O drama dos Peruanos e de toda América Latina

 O drama dos Peruanos e de toda América Latina

Dina Boluarte tornou-se a primeira mulher a assumir a presidência do Peru, depois de o seu antecessor, Pedro Castillo, ter sido destituído pelo Congresso da República. (Créditos fotográficos: Ernesto Arias – Reuters)

Para quem acompanha a realidade latino-americana desde há décadas, uma lição tem sido dada, recorrentemente: tentativas de mudança por via de eleições e de conciliações não conseguem avançar, de maneira significativa, em nenhum lugar. Ou a própria classe dominante local/regional trata de estrangular as experiências ou o império estadunidense estende as suas garras armadas para defender os seus interesses geopolíticos.

É um eterno retorno, ano após ano, década após década, que só encontrou barreira até agora num único lugar: Cuba, a ilha do Caribe que decidiu fazer uma revolução radical e que, a altos custos, continua mantendo os ganhos estruturais desse processo. Nos demais países, sempre que alguma proposta mais popular avança (e nem precisa ser de esquerda), a receita é infalível: derrocada.

Hugo Chávez foi muito apoiado nas eleições de 1998. (Créditos fotográficos: Reuters/Kimberly White/File Photo – g1.globo.com)

Na História contemporânea, o continente latino-americano viveu algumas experiências alvissareiras que se seguiram ao aparecimento do furacão Hugo Chávez, no final dos anos 1990. Veio a chamada revolução bolivariana na Venezuela, a revolução cultural na Bolívia e a revolução cidadã no Equador. É importante tornar claro que nenhuma destas três foram, de facto, revoluções: Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales foram eleitos dentro dos marcos da chamada “democracia burguesa”, embora com forte adesão popular. E ainda teve Jean-Bertrand Aristide no Haiti, Nestor Kirchner na Argentina, Fernando Lugo no Paraguai, José Mujica no Uruguai, Manuel Zelaya nas Honduras e Lula da Silva no Brasil, para indicar apenas os mais comentados.

Na História contemporânea, o continente latino-americano viveu algumas experiências alvissareiras que se seguiram ao aparecimento do furacão Hugo Chávez, no final dos anos 1990

Esse momento que irrompeu no alvorecer do século XXI foi chamado de “onda vermelha”, embora o vermelhusco de cada um fosse bastante matizado. Pelo que se viu, apenas Chávez tentou ir mais fundo nos processos de mudança e – mesmo tendo sofrido um golpe, dado pela elite local com a assessoria dos Estados Unidos da América (EUA) – conseguiu mobilizar a população, voltando ao poder com toda a força. Acabou morto em 2012, vítima de câncer genuíno ou provocado, isso ainda está nebuloso.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, à direita, e sua esposa Cilia Flores acenam ao chegarem ao prédio da Assembleia Nacional para uma sessão do Congresso Constitucional. (Créditos fotográficos: Ariana Cubillos / AP – eu.usatoday.com)

A Venezuela, agora com Nicolás Maduro, segue sob o ataque do “império” e se mantém paralisada. Aristide foi retirado da presidência do Haiti e o país foi ocupado militarmente, tendo sido sistematicamente destruído até hoje. Rafael Correa (ex-presidente do Equador) teve mais um mandato e descambou para o liberalismo, deixando o Equador nas mãos de Lenín Moreno, que acabou de colocar todas as conquistas do primeiro mandato de Correa no lixo.

Os Kirchner foram violentamente atacados pela mídia argentina, de mãos dadas com a classe dominante local, assessorada pelos EUA. O que levou à vitória de Mauricio Macri e ao saque das riquezas. Fernando Lugo (que foi presidente do Paraguai de 2008 até 2012) sofreu um golpe parlamentar, Lula passou o bastão a Dilma Rousseff que também sofreu um golpe parlamentar (impeachment), Zelaya foi arrancado da presidência das Honduras pelo serviço secreto estadunidense, Lula depois acabou preso. Mujica sobreviveu, mas ao fim o Uruguai acabou voltando para a direita. Ou seja, a onda vermelha desbotou totalmente.

Simón Bolívar foi um militar, revolucionário e estadista venezuelano. Também conhecido por O Libertador”, Bolívar é um dos maiores vultos da História latino-americana. (ocastendo.blogs.sapo.pt)

Para quem acompanha a História da América Latina, isso não se configura novidade. Desde as guerras da independência, tem sido assim. Simón Bolívar, que sonhava com o continente unificado e forte, foi traído e morreu esquecido, enquanto os seus antigos generais brigavam para tomar para si fragmentos da Pátria Grande esquartejada. E por aí vai, os exemplos são intermináveis, ainda que em conjunturas diferentes. Dentro do sistema capitalista de produção que se tornou vitorioso no Mundo, os países centrais, hoje com os Estados Unidos na cabeça, tudo fazem para manter a periferia destroçada e dependente, sem chance de erguer a cabeça.

