O elo com a civilização para resgatar a democracia
Estou entre as árvores e o barulho dos pássaros — o único elo que me remete à civilização é o som dos carros distantes, que passam na rodovia. Dois meses atrás, estava em casa, com a sinfonia habitual aos ouvidos: ônibus, sirenes, buzinas…
E foi lá, em meio a duas grandes avenidas, no dia 22 de fevereiro, que me aproximei deste, que agora é parte transformadora da minha e de outras vidas. Recebi uma mensagem do meu irmão: “Chegaram casos de coronavírus a Itália, no Norte, perto de Veneza”. Ele mora em Roma. Aconselhei não viajar. Era carnaval.
No Brasil, a maior festa popular estava no auge, pouco se noticiava sobre o vírus, que ainda nem era classificado como pandemia. Mas a vida cotidiana já estava muito longe da aura paradisíaca que faz deste rito o momento de mais pura alegria do brasileiro.
Antes que chegasse a quarta-feira de cinzas, ele desembarcou: primeiro caso da América Latina, na terça-feira (25), um infectado, morador de São Paulo, 61 anos, que esteve na Itália, deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, o mais conceituado centro hospitalar particular do País. E, similarmente, em março, aconteceu no meu estado, Goiás, em hospitais privados de referência em Goiânia (a capital), três mulheres que vieram do exterior.
Não é de hoje que doenças chegam em terras tupiniquins trazidas de além-mar, é desde antes de nos chamarmos Brasil. O vírus aportou nesta nação continental, encontrando povos diferentes, que vivem em um intrigante caldeirão social.
E dou a ele, o novo coronavírus, ares personalíssimos, por esta sensação de ele vir caminhando de país em país, de relato em relato. Até quase tornar-se palpável. Das áreas mais ricas, dos hospitais privados, aos poucos ele vai adentrando as regiões periféricas das cidades e ocupando os leitos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Por aqui, a distância espacial de uma área nobre até as favelas, às vezes pode ser um muro, ou também uma viagem de três horas de transporte coletivo. Era um trajeto esperado, para ele, que já atravessou fronteiras mais longínquas, mas que as autoridades de saúde pretendiam postergar ao máximo possível.
O abismo social reflexo da nossa construção histórica molda o enfrentamento e a forma que os diferentes grupos são impactados. E, embora garantido constitucionalmente, não há estruturas estáveis que atuem reconhecendo a saúde como um bem comum. Para ter-se noção, logo no início da crise sanitária, por aqui, os preços do álcool em gel foram às alturas, e a higienização das mãos com o produto tornou-se privilégio de poucos. Há ainda aqueles que não têm acesso ao saneamento básico. Como falar de prevenção?
Os limites desiguais dentro das grandes metrópoles foram escancarados, enquanto alguns são cidadãos, muitos são apenas citadinos. E são estas pessoas que serão atendidas pelo SUS, que tem sofrido grandes ataques nos últimos anos, com o congelamento do orçamento e o desfinanciamento crônico. A consequência, aqui nos Hospitais estaduais de Goiás, é o total de 264 profissionais de saúde já afastados por Covid-19. Mas é preciso deixar claro, que, ainda assim, o SUS é o maior patrimônio do povo brasileiro, com acesso universal e larga cobertura geográfica.
Mas para que a saúde pública funcione é preciso orientar a população. Em princípio, o medo, somado às normas dos governadores, às excessivas coberturas midiáticas, fez com que a população ficasse em casa, cumprisse a única medida eficaz que sabíamos de sobrevivência: o isolamento.