear três grandes poetas vivas nos EUA.
Ou vão ler a canadiana quebecoise Nicole Brossard, que terá em breve uma antologia entre nós, com a chancela da editora Palimage, de Coimbra, e em magnífica tradução de Hugo Amaral (certamente um grande acontecimento literário no nosso país. Estamos para ver a visibilidade que obterá…).
Apenas para que se possa comparar e talvez para perceber um pouco melhor o que venho de dizer, deixo aqui pequenos excertos, prosa poética, já no final de um dos seus longos poemas, por mim traduzido há muitos anos. Não se esqueçam de dar primazia ao sentido de cada linha/verso (que é como a poesia deve ser lida):
Ou vão ler a canadiana quebecoise Nicole Brossard, que terá em breve uma antologia entre nós, com a chancela da editora Palimage, de Coimbra, e em magnífica tradução de Hugo Amaral (certamente um grande acontecimento literário no nosso país. Estamos para ver a visibilidade que obterá…).
Apenas para que se possa comparar e talvez para perceber um pouco melhor o que venho de dizer, deixo aqui pequenos excertos, prosa poética, já no final de um dos seus longos poemas, por mim traduzido há muitos anos. Não se esqueçam de dar primazia ao sentido de cada linha/verso (que é como a poesia deve ser lida):
Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)