Simón Bolívar, que sonhava com o continente unificado e forte, foi traído e morreu esquecido, enquanto os seus antigos generais brigavam para tomar para si fragmentos da Pátria Grande esquartejada

O Peru não escapa do destino manifesto desenhado pelo “império”. Teve os seus ditadores e gângsteres comandando os destinos do povo, sem nunca conseguir mudar as coisas. Alan García (ex-presidente do Peru), da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), foi uma exceção, eleito em 1985, no auge dos seus 35 anos, com uma proposta de esquerda. Encerrou o seu mandato e foi seguido por Alberto Fujimori, que logo deu um golpe instaurando a ditadura. Voltou à presidência em 2004, mas já não era tão vermelho. Acabou por se suicidar quando o judiciário peruano o condenou à prisão.

Dina Boluarte era vice-presidente do Peru. (Créditos fotográficos: Sebastian Castaneda/Reuters)

É por isso que o presidente do IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos), Nildo Ouriques, insiste em dizer que no Peru não aconteceu nada, além de mais do mesmo. Pedro Castillo elegeu-se num momento em que o sistema político local estava completamente esfacelado, diante dos desmandos de corrupção de presidentes que se sucediam e caiam. Foi considerado um azarão. Professor, sindicalista, levou com ele algumas bandeiras da esquerda, mas não era, de forma alguma, um homem da esquerda. Ainda assim, a classe dominante local não poderia aceitar alguém completamente fora de seu comando na presidência. E foi por isso mesmo que o Congresso, tomado pela oposição, não permitiu que Castillo governasse, imputando derrota atrás de derrota. Castillo não convocou o povo, foi aceitando as imposições que vinham do Congresso sobre a sua equipa de governo e a derrocada foi uma consequência natural.

O ex-presidente peruano Pedro Castillo. (© (EPA/Paolo Aguilar – dn.pt)

Um elemento importante pontuado por Nildo Ouriques (do IELA) e que tem escapado da análise tradicional – geralmente, superficial – foi a reforma do judiciário comandada pelo Banco Mundial em, praticamente, todos os países da América Latina no começo dos anos 1990, quando também teve início a onda considerada neoliberal. Essa reforma garantiu um caráter de classe ultraliberal ao sistema judiciário, colocou no centro do poder e deu protagonismo aos togados. Por isso, “esse ativismo judicial não é um acidente brasileiro”. Isto é, ele “perpassa a América Latina inteira”. E foi esse ativismo judicial que criminalizou Zelaya, Lugo, Dilma, Cristina… “Basta ver os dados”, refere Nildo Ouriques, notando que o judiciário permite avanços nos direitos civis, das mulheres, dos LGBT, dos negros, etc., mas “não permite que se avance um centímetro nos direitos trabalhistas”. Pelo contrário, faz é garantir a retirada de direitos.

A batalha dada no Peru contra Castillo estava nesse campo. Ele era acusado de incapacidade moral, ou seja, uma invenção política que estava adquirindo potência jurídica. O Congresso ia para a terceira tentativa de derrubada. Pedro Castillo já havia se defendido de todas as formas no campo jurídico e não havia provas concretas contra ele sobre corrupção ou coisa assim. Era incapacidade moral. A direita não queria deixá-lo governar.

Na América Latina, outra lição se coloca todos os dias para aqueles que sonham com um tempo de liberdade: a esquerda precisa de ter um projeto de poder e não apenas de governo

Então, Castillo se precipitou e tentou frear o golpe que viria a suceder no Congresso. Mas, não foi capaz de garantir uma articulação mínima com os seus aliados ou com as forças armadas. Perdeu. Está preso. Assim como estará Cristina Kirchner logo mais. O judiciário atuando sem parada, completamente mancomunado com a política da classe dominante, como foi no Brasil, observando-se os processos contra Lula. Todo o desmanche provocado por Jair Bolsonaro só atingiu trabalhadores e a classe média. A burguesia segue ilesa.

Esse é o drama. Agora, no Peru, Dina Boluarte assume o cargo de vice-presidente, provavelmente, sem poder algum. Ou se tornará títere como foi Jeanine Áñez Chávez (que se autoproclamou presidente interina, em 2019) na Bolívia ou garantirá certa estabilidade até novas eleições. Mas, possivelmente, será mais um capítulo de fracasso.

Na América Latina, outra lição se coloca todos os dias para aqueles que sonham com um tempo de liberdade: a esquerda precisa de ter um projeto de poder e não apenas de governo. Essa é uma tecla que Nildo Ouriques tem batido, desde há muito tempo, nas suas análises sobre o continente. Mas, sem eco.

Castillo precipitou-se e tentou frear o golpe que viria a suceder no Congresso. Mas, não foi capaz de garantir uma articulação mínima com os seus aliados ou com as forças armadas. (Créditos fotográficos: Ernesto Arias via Reuters)

No caso do Peru, Pedro Castillo manteve no Banco Central um presidente que ali estava já há 16 anos, atravessando governos; e não foi capaz de apresentar uma política econômica transformadora, soberana, que partisse das bases trabalhadoras. Seguiu o mesmo diapasão da velha classe dominante, que apesar da crise política, seguiu intocável. No Peru de hoje, 76% da força de trabalho é informal. A vida dos trabalhadores só decai enquanto o ciclo de negócios segue excelente e os ricos seguem cada vez mais ricos. Tudo está bem para a classe dominante. A crise do sistema político, que não tem fim, não significa crise da dominação burguesa.

É assim que a banda toca na América dependente e subdesenvolvida.

12/12/2022

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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