O flagelo dos incêndios é um dos perversos óbices à ação climática
Bem pode o Governo ter, na sua orgânica, um ministério do Ambiente e da Ação Climática, definir belos objetivos e apregoar boas intenções de corretas práticas e de maus hábitos a banir. Porém, se não definir claramente e se não adotar audazmente políticas ativas de reordenamento racional da mancha florestal, de multímoda prevenção e de combate eficaz, pela mobilização de todos os recursos, no atinente aos incêndios florestais e rurais (rurais porque, se o fogo florestal é intenso, atinge terrenos cultivados, sobretudo se está próxima a maturação; e um incêndio bem pode ter origem em terreno de cultivo, sobretudo se ocasionalmente maninho), ficará perdida a batalha do ambiente e da ação climática face ao aquecimento global e às suas consequências, tais como a subida de nível das águas dos mares, os degelos nos glaciares da parte sólida da crusta terrestre, a erosão irreversível e os malefícios para a saúde das pessoas e para a saúde pública.
Não vale a pena virem o primeiro-ministro ou o Presidente da República, pura e simplesmente, acusar as mãos humanas como os principais fatores dos incêndios e, perante o calor excessivo que origina mal-estar e potencia mais incêndios, desmarcar viagens ao estrangeiro, principalmente se delas havia benefício ao nível geoestratégico (havia de ficar alguém ao leme do Estado). Se fôssemos a isso, teríamos de responsabilizar a mão humana pelos acidentes e enfermidades que entopem os hospitais e as clínicas, pelos crimes e desaguisados civis que saturam os tribunais e, no âmbito penal, as prisões, bem como pela superlotação de cemitérios e crematórios.
O problema, como todos os peritos asseguram, passa, a montante, por um reordenamento florestal racional e corajoso, mobilizador de todas as entidades públicas e privadas, avesso à monocultura e estranho à excessiva densidade da malha florestal. De um lado, a replantação abundante de folhosas e a recuperação das espécies autóctones; do outro, a multiplicação de aceiros, charcas, pontos de água e algumas unidades de cultivo cerealífero, bem como a criação de uma área livre de arbustos e ervas em volta de cada casa inserida dentro de um determinado perímetro florestal, casas que deveriam ser reduzidas ao número mínimo aceitável, a definir.
No atinente à prevenção e vigilância, impõe-se a alocação de pessoal e de recursos técnicos e financeiros, ultrapassando-se o peso angustiantemente inibidor da burocracia, de modo que a limpeza de vias, das suas bermas e margens dificilmente viesse a ser desmentida pelos cortes de estradas (e autoestradas) por motivos de fogos florestais e rurais. Contudo, há que advertir que a limpeza de matas e dos perímetros que envolvem as áreas onde estão implantadas as habitações e armazéns é extremamente cara e pesada, quer para os cidadãos, quer para as empresas e mesmo para os serviços públicos. Por isso, deve ser reforçada a vigilância sobre o estado da floresta e do espaço rural e, particularmente, sobre eventuais comportamentos desviantes.
Por outro lado, é de promover a generalização da distribuição de kits de proteção pessoal e comunitária em todos os aglomerados populacionais expostos aos perigos advenientes dos fogos. E porque não generalizar a utilização das sapadoras – cabras e ovelhas – na limpeza de terrenos? Isso impõe o incentivo à criação e à multiplicação desses animais e a profissionais que se ocupem deles, mas teríamos, além da limpeza dos terrenos e da prevenção de fogos, a abundância de gado miúdo para fornecimento de carne, de leite, dos derivados deste e, no caso das ovelhas, da lã, que dá para tantas coisas!
