O herói, os amantes e o vilão

 O herói, os amantes e o vilão

(Pixabay)

O conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, deliberadamente provocado pela Rússia, tem sido, entre outros, um teste à lucidez das democracias liberais ocidentais. Nunca, como nos últimos dias, se assistiu ao sacrifício da verdade pela montagem concertada e transnacional de um cenário dominado pela ideologia liberal ocidental (o mundo livre), com grave prejuízo da democracia de opinião, do rigor dos factos, da imprensa livre e isenta, com a comunicação social à frente de um vasto movimento populista apoiado pelos regimes dos países que enfileiram a NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

A manipulação da propaganda ocidental atingiu um nível tal que, veja-se, ao sugerir que as grandes democracias são também capazes de produzir autocratas de natureza oligárquica como Donald Trump, a tal se contesta sob o argumento de que Trump é um produto da Rússia – testemunhei esta posição. Trata-se de indivíduos com formação intelectual superior que largam alarvidades deste calibre. Bom, se é para levarmos isto a sério, o melhor é prepararmo-nos para responsabilizar os Russos pela seca em Portugal. A sociedade, salvaguardadas as excepções de quem não trocou as emoções pela clarividência, entrou em letargia e, ao que parece, vai tardar em acordar. Entenda-se: aquilo que está a acontecer não se resume à invasão da Ucrânia pela Rússia e ponto final. Mas há quem queira ficar por aqui, pelo acto de agressão russo. A invasão é monstruosa e ignóbil, mas é o culminar de um processo cheio de contornos igualmente condenáveis.

Jørgen Håland (Unsplash)

Entrevistado por dois jornalistas do canal português SIC Notícias, João Ferreira, eurodeputado do Partido Comunista Português (PCP), não se livrou de uma espécie de impiedoso interrogatório sobre a pretensa conivência do partido comunista com a decisão de Vladimir Putin em invadir a Ucrânia. Acontece que a entrevista correu mal aos jornalistas, visivelmente tendenciosos e mal preparados para a conduzir. Ferreira explicou como o PCP está a ser alvo de deturpação, considerou que “esta é uma guerra que nunca deveria ter acontecido e que deve acabar o mais rapidamente possível”, demonstrou o ponto de partida no qual o PCP se coloca (“a genuína empatia para com aqueles que sofrem”), esclareceu que a guerra não começou na semana passada, mas muito antes, com o golpe de estado de 2014 que destituiu o presidente Viktor Yanukovych (que, apesar de europeísta, concebeu uma aproximação à Rússia) e com o conflito (que dura há oito anos) na região do Donbass (região oriental onde se situam duas regiões separatistas pró-russas), além de ter alertado para os vários grupos de tendência fascista e nazi que enfileiram as tropas do exército regular ucraniano (batalhão de Azov, Sector Direito, Svoboda), responsáveis pelo golpe de estado no país e pelos bombardeamentos das populações do Donbass. João Ferreira, além de propor o retorno à via negocial dos acordos de Minsk, não deixou de alertar para a atitude agressiva da NATO que, durante anos (tem-no procurado fazer desde 1989), tem vindo a dispor bases militares em torno da Federação Russa e que agora, mais uma vez, incendeia este conflito com o fornecimento de armas à Ucrânia, contribuindo para a permanência das hostilidades. Ora, bem o sabemos, o fim do conflito não interessa aos Estados Unidos nem aos seus parceiros de coligação militar, uma vez que pode sustentar um negócio de lucros incalculáveis sobre a venda de armamento (de que, de resto, o Reino Unido, a Alemanha, a Suécia, a Espanha, Portugal e os EUA, etc., estão já a beneficiar), além de contribuir para o depauperamento da Rússia, potência económica adversária da União Europeia (UE) e dos EUA.

McGregor observa que Putin não tem interesse em intervir na Polónia ou noutros países, mas em manter em seu redor um modelo neutro semelhante ao finlandês, e quer evitar qualquer confronto com os EUA, dada a inferioridade militar russa

(Pixabay)

