O estilo românico

 O estilo românico

Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa. (visitportugal.com)

Apetece-me uma conversa ficcionada com um imaginado amigo erudito, hoje, sobre o Românico, um estilo artístico nascido e desenvolvido na Idade Média, com expressão mais visível na arquitectura, mas também na escultura e na pintura, com destaque para a iluminura.

Devo acrescentar que os meus conhecimentos sobre estes e outros temas resultam do que pude aprender nos anos que se seguiram à minha jubilação. Quando a vida profissional, intensa e absorvente, me deu espaço para tal. Não são nem poderiam ser profundos. São generalidades que me satisfazem, como curioso, e acredito que interessam aos habituais leitores do sinalAberto. E como, por vício profissional, me sinto obrigado a partilhar com os outros o que aprendi e que vou aprendendo, aqui me tendes com mais uma conversa com esse meu amigo que sabe de tudo e de mais alguma coisa.

Igreja Notre-Dame la Grande de Poitiers, em França. (todamateria.com.br)

–  Esse estilo – começou ele por dizer – situa-se, grosso modo, entre os séculos X e XII, fortemente influenciado pelo legado artístico do Império Romano e, dai, o qualificativo “românico”. Podemos dizer que tem expressão, sobretudo, na arquitectura, na pintura e na escultura, sendo que, em termos de visibilidade e importância, se destaca largamente a arquitectura. Esta expressão artística depara-se-nos, essencialmente, na edificação de mosteiros, de conventos e de igrejas, algumas delas grandiosas, como são as catedrais, a testemunharem o poder espiritual e material do clero. Deixa-me acrescentar que a palavra “catedral” nasceu no Latim medieval como forma reduzida de ecclesia cathedralis, isto é, igreja onde o bispo tinha assento ou cátedra.

– Julgo saber que o Românico surgiu na Normandia.

–  Exacto. Neste estilo de construção, destacam-se as igrejas, muitas delas com planta em formato de cruz latina, com três naves, mais desenvolvidas na horizontal do que em altura. Os arcos de volta perfeita, as grossas paredes, os contrafortes e as abóbadas de cruzamento, em pedra de cantaria aparelhada, dão-lhe uma solidez que fez delas as chamadas “fortalezas de Deus”. Os interiores são austeros e mal iluminados por abertura estreitas nas paredes, mantendo uma penumbra apropriada à espiritualidade do local e ao recolhimento da oração. Nessas igrejas, guardavam-se relíquias, como ossos e objectos, que eram ou se dizia serem pertença de santos e de Jesus. Grande número destas igrejas foram erigidas nos caminhos que levavam a Santiago de Compostela, de peregrinação ao santo apóstolo Tiago. Muitas delas surgiram, em Portugal, por acção das ordens monásticas, com destaque para os monges de Cluny.

Cluny (1088-1130). Reconstituição computadorizada. (ricardocosta.com)

– No Norte do país, existe um circuito turístico-cultural organizado sob o nome de “Rota do Românico”, que reúne, atualmente, 58 monumentos e dois centros de interpretação, distribuídos por 12 municípios dos vales do Sousa, do Douro e do Tâmega.

– Conheço-as todas, mas importa realçar a Sé Velha de Coimbra, considerada a igreja mais expressiva do Românico religioso português, classificada Monumento Nacional, em 1910. Foi começada a construir em 1139, por minha ordem, após a batalha de Ourique. Anos mais tarde, após a tomada de Lisboa aos mouros, em 1147, mandei erigir a Sé Catedral de Lisboa.

Vista exterior da abside principal (capela-mor) e torre-lanterna românicas da Sé Velha, em Coimbra. (pt.wikipedia.org)

– Entre outros que me lembre, concedi forais e promovi o começo das construções do Castelo e Convento de Cristo, em Tomar, do Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, da Sé Velha de Coimbra, da Sé Catedral de Évora e da Sé Catedral de Lisboa. Fundei, ainda, a abadia de Alcobaça e, com isso, colonizei uma vasta e fértil região. Lembro-me que teve início em 1178, após doação de terrenos que fiz aos monges da Ordem de Cister.

– Exacto e sei, ainda, que a Sé de Évora, iniciada em 1186, mostra a transição do românico ao gótico. Sem falar das profundas alterações barrocas no altar-mor, da catedral eborense, mandadas fazer por D. João V.

Fachada principal da Sé Catedral de Évora. (visitevora.net)

– Mas também há exemplos deste estilo em castelos e residências de alguns nobres,

– Sim. Não muitos, mas há. O Domus Municipalis, em Bragança, é um dos mais importantes testemunhos do Românico civil português, com características únicas em toda a Península Ibérica.

– É consensual que a pintura românica foi uma expressão do poder da Igreja Católica, na Idade Média.

– Não só a românica, mas outras, de outros estilos, que lhe sucederam. Mas detenhamo-nos nesta. Devo precisar que o estilo românico na pintura vigorou na maior parte da Europa medieval, entre meados do século X e meados do XII, e que se se resumiu, essencialmente, aos frescos pintados nas paredes interiores de igrejas, mosteiros e conventos, e às iluminuras.

Domus Municipalis, em Bragança. (amontesinho.pt)

– Frescos total ou parcialmente apagados pelo tempo, por vandalizações ou outras causas.

