O filme da Barbie e a luta feminista: o capitalismo “surrupia” a luta?
É inegável que o filme da Barbie causou alvoroço, antes mesmo de estrear nos cinemas. Houve, ainda, uma separação entre dois “times” dos telespectadores (e, em alguns casos, mesmo aqueles que não assistiram, mas quiserem opinar), um de quem gostou e o outro de quem não gostou. Sou de uma geração em que grande parte das meninas tinha uma Barbie (original ou cópia) para chamar de “sua” na infância, sendo difícil escapar da nostalgia que o filme me remete. Por isso, e pela curiosidade do grande alvoroço que percebi nas redes sociais e nos media, decidi ir de peito aberto e sem “pré-conceitos” (pelo menos, o tanto quanto pude evitar spoilers) para assistir ao filme.
É também inegável que o filme é um meio de alavancar a quase falida Mattel Creations. Nada de novo no atual sistema económico que vivemos: afinal, o marketing não só é a “alma do negócio”, como pode ser a sua “salvação”. É inegável, igualmente, que a proposta de “mulheres livres”, que o filme traz, remete-nos ao feminismo liberal. Este, que não critica as estruturas sociais de desigualdade nem a iniquidade de género, remete-se apenas para a igualdade de “liberdades”, as quais, muitas vezes, são à custa da opressão de outras mulheres. Entretanto, a minha proposta é que reflitamos sobre algumas questões sociais que o filme evoca, relativamente ao género e à sociedade patriarcal, pelo potencial de abertura de caminhos crítico-reflexivos sobre o quotidiano. Ou seja, pela potencialidade de promover reflexões para as camadas sociais que estejam desconectadas com essa reflexividade de ser mulher/homem na sociedade e com os papéis impostos, cultural e socialmente, desde que nascemos.
Primeiro, destaco a circunstância de o filme ser produzido, na sua maioria, por mulheres (Margot Robbie, Tom Ackerley, Robbie Brenner, David Heyman, Laurence Mark, Amy Pascal), assim como a direção realizada por Greta Gerwig. As entranhas estruturais do patriarcado são latentes em todas as esferas sociais; e não seria diferente do trabalho em produção audiovisual. Ao ter, no seu cerne, uma maioria mulheres na construção de uma narrativa também sobre mulheres, o filme é um passo à frente para a igualdade e para a equidade.
É, por outro lado, inegável o peso cultural e simbólico que a boneca Barbie promoveu, ao influenciar diversas meninas (e meninos) ao sair da lógica de uma boneca com características de “filha” para uma boneca “adulta” e que, às vezes, poderia estar a representar inúmeras profissões numa boneca feminina. Como o próprio filme retrata, esta pode ter sido uma grande influência para que as mulheres1 se vissem (e se vejam, ainda hoje) além do papel de cuidadoras, justamente por entrarem em contraponto com as bonecas que são apenas filhas e que exigem cuidados. Obviamente, o padrão estético (magra, alta, branca, loira) recai sobre a maioria das Barbies, reforçando o seu caráter inalcançável e cruelmente imposto, de diversas formas, para as mulheres. E, de maneira muito leve e natural, o filme reforça essa ideia de diversidade relativamente às inúmeras possibilidades de ser uma “Barbie”. Ou seja, de Barbies com diferentes jeitos, corpos, cores, profissões e características. A ironia é utilizada como estratégia para a aproximação com o público, sendo um dos recursos mais evidentes na trama. Na dualidade das personagens da Barbie “estereotipada” (Margot Robbie) e de Gloria (America Ferrera), observamos uma como a sua própria característica a descreve e a outra como uma mulher latino-americana. Isso remete-nos para dois elementos importantes: relativamente à população feminina estadunidense e às características dessa sociedade, uma vez que o filme se passa no estado da Califórnia. Somente quando as duas se juntam é que o problema é resolvido.
A trama passa por a Barbie estereotipada estar a se sentir diferente e fora do padrão “Barbie” na “Barbielândia”, indo procurar ajuda junto da Barbie “estranha” (Kate McKinnon). A solução para este comportamento disfuncional consiste em a Barbie “estereotipada” ir ao mundo real e encontrar a criança que brinca com ela e ressignificar esta relação. Ao se preparar para a jornada, Ken (Ryan Gosling) aparece, de surpresa, no carro e vai com a Barbie para o mundo real.
