O eu que não sou
Durante o passado mês de Janeiro, existiu um tema recorrente que surgia diante de mim, seja quando fazia scroll nas redes sociais ou quando tentava ler um qualquer jornal online (ou versão online de um jornal físico). Um tema principalmente abordado, questionado e problematizado pelas mentes irrequietas da minha geração e que, irremediavelmente, levou a que também refletisse um pouco sobre ele. O tema tem a ver como as Inteligências Artificiais (IA) têm vindo a ser cada vez mais desenvolvidas e a ocupar lugares de destaque, visto que, além das IA que nos transformam num desenho animado, existem programas a vencerem prémios de arte e a responderem a perguntas científicas com uma “humanidade” quase aterrorizante.
Agora, não vou falar exatamente sobre as IA, porque não é para aí que o meu raciocínio se dirige – até porque as IA só me fazem lembrar a Skynet. Em vez disso, vou refletir sobre o rumo “desumanizante” quea Humanidade tem percorrido.
Há muito tempo que é, amplamente, falado sobre os perigos do vício nas redes sociais e no mundo online que nos faz esquecer o mundo real; e sobre a forma como nos tornámos uns fofoqueiros insensíveis. Começámos a encarar o paradoxo de “querermos saber tudo de todos, mas não queremos saber de ninguém” como algo corriqueiro. Simplificando, parece que queremos saber de todos os aspetos das vidas dos nossos vizinhos e conhecidos, ao mais ínfimo detalhe, desde o que foi comido ao almoço, à imagem vestida (outfit)do dia e aos relacionamentos da pessoa. Porém, tornamo-nos frios com os nossos semelhantes, ao ponto de nenhuma ação ter sentido se não for registada.
Um conjunto de imagens que, neste último mês, me chocou muito foi um vídeo divulgado pela agência internacional de notícias Al Jazeera que mostrava uma rapariga moribunda que pedia ajuda, enquanto um grupo de gente à sua volta que, em vez de a ajudar, filmava o acontecimento. Isto aconteceu na Índia, mas existem outros exemplos até no nosso país em casos de acidentes ou de bullying, em que as reações dos espectadores presenciais é a mesma. Estamos tão vivos dentro do ecrã que ficamos dormentes no que toca ao mundo que nos rodeia.
Atualmente, com o desenvolvimento frenético de Inteligências Artificiais que nos presenteiam com belos quadros e nos mastigam a informação de que precisamos, surgiu o medo da perda de imaginação e da originalidade humana. Na minha opinião, tudo isto era praticamente inevitável que acontecesse. Durante muito tempo, na sociedade ocidental e “desenvolvida”, fomos criando, antagonicamente, um sentimento de comunidade indiferente, considerando que devemos trabalhar em equipa sem nos importarmos sobre quais são, realmente, os membros dessa mesma comunidade. Ou seja, a norma é o todo e o senso comum é soberano – não se constroem valores novos, não há individualismo refletido e interiorizado. Isto, acompanhado de um desenvolvimento tecnológico muito rápido, levou a que nos tornássemos demiurgos do nosso próprio mundo, com uma filosofia quase gnóstica, com a qual criámos um alter-ego “absoluto e perfeito”.
Basta entrarmos na rede social Twitter para vermos todo o tipo de causas serem defendidas com unhas e dentes. No entanto, poucos são os defensores da justiça e também raros os que fazem, pelo menos, uma hora de voluntariado a favor da causa que tanto defendem. Hoje, a palavra experiente de um médico é vista como uma ameaça face aos sentimentos pessoais e à fantasia “conspiranóica”, enquanto todos aqueles que ousem discordar de uma qualquer posição são atacados de forma cruel. Isto porque a pessoa real e a pessoa virtual são duas personalidades diferentes. Uma é só um humano normal e a outra é um ser perfeito e de superioridade moral inquestionável.
A arte que as IA nos oferecem são visualmente belas, mas sem sentimento, sem sensibilidade ou sem significado por detrás. As respostas são certeiras e concisas, mas sem espírito, sem estilo e sem presença. E isso é visto como belo e bom, pois o mundo humano que fomos construindo é, mesmo, baseado em aparências e no imediato. A capacidade de interpretação de texto tem vindo a diminuir, apesar da diminuição do analfabetismo, essencialmente, porque poucos leem algo que precise de ser interpretado. Apenas reagimos a impulsos sensoriais exteriores num momento rápido, sem interiorizarmos, sem analisarmos ou sem refletirmos sobre aquilo que foi apercebido, ao ponto de reduzirmos o sentimento mais trovado da História da nossa espécie a um swipe.
Não conhecemos o próximo, porque conhecer, realmente, alguém talvez seja tarefa quase impossível e – como diz Haruki Murakami, no seu livro “Crónica do Pássaro de Corda” – “Estamos convencidos de que conhecemos a outra pessoa bem, mas saberemos verdadeiramente o que importa acerca dela?”. Assim, escolhemos conhecer, amar e odiar a imagem idealizada (no sentido positivo ou negativo) dessa pessoa e não a pessoa verdadeira.
Todavia, o problema vem quando o eu que conheço é o idealizado e não o eu verdadeiro, chegando a confundir o eu virtual com o eu real – o indiscutível herói todo-poderoso e inalcançável –, conduzindo a que leve umas quantas chapadas metafóricas da vida. De facto, em essência, passo tanto tempo a olhar para o reflexo do Sol no lago que me esqueço da queimadura no pescoço, até que seja demasiado tarde.
Hoje, mais do que nunca, devemos ensinar as nossas crianças e jovens a refletir, a interiorizar a informação que lhes chega, bem como a viver fora do metaverso, a adquirir experiências reais e a saber lidar com elas. Devemos preconizar o pensamento livre, em vez da “síndrome de Génova” e do pensamento de rebanho. Devemos atender ao individualismo solidário, em vez de integrarmos uma comunidade de indivíduos indiferentes. Precisamos de criar em vez de copiar, de imaginar em vez de idealizar e de realizar em vez de lamentar e chorar. Importa mais vermos a tecnologia como uma ferramenta e do que como frequente guia. Se assim não for, será possível que as profecias do cientista Stephen Hawking, em relação à Inteligência Artificial, se tornem verdades.
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09/02/2023