O império do sal que todos amam, mas que a todos divide
A Cooperativa Agrícola das Salinas de Rio Maior (Coopsal) moveu um processo judicial, em março, contra o empresário Rui Laurentino, pelo registo da marca Sal Sem Mar. O presidente, José Casimiro, diz que o nome “pertence aos salineiros” e se não fosse a Cooperativa “as salinas estariam ao abandono”. Do lado oposto das marinheiras, uma família colabora com o projeto que está em análise nos tribunais. Luís parece uma rockstar do sal, o irmão João trata das contas da loja, e a mãe é a responsável do sítio. Enquanto tudo se passa, o pai dança e conversa com os cristais.
Sol bate na eira onde seca o sal
É preciso esperar pelo bom tempo para os salineiros de Rio Maior esfregarem as mãos de alívio e esperança. Alguns talhos – nome que se dá aos tanques onde o sal nasce – em maio apresentam a flor do mineral a reluzir o sol. Outros permanecem alagados à espera que se dê a evaporação. Fernando Lopes faz isto desde que nasceu e aponta “a chuva e o vento como os piores inimigos” do ofício. O vento porque empurra lixo e impurezas para dentro das águas, a chuva porque come o sal até ficar somente o chão de pedra à vista.
Fernando está vestido com roupa camponesa e galochas brancas, quase tão brancas como o sal que ali prospera. Aos 64 anos rapa a matéria-prima com movimentos compassados, numa espécie de dança e conversa que tem com os cristais. Um turista que passeia nas “baratas” – nome tradicional que os salineiros deram aos estreitos caminhos junto dos talhos – diz-lhe bem alto: “Antigamente era descalço que se fazia este trabalho”. Fernando ri-se e contesta o risco. “ O problema é a pá ser cega”. Ou os pés não serem de ferro.
Luís Lopes, filho de Fernando, avisa que têm de se apressar a “rapar o sal, para o salvarem da chuva” da madrugada. É formado em psicologia do desporto, mas naquela hora calça galochas iguais às do pai. Com umas valentes pazadas no mineral, que rapou sozinho em quinze minutos, de um dos cerca de 60 talhos da família, enche um carrinho de mão e condu-lo até uma eira – nome da plataforma onde o sal fica a secar. Pelo percurso, desviou-se com destreza das mangueiras que trazem a água do poço, sete vezes mais salgada que a do mar.
Luís afundou as duas mãos numa pirâmide de sal, deixando escorregar o mineral entre os dedos, como se o estivesse a tatear com afeto. ”O sal que vem da terra é ouro branco”, conclui. Pai e filho içam baldes de trinta quilos, que Luís depois carrega no ombro até um depósito que vem a reboque de um empilhador. No processo repetitivo e extenuante, até o recipiente ficar próximo de transbordar com “meia tonelada” do cristal, os dois, com a força do mesmo sangue, trabalham em nome da safra. Depois, Luís manobra com facilidade o veículo, para ir despejar o carregamento de sal ao armazém. Fica do outro lado da estrada o portão branco, a cerca de quarenta metros da eira, e com a serra atrás a engolir a pequena povoação.
As salinas encaixam-se num vale tifónico no sopé da Serra dos Candeeiros. Estão rodeadas de arvoredo e terras de cultivo. São um tesouro raro da natureza – singular em Portugal – com o Atlântico a 30 quilómetros de distância. E finalmente chegou o calor. A postura de Luís não mente: “Que isto seja um centro comercial a céu aberto”, grita com entusiasmo.
O estratega da política de marketing da empresa da família resume os ciclos desta substância vital para os seres humanos: “Normalmente é recolhida a flor do sal ao terceiro dia a contar do início da evaporação. E o sal ao quinto e sexto dia desde o seu aparecimento à tona”. Por último, fica no armazém a secar e, quando estiver pronto, é manualmente que é configurado para propósitos comerciais, na Loja do Sal – o principal sustento da família Lopes.
Breve história (do desgaste) das Salinas da Fonte da Bica
Pela sua génese calcária, a Serra dos Candeeiros é possuidora de inúmeras falhas na rocha, o que faz com que as águas da chuva não fiquem à superfície. Formam-se cursos de água subterrâneos que rompem uma extensa e profunda jazida de sal-gema que alimenta o poço que se encontra no centro das salinas. O desgaste do subsolo preocupa José Casimiro, presidente da direção da Coopsal. “Temos de preservar o que é nosso e respeitar o que aqui foi feito. Há um desgaste do filão de sal-gema”.
