O dilema do secretário-geral no momento da contagem dos votos
Eleitoralmente, o que vai estar em causa nas eleições de 30 de Janeiro, mais do que o partido que irá ter a maioria dos votos é, na divisão esquerda/direita, qual delas poderá estar em condições políticas para formar governo. Embora a História raramente se repita, e quando se repete é para nos ensinar que não se devia ter promovido a sua repetição, é por isso que as esquerdas nem devem querer repetir o modelo de 2015 nem o de 2019. O primeiro, porque, sendo diminuto, acabou por ser a antecâmara do segundo. Ou seja, se o primeiro não se tivesse limitado a repor uma certa normalidade do modo de vida e tivesse ido mais além, naquilo em que passaria a existir uma nova normalidade, em que se tivessem verificado mudanças socialmente assinaláveis, as razões apresentadas para que o segundo só tivesse cumprido metade do seu mandato não teriam existido; estaríamos, neste momento, a equacionar as medidas indispensáveis para se continuar a ir mais além.
Se, nas democracias liberais, é no parlamento que se tomam as principais decisões quanto à governação do país, frequentemente, têm de se realizar entendimentos políticos ou alianças, para que o governo tenha robustez parlamentar e possa exercer o seu mandato com os graus de liberdade suficientes para equacionar as alternativas mais desejáveis; e para aplicá-las. Além do exercício aritmético de somar deputados para se obter um valor superior ao do adversário, o que deve interessar, sobretudo à esquerda, é o ponto de vista sobre que soluções devem ser aplicadas. As maiorias que se formam não terminam na contagem dos deputados que contribuem para essa maioria, continuam na sua representação social; e quantidade e qualidade estão intimamente associadas. Isto é, quem representa quem e que interesses estão a ser representados. Será legítimo fraccionar a resposta aos interesses, consoante o peso eleitoral de cada parceiro ou, pelo contrário, as respostas devem ser equacionadas à luz do seu valor social? Dito de outra maneira, quanto da fracção numérica deve estar presente nas soluções políticas e quanta fracção social devem representar? Em teoria, a fracção quantitativa devia ser instrumental relativamente à fracção social, mas sabe-se que isso não se passa assim.
Na maior parte das alianças, ou equivalentes, os deputados alienam os interesses de quem representam e passam a defender, quando muito, uma aproximação a esses interesses. Por exemplo, que base social representa o Partido Socialista? Se dissermos que é maioritariamente a classe média, não andaremos longe da verdade. Mas esta classe média é, por outro lado, maioritariamente assalariada, com preocupações quanto ao rendimento, ao emprego, aos serviços de saúde, à escola, à segurança social, à mobilidade e ao ambiente. Estas preocupações estarão assim tão longe das preocupações dos operários, eles também assalariados? Havendo distinções entre eles, não. Se for assim, o que se pede ao Partido Socialista (PS) é que represente bem a classe média, cuja mobilidade social é conhecida. E daí a sua instabilidade, uma vez que a ascensão leva, por vezes, a mudanças na representação política. Será, então, na intersecção daqueles dois interesses, cuja área vai variando, que se pode encontrar o numerador do entendimento entre formações políticas de esquerda.
Percebe-se que o Partido Social Democrata deseje invadir o espaço eleitoral do PS, uma vez que, à sua direita, a representação política começa a ficar saturada. Cabe, por isso, ao PS travar esse assédio, não caindo na tentação de atrair o eleitorado à sua esquerda, porque não é essa a sua vocação; e, quando o faz, vai cair em contradições insanáveis, que só prejudicam os interesses de quem circunstancialmente pretendeu representar. Se fizer isso, serão os sociais-democratas a sofrer uma pesada derrota; o contrário, contará sempre com adversários cuja capacidade de resistência é conhecida. Não interessa, por essas razões, responder ao desafio dos sociais-democratas sobre a viabilização de governos minoritários. Isso é um exercício cujas variáveis são, até 30 de Janeiro, incógnitas, ainda não são o problema. Por mim, diria ao líder daquele partido que tivesse paciência, trinta dias passam num instante.
De acordo com a última sondagem publicada pelo Expresso, a um mês do acto eleitoral, o conjunto do centro-esquerda e da esquerda (com 49%) tem mais cinco pontos percentuais do que toda a direita, incluindo a sua extrema, e mais 12 pontos percentuais, se esta for excluída. O PAN (Pessoas-Animais-Natureza) já declarou que oferece os seus deputados a quem tiver a maioria, por isso não o inclui nas contas. Claro que o secretário-geral do PS, pelo menos para efeitos eleitorais, vai querer fechar os olhos a tudo quanto as sondagens vêm dizendo, refugiando-se na eterna expressão: as urnas é que contam. Nisso tem razão. Mas qualquer político experimentado não deve deixar de levar em linha de conta a voz das sondagens, e o que elas vão exprimindo. E ele, também não deixará de levar tal variável em linha de conta, obviamente. Por isso, é bem possível que se vá encontrar no principal dilema da sua vida política, quando a contagem dos votos terminar, já na madrugada de 31 de Janeiro. E o dilema será: o que vou fazer com esta vitória eleitoral? Se acreditarmos no que o Presidente da República vem afirmando desde Outubro, irá exigir uma maioria estável no parlamento, com, pelo menos, 116 deputados que apoiem o governo durante quatro anos. Isso só será conseguido se o secretário-geral do PS decidir que o seu “um dia” seja um entendimento com o Bloco de Esquerda e com o Partido Comunista Português, já no dia 1 de Janeiro, do género: novo ano, vida nova. Fora deste cenário, a equação governamental será tão problemática que pode bem acontecer que, dentro dos prazos legais, se tenha de fazer novas eleições. E lá teremos o ano de 2022 todo estragado. E, se isso se verificar, não nos venham dizer que a responsabilidade foi da esquerda. Porque, nesse caso, a probabilidade de a direita vir novamente a governar aumenta consideravelmente.
04/01/2022