Se, como referiu ao canal Fox News um coronel aposentado do exército dos EUA (Douglas McGregor), o governo russo está a cumprir aquilo para que alertou os EUA há, pelo menos, quinze anos, não é de crer que este conflito não fosse efectivamente esperado pelos países ocidentais, dado o comportamento insistente e irresponsável da NATO. McGregor referiu que, da mesma maneira que os EUA não tolerariam tropas e mísseis russos em Cuba, é no mínimo compreensível que os russos não aceitem instalações militares da NATO junto das suas fronteiras. E, bem vistas as coisas, se nos lembrarmos de como o mapa de Israel mudou, desde 1947 até hoje, com a captura de territórios ao Estado Palestiniano (com tudo o que de hegemonia e violência sobre o povo da Palestina isso envolve), talvez possamos compreender o que assusta a Federação Russa, considerando os países que formavam a NATO antes de 1997 e os que agora a enformam. Nessa recente entrevista, McGregor, já considerado uma persona non grata pela generalidade dos meios de comunicação ocidentais, referiu que os EUA demonizam Putin e a Rússia, seja por que pretexto for, atribuindo-lhe intenções que não tem. McGregor observa que Putin não tem interesse em intervir na Polónia ou noutros países, mas em manter em seu redor um modelo neutro semelhante ao finlandês, e quer evitar qualquer confronto com os EUA, dada a inferioridade militar russa. Além disso, o coronel norte-americano sublinha que a Ucrânia é um estado com uma elevadíssima taxa de corrupção, que está longe de ser uma democracia livre e que Volodymyr Zelensky prende jornalistas e oposicionistas políticos, facto que mereceu repúdio da Federação Europeia de Jornalistas. Aliás, João Ferreira lembrou também a ilegalização de partidos após o golpe de estado na Ucrânia e a privação de votos a oito milhões de pessoas. Vamos lá ver… Não é isto o que se passa na Rússia?

Acresce a estes actos de censura que a UE nunca condenou o facto de, actualmente, Ursula von der Leyen anunciar a proibição de órgãos de comunicação detidos pela Rússia, como o canal televisivo Todav e a agência Sputinik News, o que, para Ricardo Gutiérrez, secretário-geral da Federação Europeia de Jornalistas, representa um acto de censura. Dois pesos e duas medidas da UE?

Por cá, metidos na nossa cápsula (a metáfora comum é a da bolha) mediática e ideológica, à revelia da Constituição – que consagra a Paz como um princípio a defender –, também se verifica a opinião de que a Ucrânia deve ser armada. McGregor, neste aspecto, foi claro: “Sabe o que é terrível? Não enviamos a nossa força aérea para lutar, mas encorajamos os ucranianos a morrerem desnecessariamente numa batalha que não podem vencer”. João Ferreira observou com clarividência, do mesmo modo, que a União Europeia deita gasolina na fogueira, sustentando a manutenção do conflito; e que há, de facto, quem não queira a negociação entre as duas partes, preferindo assistir à distância, até que o “último ucraniano se consuma naquela guerra”. Mais: McGregor chega a admitir que os ucranianos usam civis como escudos humanos. A guerra é a guerra.

Cidade de Kiev, em Junho de 2019 (Robert Anasch – Unsplash)

Por outro lado, fabricou-se a ideia do carácter inédito desta guerra, provavelmente por ser europeia, mas certamente por envolver os interesses russos. Bom, a Líbia foi bombardeada e destruída por mísseis de cruzeiro Tomahawk norte-americanos e britânicos, com apoio da aviação francesa e de navios franceses, canadianos e italianos; a Síria foi violentamente bombardeada pelos EUA, pelo Reino Unido e pela França; o Iraque foi quase totalmente devastado pelos EUA, sob o pretexto de armas químicas na posse do aparelho militar iraquiano, o que veio a verificar-se uma impostura encenada para legitimação da intervenção; o Afeganistão, já vítima de uma intervenção soviética nos anos 80, foi palco de acções militares recentes dos EUA, com o resultado que todos conhecemos; a Sérvia, em 1999, foi altamente fustigada por uma intervenção da NATO sem precedentes numa região da Europa – dessa intervenção ficaram sequelas graves provocadas pelo cancerígeno urânio empobrecido. Para todos os efeitos, segundo a perspectiva do Ocidente, nenhuma destas ofensivas é condenável ou, pelo menos, merecedora de mobilização de protesto em larga escala. Apenas agora, porque o agressor é um país de evidente hostilidade ao Ocidente, se mobiliza a população mundial para a condenação. Hipócritas e oportunistas, nós? Mais, muito mais. E triste o espectáculo da Organização das Nações Unidas (ONU), quando os delegados de vários países se levantam e saem, durante a intervenção do homólogo russo: as manifestações emocionais devem ser reservadas para o plano civil. Se a ONU fosse uma assembleia de alunos numa sala de aulas, talvez se compreendesse. Mas não é.