– Sim. A imensa maioria dos frescos românicos, perderam-se para sempre e o mesmo aconteceu a muitos frescos góticos.

– Os poucos que sobrevivem são, por isso, preciosos testemunhos, não só da arte de então, mas também e sobretudo, das mensagens que transmitiam.

– Na imensa maioria, religiosas.

– Exacto. Nesse tempo, a totalidade do povo não sabia ler nem escrever. Fazer fiéis devotos e doutriná-los nos preceitos da Santa Madre Igreja era não só do interesse do clero, como no da nobreza, que os explorava. Concebidas para analfabetos e feitas por encomenda dos dignitários do clero, estas pinturas representam, sobretudo, passagens da Bíblia, da vida de Cristo e dos Santos e outros ensinamentos do foro teológico.

Em La Viga de la Pasión (criada no primeiro terço do século XIII, em Espanha), observamos a típica deformação da arte românica através de figuras alongadas. (culturagenial.com)

– O analfabetismo e a servidão sempre se complementaram.

– Exacto. A pintura românica é descritiva e mais simbólica do que realista, revela uma interpretação mística da realidade, não usa perspectiva nem profundidade, deforma as figuras representadas, e dá, a todas, as mesmas feições convencionais, aumentando o tamanho das que há interesse em salientar. Cristo, por exemplo, é representado maior do que as outras figuras, a fim de realçar a sua importância e divindade. Como uma das características principais desta pintura, destaca-se o uso de cores puras e fortes, sem meios-tons nem recurso a luz nem a sombras. Embora relativamente raras, há as chamadas pinturas de cavalete, sobre tábuas de madeira, quase sempre destinadas à ornamentação de altares.

– Há, ainda, as iluminuras.

(multiploscaminhos.blogspot.com)

– Devo começar por dizer que a iluminura, entendida como uma das muitas expressões da pintura, é a ilustração sobre pergaminhos soltos ou sobre as páginas de livros manuscritos. Era executada, sobretudo, nos mosteiros, por monges iluministas. Estes verdadeiros artistas anónimos deixaram-nos testemunhos da sua virtuosidade, quer em grandes livros litúrgicos quer noutros encomendados por clientes da nobreza e da burguesia rica. Na transcrição de livros, os copistas deixavam espaços para que os iluministas fizessem as ilustrações, os cabeçalhos, os títulos ou as letras capitais, ou seja, as maiúsculas com que se iniciava um texto. Devo acrescentar que, mais tarde, a iluminura gótica atingiu um grau de pormenor, perfeição e beleza que influenciou muitos pintores.

– Autênticas preciosidades.

(multiploscaminhos.blogspot.com)

– A temática é quase exclusivamente cristã. Nos raros casos em que se trata de temas profanos, revela propósitos moralizadores. Nestas iluminuras transparecem, por vezes, traços da chamada “arte insular,” produzida nas ilhas Britânicas, após a queda do Império Romano, visíveis nos entrelaçamentos de estilizações fantasiadas de animais e plantas, influências do estilo moçárabe, onde o desenho do arco mourisco é frequente, e, ainda, a tradição cristã com a herança figurativa pagã patente nos bestiários…

– Bestiários?

– Sim. Bestiários eram uma espécie de catálogos manuscritos realizados por monges católicos, durante a Baixa Idade Média, geralmente usados com propósitos moralizadores, contendo informação sobre animais reais e fantásticos.

– Obrigado.

– Os mosteiros de Santa Cruz de Coimbra, de São Mamede do Lorvão e de Santa Maria de Alcobaça guardam preciosos manuscritos iluminados do Românico. De entre eles ficaram na História da pintura portuguesa do século XII, o “Livro das Aves”, a “Bíblia de Santa Cruz de Coimbra” e o “Apocalipse do Lorvão”.

Mosteiro de Lorvão, no concelho de Penacova. (mosteiro-de-lorvao.webnode.pt)

– Falemos agora da escultura românica.

À semelhança da pintura, a escultura românica, praticamente, toda ela incorporada na arquitectura religiosa, visava não só a decoração das igrejas, mas, sobretudo, educar religiosamente os fiéis marcados pelo analfabetismo próprio desse tempo. Foi, em especial, nas novas igrejas contruídas em locais de passagem, ao longo do caminho de peregrinação em direcção a Santiago de Compostela, que se observaram as primeiras esculturas deste estilo. É o que se pode ver em França, em Espanha…

– E no Norte de Portugal.

– Exacto. Há as esculturas incorporadas na parte exterior, sobretudo, no tímpano do portal, mostrando, logo à entrada da igreja, cenas da Bíblia e outras evocativas do Inferno, onde prevalece a ideia do eterno castigo dos pecadores e de que, mais importante do que a vida terrena, é a salvação da alma. Como na pintura, as dimensões das figuras dependem da sua importância hierárquica. No interior da igreja, é, principalmente, nos capitéis das colunas que encontra lugar a escultura como forma de decoração, numa profusão de figuras, muitas vezes, fantásticas.

(medievalimago.org)

– Obrigado, por esta longa conversa.

– Poderemos, noutra ocasião, falar sobre o Gótico.

– Óptima ideia!

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28/12/2023

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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