A relação das Barbies com os Kens é de “orbitação” destes sobre aquelas. Ou seja, os Kens só existem para e aos olhos das Barbies, gerando um ambiente de disputa, principalmente, entre dois Kens (Ryan Gosling e Simu Liu) pela Barbie “estereotipada”. O interessante desta questão, em que se coloca os Kens à mercê da validação da sua existência pelas Barbies, é a inversão de uma lógica muito frequente na nossa sociedade patriarcal e tida, cultural e estruturalmente, como comum, quando se trata de nós, mulheres. Poder inverter e promover uma certa indignação a essa lógica é construir e promover uma reflexão crítica sobre os parâmetros ditos “normais” da sociedade. Isto, pois, quando, ao chegar a um “mundo real”, o Ken se dá conta de que começa a ser visto e tratado de forma completamente diferente do que na Barbielândia.
Assim como essa perceção ocorre para a própria Barbie. Enquanto o Ken diz que, no mundo real, se sente olhos de admiração, a Barbie diz que sente olhos de violência. E este é mais um dos exemplos do quanto o filme pode colaborar para tratar questões latentes na nossa sociedade que denotam relações de poder, numa lógica patriarcal de forma lúdica. Traduzir estas diferentes vivências de género, de forma lúdica, pode ser mote para uma reflexividade sobre o subjetivo enquanto pessoa (mulher ou homem) e acerca do seu viver impactado por estas relações estruturadas sob uma lógica patriarcal, no espaço social.
No cômputo geral, compreendo que o filme navega numa linha crítica com toques de humor essencial para quem está no início de um processo de interpretação das relações patriarcais, machistas e das estruturas desiguais de género da sociedade. Parece-me que são escancaradas questões sociais (estereótipos, relações de poder patriarcal, padrões culturais e sociais), justamente para reforçar a crítica sobre estes aspetos com base num tom divertido e, de certa forma, “leve”. Quase despretensioso, em alguns momentos.
É evidente que não são tratadas as questões, com aprofundamento, sobre raça, nem sobre patriarcado, nem acerca do feminismo. E que é uma propaganda de marketing para a própria empresa Mattel (também alvo de ironia na trama, ao aparecerem apenas homens entre os seus diretores) vender mais. Conquanto, compreendo que o filme abre muito mais portas de diálogo com camadas sociais que, muitas vezes, não são atingidas por produções como artigos em jornais, produções académico-científicas, documentários, etc.
O filme usufrui da possibilidade de que, mesmo ao se enquadrar como um produto inserido e criado para a lógica capitalista de vender mais e de gerar visibilidade para uma empresa, utiliza de ferramentas para não ser apenas isso. Não ser apenas isso num tema caro que é a igualdade. E eu diria, em soma, a equidade de género na sociedade. É uma oportunidade que abre diálogo com camadas da população que talvez não tenham a possibilidade de acessar perspetivas críticas sobre o que se vive, abrindo caminho para, quiçá, contribuir e promover, pequenas alterações na lógica de reprodução de estruturas sociais patriarcais que oprimem as mulheres.
Portanto, sim, o capitalismo surripia2 a nossa luta, as nossas reflexões por meio da construção de produtos para gerar mais capital. Contudo, enquanto ainda não é possível alterarmos este sistema, utilizar ele próprio para alcançar outras pessoas, numa perspetiva crítica das estruturas sociais, é fundamental para que se inicie por algum lado.
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Notas:
1 – Mulheres: pessoas que vivam ou que tenham vivido na pele as mesmas opressões, sejam mulheres (trans ou cisgénero), homens trans ou pessoas não binárias.
2 – O termo “surrupiar”, já utilizado no título deste artigo, significa roubar; pegar algo que não lhe pertence sem que ninguém perceba; furtar às escondidas: surrupiaram as joias de família; buscava surrupiar o dinheiro do povo. Etimologia (origem da palavra “surrupiar”): do Latim surrupire. (Fonte: https://www.dicio.com.br/surrupiar/)
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21/08/2023