Zelensky pode parecer um herói (o aspecto do mártir, a boa-parecença e a indumentária de guerrilheiro acossado caem-lhe bem; e há quem queira já, até em Portugal, erguer-lhe estátuas), mas não parece muito preocupado em evitar um banho de sangue, em nome da vanglória pessoal e do nacionalismo

Não sabemos ainda muito de Zelensky, mas já foi possível perceber que é um mestre na automitificação: desde as palavras proferidas, de resistência a todo o custo (o que pode e deve ser considerada uma forma de manipulação de massas), à demagogia virtuosa que o faz enunciar estar ao serviço da defesa das democracias ocidentais, até à chantagem emocional com os falcões da NATO, a quem exorta a uma intervenção mais dura e irresponsável. Zelensky quer-nos convencer de que é muito mais humano do que Putin. Zelensky pode parecer um herói (o aspecto do mártir, a boa-parecença e a indumentária de guerrilheiro acossado caem-lhe bem; e há quem queira já, até em Portugal, erguer-lhe estátuas), mas não parece muito preocupado em evitar um banho de sangue, em nome da vanglória pessoal e do nacionalismo. Sabemos que baniu e censurou o site noticioso TV Strana, de teor político oposicionista, impondo sanções ao seu director (tudo isto com condenação da ONU e apoio dos EUA). O que pretende, afinal? O seu estatuto de herói sairá caro à população ucraniana: filhos órfãos, mães e pais sem filhos, vítimas sem conta. Não se confunda teimosia com heroicidade. Num mundo razoável, não se sacrificam pessoas. Putin fá-lo, mas Putin é quem é: um homem sem escrúpulos. Zelensky prova não ser melhor do que Putin.

São ainda os nossos meios de comunicação que procuram conciliar a informação com a própria vontade de julgar o adversário, definindo os contornos do inimigo. Em busca de uma aprovação para o perigo de os russos se apropriarem e até atingirem os reactores nucleares ucranianos, uma jornalista da RTP1, na presença do professor e perito da EURATOM (Comunidade Europeia da Energia Atómica), Luís Neves, da Universidade de Coimbra, teve de ouvir o seguinte: “Os russos podem temer um acto desesperado do lado ucraniano de tentar criar um acidente nuclear e, se calhar, vice-versa, daí as centrais nucleares serem um interesse mútuo.” Perante a insistência da jornalista, no tocante ao facto de um desastre nuclear não poupar quase ninguém, Luís Neves concluiu: “Bem, não sejamos talvez tão extremistas. Diria que, quando falamos na Ucrânia, nos lembramos imediatamente de Tchernobyl; convém dizer que as centrais nucleares que estão, neste momento, em funcionamento na Ucrânia são, todas elas, de geração mais recente e têm condições de segurança muito superiores. Mesmo num cenário mais catastrófico de acidente, em princípio, as medidas de segurança e os sistemas de redundância são suficientes para conter a libertação de radioactividade, como aconteceu em Tchernobyl.” Por vezes, não há notícias, mas alguns jornalistas fazem por que haja. Este é também um teste ao jornalismo de qualidade, aquele que não tira proventos das emoções nem favorece regimes nem ideologias. Nunca, como agora e perante a lavagem ideológica, o serviço de informação de qualidade correu tantos riscos.

Viktor Hesse (Unsplash)

Para acabar, façamos um exercício mental: suponhamos que a União Soviética (extinta em 1991) saíra vencedora da “Guerra Fria”. Nesse contexto, dispunha de meios militares e estratégicos no Alasca, nas Antilhas e até no Canadá, suportados pelo Pacto de Varsóvia (também extinto, no dia 31 de Março de 1991). Os EUA confrontar-se-iam com um problema interno, com a separação da Louisiana, do Texas e da Califórnia, alinhados com a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Washington decidia então invadir o Texas. O resto já sabemos. Quadro mais clássico seria difícil de arranjar.

Há dias, surgiu, no jornal Público, um artigo do professor de História israelita Yuval Noah Harari – daqueles artigos que, lidas cinco linhas, já se sabe onde vão parar – sob este título: “Porque é que Putin já perdeu esta guerra”. Trata-se de um texto que enaltece o espírito nacionalista, tece loas à resistência ucraniana e, muito bem, clarifica como a Ucrânia é uma nação distinta da Rússia, com uma história milenar bem definida (não é de ignorar a sua tenacidade com os otomanos, com os mongóis e com os austríacos). Porém, quanto à pergunta do título, encaixemo-la. Alguns de nós sabem a resposta: porque, num mundo como o nosso, Putin perde qualquer guerra. Basta ser russo. Ainda que fosse um sujeito tolerável. A mim não me interessa que Putin ganhe nenhuma guerra – até é bom que não ganhe. O que me interessa é não perder o discernimento, a troco de ganhar a proporção inversa em estupidez.

Cumprimento de um minuto de silêncio em homenagem às vítimas da guerra na Ucrânia, na Escola Secundária de S. Lourenço, em Portalegre.

08/03/2022

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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