O futebolês e a democracia
O futebol desperta paixões. Hoje, com menos multidões devido à pandemia, mas não menos acirrado, corrosivo e atraente para quem gosta de futebol ou, simplesmente, do seu clube, qualquer que seja a cor da camisola. Reflectindo com isenção, parcimónia e sentido “desportivo”, os resultados obtidos (sempre os resultados) ou, então, odiando os adversários adoptados como inimigos, gesticulando e produzindo impropérios; por vezes, estimulando a violência gratuita.
Confesso o meu conflito de interesses, por tomar partido por um clube, há 60 anos, o que não me impede de manifestar alegria ou tristeza consoante o brilho ou a palidez da exibição, a técnica que invejo ou a desconcentração que abomino, o resultado que me satisfaz ou me deixa estarrecido.
Seja como for, o respeito pelos outros e a vida em sociedade, a compreensão da diferença entre o que representa um jogo e o significado da ciência, a relatividade das consequências de um resultado desportivo para o bem comum, levam-me a não hipervalorizar o acontecimento, a não permanecer horas a fio ouvindo e vendo os canais de televisão a massacrar os espectadores sobre o mesmo assunto repetidamente, aproveitando para fazer algo de útil ou fruir a família.
O futebolês caracteriza-se por uma linguagem circular, de terminologia exclusiva dos intervenientes, sábios do futebol dizendo o mesmo sem inovação, que vai desde a erudição ao insulto, desde a concepção à frase feita, desde o discurso consistente aos pontapés na gramática, ao abrigo da qual peroram – pré-jogo, durante o jogo e após o jogo – múltiplos comentadores, protagonistas e público, cada um com a sua verve, nem sempre recomendável.
Com muita frequência, o sentido de culpa pelo insucesso desportivo é atribuído às equipas de arbitragem, que deveriam ser os mediadores do jogo, sem parcialidade nem ganho secundário, mas que são acusados, com e sem razão, de serem os responsáveis pela derrota da respectiva equipa, levando a suspeições de favorecimento por aqueles que deviam ser arbitrais e não arbitrários.
Estamos em democracia há praticamente 48 anos, a qual muito prezamos, e sendo a liberdade de expressão do pensamento um direito adquirido na Constituição de 1976 (ao contrário da Constituição de 1933, elaborada no regime da ditadura), o circuito, a indústria e o espectáculo do futebol têm regras que, responsavelmente, não poderão permitir atropelos ao bom nome, à dignidade e à sã relação social dos participantes e interlocutores, com sujeição à lei civil e penal.
Por isso, havendo tribunais judiciais competentes para julgar os eventuais atropelos à lei, à sociedade e aos usos e costumes, não compreendo a necessidade da existência de tribunais desportivos e, muito menos, de julgadores – designadamente o Conselho de Disciplina de uma Federação (Portuguesa de Futebol) que é, apenas, uma instituição da sociedade civil – que inquirem, condenam e punem clubes, treinadores e jogadores como agentes do futebol, por declarações prestadas sobre a arbitragem.
Tal como vigora, o direito de opinião, enquanto liberdade de expressão do pensamento, não é respeitado no futebol, sendo que para as declarações difamatórias, ofensivas e dolosas existem os tribunais comuns e a justiça para todos, como para qualquer cidadão que a eles recorre ou é submetido a apreciação por alegada infracção.
Contrastando com o exposto, todos vimos, no recente fim-de-semana, as imagens de desacatos e de agressões no termo de um jogo de futebol, envolvendo jogadores, staff técnico, organizadores do jogo e outros energúmenos estranhos ao espectáculo desportivo, enquanto indústria, entretenimento e talento. Depois, perante a vergonha dos factos, vêm dizer que mais parecia o Terceiro Mundo, como se este, além da pobreza e da discriminação, fosse a fonte de todos os males.
Portugal tem títulos de futebol na Europa e no Mundo que nos orgulham como portugueses, “aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” (citando Luís de Camões), tal como tem profissionais, técnicos e cientistas de várias áreas do conhecimento, bem como atletas de outros desportos cuja mais-valia é reconhecida internacionalmente, representando um exemplo e a força de um povo.
Mas também tem fontes de violência no desporto que nos envergonham, a que urge por cobro. Neste caso, através da democratização do futebol – jogo e arte que não está acima de qualquer suspeita –, penalizando devidamente quem comete tais actos de violência, quem os estimula e quem se serve da confusão para reinar.
Veremos se as estruturas desportivas e os seus agentes (descomprometidos?) são tão pressurosos a condenar e a castigar este alarde deprimente de ferocidade e selvajaria, como são apressados a impedir a liberdade de expressão do pensamento, atribuindo as decisões e as lições à Justiça, o que é da Justiça.
17/02/2022