O “falso” e a “ficção” escrevem-se com efe

 O “falso” e a “ficção” escrevem-se com efe

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Minha mãe, que, durante muitos sábados dos finais dos anos setenta e princípios dos anos oitenta, viajou de comboio entre Penafiel e Coimbra, testemunhava com incredulidade a quantidade de passageiros que, naqueles tempos, confundiam a ficção com a realidade.

À época, os Portugueses sentavam-se ao serão a ver telenovelas na televisão, com o entusiasmo de quem descobre um entretenimento novo e vibrando com os amores e os desamores que se desenvolviam no guião de tais ficções, iniciadas entre nós com o enorme sucesso da telenovela “Gabriela”.

Gabriela” foi a primeira telenovela brasileira a ser exibida em Portugal. Corria o ano de 1977 e, em Portugal, a única estação de televisão era a RTP. Baseada no romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, esta telenovela era protagonizada pela actriz Sônia Braga e começava com um tema musical mágico: “Eu nasci assim, eu cresci assim / Eu sou mesmo assim / Vou ser sempre assim / Gabriela, sempre Gabriela”.

Sônia Braga no papel que marcou o início da sua carreira. (Créditos fotográficos: Acervo TV Globo)

Portugal parava para ver a “Gabriela” e aprendia Português com sotaque e expressões do Brasil. A Assembleia da República condicionava os trabalhos para que os deputados e os funcionários do parlamento pudessem assistir aos episódios da telenovela. A “Gabriela”, da TV Globo, abriu, entre nós, caminho ao género televisivo das novelas.

Gabriela (Sônia Braga) e Nacib (Armando Bógus) em cena da
primeira versão de “Gabriela” (1975). (televisao.uol.com.br)

Seguiram-se muitas outras, sempre com enredos repletos de amores e desamores, tão intensamente seguidos pelo público português que havia quem, nos comboios, confessasse ter prometido “ir a Fátima a pé” se a personagem feminina eleita pelo público casasse com o grande amor da vida dela.

Era esta confusão entre a realidade e a ficção que surpreendia a minha mãe, atenta às conversas dos passageiros que seguiam nos comboios em que ela viajava para ir, aos sábados, de Penafiel a Coimbra, visitar o seu filho único. A quem, incrédula, contava o que testemunhava na viagem.

No século passado, nos finais dos anos setenta e nos princípios dos anos oitenta, a iliteracia, terreno propício à desinformação, era grande flagelo. Ainda não sofria os efeitos de uma desinformação organizada como a que agora designamos pela expressão inglesa “fake news” (falsas notícias), mas era já uma realidade que devia ser combatida com a Educação, com a formação inicial e com formação contínua.

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(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.

17/10/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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