Apesar dessa noção ambiental, a Cooperativa investiu em tanques concentradores e motobombas para trazer com afinco o ouro branco das profundezas: “Antigamente, os homens puxavam a água do fundo do poço com picotas. Um trabalho duríssimo. Mas a Cooperativa instalou bombas há uns anos para facilitar o processo. E também mandou construir concentradores para aumentar a produção”, assim esclareceu José Casimiro sobre a gestão da terra. Nos tanques concentradores, a água sofre uma primeira evaporação. Depois de concentrada, volta à pia de distribuição, que se encontra junto ao poço, e que vai alimentar os talhos através das sete regueiras existentes.
Embora o documento mais antigo que se refere ao lugar seja de 1177, especula-se que o aproveitamento do sal-gema já seria feito desde a pré-história. O presidente avisa: “Temos de ter atenção ao desgaste do subsolo ou corremos o risco de acordarmos lá em baixo”. No seu escritório, que fica dentro da loja que expõe alguns produtos derivados do sal – de muitas marcas registadas em nome da Cooperativa – José Casimiro senta-se na cadeira que foi do pai até 2010. Mas justifica o mérito. “Fui encarregado durante muito tempo e mais tarde fui eleito pela assembleia-geral para presidente”. Nas salinas, trabalha há 40 anos. Agora, queixa-se de “nunca ter tirado férias” e ter um problema que “mal o deixa dormir”.
O sal da polémica
Um investidor chamado Rui Laurentino registou a marca Sal Sem Mar. Luís Lopes gere a página do Facebook (quase com 12 mil seguidores) desta marca, colaborando com o homem que registou o nome e levantou a celeuma neste pequeno pedaço de terra. José Casimiro diz que “Sal Sem Mar” é corrente linguística dos salineiros “há 800 anos”, e que o registo feito em Lisboa, em 2019, não lhes foi comunicado atempadamente.
Gonçalo Fernandes, 29 anos, é advogado e frequentou uma graduação em direitos de autor e propriedade intelectual. Sobre esta situação considera que o maior problema é a falta de eficácia na comunicação feita pelas instituições. “A divulgação da informação com as partes interessadas é importante no processo de apreciação à marca, para que haja uma consulta pública, chamando a atenção de presumíveis interessados”. De acordo com o Código da Propriedade Industrial, o pedido de registo nacional de marcas confere 60 dias após publicação para a apresentação de reclamações de quem se julgar prejudicado pela eventual concessão do mesmo. Gonçalo Fernandes reforça: “É importante haver mecanismos de comunicação direta, pois o Boletim da Propriedade Industrial não é de fácil acesso ou inteligibilidade”.
O registo da marca foi autorizado pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), e só em março deste ano é que a Cooperativa avançou com um pedido de invalidade da marca – requisição que permanece pendente. O líder da Cooperativa já esteve reunido com o investidor. A discussão não foi branda. “Entraram de má-fé. Não podemos tolerar isso. O senhor Rui disse-me que íamos perder, por ter dinheiro”.
Rui Laurentino é um homem de negócios. Em declarações a sinalAberto diz que ficou “deslumbrado pelas salinas apenas há quatro anos”, quando as visitou pela primeira vez. Olha para o lugar com o horizonte de “grande potencial turístico”, pela proximidade a Lisboa, mas realça que a “região não tem escala” suficiente para ser um projeto de boa rentabilidade. Contudo, acredita que a página Sal Sem Mar tem capacidade de contribuir para “promover as salinas e que beneficia toda a gente” que ali monta a sua empresa. Abusa dos estrangeirismos enquanto conversa e pede desculpa por isso. E quando questionado sobre a acusação do presidente da Cooperativa, Rui Laurentino pega nas palavras com pinças para deixar uma resposta enigmática: “Não vou discutir as dinâmicas locais”.
Os negócios do sal sem mar e dos templários furiosos
Quem entra na Loja do Sal, fundada em 2009, parece estar numa requintada mercearia medieval. Os expositores são apelativos, os produtos brilham e o atendimento não fica atrás. “90% dos produtos que aqui se vende são regionais”, quem o diz é José Morgado, um jovem empregado da família Lopes. Sabe de cor as características dos produtos e atende uns clientes estrangeiros num inglês quase perfeito. São algumas as pessoas que entram na loja, e raras as que não saem com um saco nas mãos e um sorriso na cara.
Há flor de sal, sal com ervas aromáticas, temperos de carne e peixe, queijos de sal, aromatizados, bolachas. No ar, o odor é puro e inquietante, de madeira viva e chocolate ligeiramente salgado. Pendurado junto de uma porta que dá acesso a uma futura taberna de petiscos ali da casa, podemos observar umas tábuas de dívida. Luís conta a história que começou em 1865. “ O meu bisavô criou símbolos que escrevia nas paredes de madeira, para registar a despesa feita por cada salineiro na taberna. Cada símbolo representava a bebida fornecida e o respetivo preço em réguas”. Na verdade, os salineiros embebedavam-se e pagavam com o suor.