Já o combate aos incêndios deve ser atempado e devidamente coordenado por quem conhece o terreno, tal como devem ser mobilizados atempadamente os meios adequados, superando as birras da burocracia. E este combate não pode ficar a cargo, a nível de pessoal e de equipamentos, de empresas privadas, algumas das quais foram criadas para o efeito, que se cobram por cada hora em que atuam os seus colaboradores e se utilizam os seus meios. É como introduzir a raposa no galinheiro para defender os pintos, as galinhas e os galos. Haverá sempre forma de encontrar objeto de trabalho no âmbito do combate aos incêndios. Temos as forças armadas, nomeadamente o ramo da força aérea, que bem podia, dada a sua capacidade de utilização de aeronaves, encarregar-se do combate aéreo. Para tanto, as forças armadas não podem deixar de ter os efetivos suficientes e a carreira castrense tem de ser atraente. Depois, em tempos de combate a incêndios, é imperdoável que falhem os sistemas de comunicação, sejam os de rádio, sejam os de telefone fixo, sejam os de telecomunicações móveis.
É óbvio que há incêndios originados “espontaneamente”: o caso de uma trovoada ou de uma descarga elétrica em linhas de alta e de muito alta tensão e, mesmo, da incidência adequada dos raios solares sobre um material transparente (o que é possível em tempo de muito calor, com combustível suficiente e durante o dia). Mas estes casos são extramente raros. De resto, fogos que deflagram de noite ou os que têm origem junto a vias de comunicação ou em vários sítios numa área circunscrita significam indubitável ação humana. Há casos de negligência, de descuido, de temeridade, de paranoia, de inobservância dos normativos. Mas há também casos de racional planeamento, como observavam e descreviam, há anos, alguns órgãos de comunicação social.
Por fim, algo mais falha no combate aos incêndios: a falta de punição adequada dos incendiários, bem como a falta de segurança das comunidades em relação a eles. Não vale a pena as autoridades policiais deterem um suspeito de incendiarismo e os tribunais de instrução criminal estabelecerem como medida de coação o termo de identidade e residência (TIR). Com efeito, exceto em casos de mero descuido, continua o risco de iteração do crime. Por outro lado, a ação penal, em casos destes, não pode ser protelada no tempo. Ademais, quer se trate de crimes quer de tara ou de deslumbramento, a sociedade tem de ser defendida, da melhor forma, destes atentados à segurança e ao clima, sem incorrer no atropelo desproporcionado às liberdades. Se assim não for, com as leis a prescrever um comportamento e os tribunais, firmados na sua “independência”, a concluir de outro modo, bem podemos andar a reduzir, a reciclar e a reutilizar materiais e lixo, mas a erosão encarregar-se-á de dar cabo do planeta e as pessoas morrem de calor, de doença, de revolta e de ausência dos bens de que dispunham.
E muitos estão atentos à desgraça alheia e aproveitam-se da fragilidade das pessoas e da mobilização da comunidade para enriquecerem um pouco mais. Por exemplo, dos incêndios de Pedrógão e arredores resultaram acusações em tribunal sobre desvio ou má aplicação de verbas, reconstrução de casas-armazém como se fossem de habitação e atribuição de verbas a quem delas não carecia. E houve espetáculos de solidariedade com venda de bilhetes aos que estiveram nos respetivos areópagos e telefonemas da parte dos espectadores. Cada um destes pagava o custo de chamada, repartível pela operadora de telecomunicações, pela estação televisiva, pelo espetáculo e pelo fisco. Assim também eu geriria uma estação televisiva, um areópago, uma operadora de telecomunicações e um país. E, se calhar, também faria agradável e proveitoso espetáculo.
E não vale a pena, aquando de um surto de incêndios, fazer estudos científicos ou relatórios de apuramento de factos e de responsabilidades, se não se colherem, na prática, as respetivas lições. Aliás, os diagnósticos estão feitos. O que falta é a vontade política, a eficácia da administração, a desinstalação de poderosíssimos interesses e o funcionamento célere e equânime da justiça. Não basta apoiar bombeiros, agentes da autoridade e funcionários da Proteção Civil ou ter pena deles. É preciso mudar políticas, estruturas, interesses e comportamentos.
De resto, em tempo de muito calor e de intoxicação geral pelo fumo incendiário, não dá para trabalhar, nem para descansar, nem para ir de férias, nem para governar.
18/07/2022