O inimigo

Ciganos detidos para deportação, pelo governo alemão, em 22 de Maio de 1940. (Foto: Bundesarchiv, R 165 Bild-244-48 / CC-BY-SA 3.0 – cafehistoria.com.br)
Refletindo um pouco, parece que a História da Humanidade é feita por heróis e por inimigos; por vilões. Sendo que o inimigo, o vilão, é sempre o outro e nós, do nosso ponto de vista, seja ele qual for, somos sempre os heróis. E talvez, indo até mais longe, seja mais sinónimo de derrotado ou de frágil do que de, propriamente, maléfico, porque o outro é sempre diferente. Portanto, é o inimigo e, consequentemente, é mau. E se o outro for fraco, mais do que mau, é culpado.

Não importa a atrocidade, nós somos sempre os bons, os heróis. Recordo que o regime nazi assassinou, sem nenhuma gota de piedade, cerca de 1,5 milhões de crianças indefesas, entre as quais crianças judias, ciganas, deficientes, etc. Eram estas crianças indefesas e inocentes culpadas do que quer que fosse? É óbvio que todos diremos que não. No entanto, o nobre povo ariano da época homenageava os seus valentes heróis, amava-os com a intensidade com que apenas se pode amar um símbolo e uma lenda, com todo um sentimentalismo épico e maternal. Amavam-nos porque perseguiam os seus inimigos, os seus monstros, mesmo quando eram simples e vulneráveis criancinhas.

Localmente, foram realizadas terríveis experiências
com seres humanos, durante a Segunda Guerra Sino-
Japonesa e na Segunda Guerra Mundial.
(megacurioso.com.br)
Dando outro exemplo, do outro lado do Mundo, no Japão, na mesma época, era apregoada a superioridade do povo Yamato (ou dos Wajin, considerada a etnia nativa predominante naquele território), engrandecendo o passado feudal samurai do país, levando, entre outras coisas, à criação da Unidade 731, na qual se faziam experiências desumanas com os chineses invadidos e de etnia inferior, entre eles milhares de crianças.
“Ah, que barbaridade!”, dirão alguns, esquecendo que, neste mesmo momento, quem mais sofre na Ucrânia, às mãos dos Russos, são as crianças, porque estas são inimigas perante os planos de glória e de expansão do “amado” líder russo, Vladimir Putin. De facto, quem sempre sofreu mais durante todas as guerras foram as crianças, pois deixavam (e deixam) de ser crianças, passando a ser o inimigo, quando os “heróis” o decidem de forma completamente arbitrária. Não esqueçamos o Iraque, nem a Síria, nem os cidadãos curdos, nem os Uigures (mesmo não sendo numa situação de guerra), nem os Tutsis do Ruanda, entre outros inimigos (muitas crianças) que foram e são perseguidos, torturados e mortos pelos “bons”.

E o mais interessante é que toda a gente é um inimigo, basta ser diferente. Basta vestir de forma diferente, falar de forma diferente, possuir uma cor diferente, rezar de forma diferente, amar de forma diferente, gostar de coisas diferentes… E assim legitima-se o assassinato de um adepto de um clube diferente, pois este já não é humano, é um inimigo. Então, desta forma, o espectável é que, já que todos somos diferentes uns dos outros, vivêssemos numa espécie de lei da selva. Não obstante, de forma a evitar isso, criámos grupos próprios e fechados a que pertencer.

De facto, estou a levar a ideia aos extremos, mas é exatamente nos extremos que é mais fácil exibir os conceitos. Basta-nos olhar para o mundo atual para o percebermos: os líderes promotores dos bons costumes e defensores das “pessoas de bem” berram aos quatro ventos a inferioridade étnica e moral de todos aqueles que não pertencem à sua nação una ou que fogem aos costumes aceitáveis, visto que esses são maus, são o inimigo; em certos países, as mulheres que não vestirem como mandam os costumes e o Estado serão mortas, uma vez que são más, são o inimigo, entre outros diversos e múltiplos exemplos.

É extremamente difícil olhar para o outro e ver um igual, tentar compreendê-lo e superar as diferenças, porque se pensa que o objetivo do outro é fazer-me algum tipo de mal.
Certa vez, estava numa pastelaria de uma cidade do Sul do país, a tomar o meu pequeno-almoço de forma descontraída, quando um grupo de jovens, cheios de sentido de dever, me começam a ameaçar. Primeiro, de forma indireta. E de maneira gradualmente mais direta, conforme o tempo ia passando. Segundo eles, aquele não era o lugar para um cigano estar. Presumivelmente, é inadmissível que um cigano coma um bolo xadrez e beba um galão, porque o “inimigo” não come; ou seja, o “inimigo” não é humano.
Numa outra ocasião, quando ainda estava no primeiro ano da licenciatura em Gestão, pedi trabalho num estabelecimento local que, no momento, se encontrava a pedir pessoal. No entanto, foi-me negado o trabalho, porque “é complicado ter um cigano a atender clientes e a mexer em dinheiro”. Pois, os ciganos são todos ladrões e têm sentido de colmeia, porque o “inimigo” não é humano. Foram tantas as vezes em que o Natanael foi esquecido e, apenas, o rótulo de cigano prevaleceu.

O meu ponto de vista é o de que devemos evoluir enquanto espécie e sociedade, passando a ver as pessoas que nos rodeiam como nossos semelhantes, como seres humanos individuais e próprios com as suas características, defeitos e virtudes. Compreender que o inimigo não existe, pois, nesse mesmo rumo, eu também sou o inimigo de alguém. Importa terminar com a justificação da barbárie e da perseguição, porquanto a diferença do outro é um enriquecimento para o meu ser e não uma ameaça.
Creio que, acima de tudo, é importante forcarmo-nos em nós próprios e descobrirmos que não somos de todo melhores que os restantes, que também somos falhos, que também precisamos de melhorar; e que não somos mais perfeitos do que os outros por causa do país em que nascemos, do clube que escolhemos ou dos nossos conceitos sociais de “bem” e de “mal”. Talvez, então, comecemos a olhar-nos nos olhos e a estender as mãos uns aos outros. Talvez, quando percebermos que somos, necessariamente, um conjunto de indivíduos cooperantes, as situações mudem e o “inimigo” ganhe nome próprio.
19/01/2023