Hoje, o negócio é além-fronteiras. No mercado internacional estão presentes em França, Suíça, Alemanha, Bélgica, Holanda e EUA. Produzem, por ano, perto de 300 toneladas de sal, mas Luís tem uma teoria: “Queremos uma aposta maior mas com critérios de sustentabilidade. O objetivo não é vender camiões”. São fornecedores, essencialmente, de hotelaria de luxo, mercearias gourmet ou chefes de renome que procuram o melhor sal para a arte de cozinhar. Luís remata. ”O nosso sal é 100 por cento português e artesanal”. Atrás da caixa, o irmão João domina as contas. Dentro da loja, a mãe Emília espalha simpatia por quem aparece.
Na Cooperativa as quantidades são outras e deve-se aos mais de 450 talhos que a organização reúne por cerca de 80 sócios. “Num ano bom chegamos a produzir 1500 toneladas de sal”, ouve-se da voz carregada de José Casimiro. O mineral produzido nesta casa vai assentar arraiais sobretudo na Alemanha e é moído, ou não, conforme a indústria a que se destina. O presidente explica porquê. “Os alemães valorizam o nosso produto, que não sofre qualquer tratamento químico e preserva grandes percentagens de selénio”. É por essa propriedade, que ajuda na reprodução animal e do gado, que os alemães se interessam pelo sal de Rio Maior.
Sobre o preço, em Portugal é vendido a 20 cêntimos o quilo e para fora acresce 10 cêntimos pela mesma quantidade. O volume de negócios fixa-se entre os 400 e 500 mil euros anualmente. Na safra são pagos cinco euros à hora para rapar o sal, normalmente a homens provenientes do Médio Oriente e da India, contratados na época sazonal. A loja da Cooperativa é ampla e menos chamativa, no interior tem um manequim de plástico vestido de salineiro e alguns produtos com embalagens algo pardacentas. “Esta marca registámos nós”, diz José Casimiro a segurar um saco de “Sal dos Templários”. E volta ao tema que o preocupa. “O registo da marca mexeu na veia dos salineiros”. Está a falar dos cooperantes. Estão furiosos.
Um conflito salgado por falta de regulamentação
Luís Lopes acredita que devia haver “mais aposta e visão para intensificar o turismo e promover as marcas da região”. É nesse sentido que funciona a sua página do Facebook – Sal Sem Mar (é parceiro de Rui Laurentino na SSM, LDA). Serve como plataforma de reservas e tem fotografias da região de encher qualquer olho. Sérgio é segurança noturno de profissão e autor de fotografias nas horas preciosas do dia. Mostra-se indeciso para contar o que aconteceu numa manhã de disparos.”Fui destratado pelo presidente da Cooperativa”, acabou por dizer. Já tinha colaborado com eles na época dos presépios de sal (nas semanas do natal), mas agora lamenta, “têm-me impedido de fotografar”.
O investidor que se apaixonou pelo sal sem mar explica um pouco da posição que tem tomado. “Dissemos desde o início que o registo sobre a produção de sal não é o nosso foco”. E por essa razão, Rui Laurentino não tem problemas em deixar cair a ideia. O que lhe importa é alinhar a marca à volta da “animação turística”. A sua “cruzada”, refere, é simplesmente viabilizar mais procura e vida naquela região, com um serviço de “booking alternativo e poderosíssimo”. Sobre o conflito, menciona que “não vai mandar gasolina para um incêndio que não é dele” e fala de “algumas dicotomias” na organização e estatuto da Cooperativa. Feitas as contas, quer fazer “algo que o divirta e que potencie a interação das marcas regionais, com futuros visitantes das salinas”.
Mas é por causa do registo da marca que José Casimiro prossegue. “Isto é propriedade privada e não permitimos que usem o que é nosso para fins comerciais”. Luís Lopes não comenta o assunto e deixa a situação para os tribunais. No entanto, acredita haver necessidade de “requalificação e reinvenção” nas salinas. O presidente defende-se. “Estamos à espera de um plano pormenor há vinte anos”. Além disso, diz que as Salinas são um imóvel de interesse público, “dependentes de outras entidades para executar planos naquela zona”. Sobre pequenos comerciantes e artesãos que alugam barracas nas marinheiras, para José Casimiro há um senão.”Tivemos aqui um que tinha brinquedos de plástico com cores berrantes na entrada. Cada um faz o que quer e não pode ser”.
A falta de regulamentação das salinas criou um conflito. As relações são sinuosas e os que amam o sal estão divididos. Há buracos na governação e todos saem prejudicados. As regras perderam-se no tempo e os tempos mudaram. É essencial descomplicar burocracias e clarificar direitos telúricos e comerciais. Alguns quiseram arriscar e outros estão danados. Assim, até parece que o sal é o grande culpado.