O injusto privilégio de jubilações de juízes em nome da independência

 O injusto privilégio de jubilações de juízes em nome da independência

(dn.pt)

A15 de janeiro, o Público fazia manchete com a notícia de juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que passam tão fugazmente pelo lugar que não chegam a ser-lhes distribuídos quaisquer processos, pois reúnem, a curto prazo, condições para a jubilação. E a revista Sábado dá conta de um juiz conselheiro (designação estatutária dos juízes do STJ), cuja ascensão esteve suspensa, em virtude de um processo em que foi condenado por violar o dever de lealdade e o de discrição, mas que, havendo tomado posse recentemente, foi posicionado no escalão remuneratório que lhe cabia (o do topo da carreira), com efeitos retroativos à data em que supostamente deveria ter ascendido ao STJ e, passados três meses, requereu a jubilação, por estarem reunidas as condições para tal.

Em 2022, cinco juízes deixaram o STJ, após menos de um ano em funções. E o caso de uma magistrada a quem não foram distribuídos processos por se jubilar ao fim de dois meses causou celeuma.       

A razão de isso acontecer está, obviamente, no facto de terem direito a pensão de valor superior à sua já elevada remuneração mensal, de 6.700 euros (acima da do primeiro-ministro), acrescida de um subsídio de residência de 900 euros, pois, além de a pensão ter o mesmo valor daquela, deixam de descontar os 11% para a segurança social. 

Tomada de posse no Supremo Tribunal de Justiça. (justica.gov.pt)

Sendo assim, ao invés do que sucede noutras carreiras públicas, por exemplo no ensino superior (os outros não aguentam), em que os professores tendem a manter-se no ativo, até aos 70 anos (idade da aposentação obrigatória), para protelarem a redução de rendimento que a aposentação lhes traz, os magistrados judiciais têm irresistível incentivo para saírem logo que possível: ganhar mais sem trabalhar. Assim, há juízes a usar o STJ para se jubilarem com mais 250 euros mensais brutos. Apesar de o aumento líquido ser inferior a esta soma, o prestígio de alcançarem o topo da carreira tem incentivado estas passagens fugazes pelos corredores do Terreiro do Paço.

Entretanto, dizem alguns que, salvas as devidas circunstâncias, isso também acontece noutros tribunais superiores (tribunais da relação) e nos de 1.ª instância, bem como nos magistrados do Ministério Público, os quais não têm o mesmo tipo de responsabilidade dos juízes.

Em 2022, cinco juízes deixaram o STJ, após menos de um ano em funções. E o caso de uma magistrada a quem não foram distribuídos processos por se jubilar ao fim de dois meses causou celeuma

É certo que o jubilado pode ser, extraordinariamente, chamado a exercer funções no STJ, o que não é obrigado a aceitar, e que exercerá em condições iguais aos dos conselheiros no ativo.

Na verdade, o Estatuto dos Magistrados Judiciais (SMJ) estabelece no artigo 64.º: “Consideram-se jubilados os magistrados judiciais que se aposentem ou reformem, por motivos não disciplinares, com a idade e o tempo de serviço previstos no anexo II da presente lei (65 anos e 40 anos, respetivamente) e desde que contem, pelo menos, 25 anos de serviço na magistratura, dos quais os últimos 5 tenham sido prestados ininterruptamente no período que antecedeu a jubilação, exceto se o período de interrupção for motivado por razões de saúde ou se decorrer do exercício de funções públicas emergentes de comissão de serviço” (n.º 1); “continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados ao tribunal de que faziam parte, gozam dos títulos, honras, direitos especiais e garantias correspondentes à sua categoria e podem assistir de traje profissional às cerimónias solenes que se realizem no referido tribunal, tomando lugar à direita dos magistrados em serviço ativo” (n.º 2); gozam de todos os direitos especiais dos juízes (veja-se o n.º 3) (entrada e livre-trânsito em gares, cais de embarque e aeroportos; gratuitos o uso, o porte e o manifesto de arma; vigilância da sua pessoa, família e bens; utilização gratuita, no exercício de funções, de transporte terrestre, marítimo, fluvial e aéreo; isenção de custas em processos decorrentes das suas funções; dedução ao rendimento, para cálculo do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS), de despesas com a valorização profissional e com o trajo profissional; duas ações gratuitas de formação contínua por ano; gozo dos direitos sindicais; bem como casa mobilada ou subsídio pecuniário mensal; “aos juízes conselheiros não oriundos da magistratura e aos magistrados com mais de 40 anos de idade na data de admissão no Centro de Estudos Judiciários não é aplicável o requisito de 25 anos de tempo de serviço na magistratura” (n.º 4).

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo.
(Créditos fotográficos: Manuel de Almeida/Lusa – tsf.pt)

O presidente, os vice-presidentes do STJ e o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura “têm direito a passaporte diplomático e os juízes dos tribunais superiores a passaporte especial, podendo ainda este documento vir a ser atribuído aos juízes de direito sempre que se desloquem ao estrangeiro em virtude das funções que exercem” (artigo 17.º, n.º 1).

Atendendo ao que vem estabelecido no Estatuto dos Magistrados Judiciais, verifica-se como os magistrados judiciais vivem em situação de privilégio remuneratório

Nos termos do artigo 64.º-A, a pensão dos magistrados jubilados é calculada em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respetivo, não podendo a mesma ser superior nem inferior à remuneração do magistrado judicial no ativo de categoria e índice remuneratório idênticos, deduzida da quota para a Caixa Geral de Aposentações ou da quotização para a Segurança Social; e essas pensões são automaticamente atualizadas e na mesma proporção em função das remunerações dos magistrados de categoria e escalão correspondentes àqueles em que se verifica a jubilação.

Atendendo ao que vem estabelecido no SMJ, verifica-se como os magistrados judiciais vivem em situação de privilégio remuneratório, comparativamente com os demais trabalhadores. Com efeito, além das ajudas de custo, subsídios de deslocação e subsídio de residência, percebem, logo no início de carreira, remuneração superior, por exemplo, à dos professores no topo da carreira.

Temos uma justiça morosa já de si, dada a complexidade de muitos dos processos e a falta de recursos humanos e materiais, a que, pelos vistos, acresce a elevada rotação na composição do STJ e dos demais tribunais superiores devido a juízes que nem sequer chegam a aquecer o lugar. Ninguém diz o que se passa no Supremo Tribunal Administrativo (STA) e nos tribunais centrais administrativos, mas, no Tribunal Constitucional, sabe-se que os juízes cooptados prolongam a sua permanência no cargo a fim de reunirem condições para a aposentação (10 anos de serviço).

Quer tudo isto dizer que os encarregados, constitucionalmente, de administrar a justiça, em nome do povo, vivem e trabalham de forma injusta, comparativamente com os demais trabalhadores da administração pública. Invocam a lei, mas esta só permite, não obriga.     

O constitucionalista Vital Moreira. (jornaleconomico.pt)

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira tece, com toda a razão, o seguinte comentário: “O que é extraordinário é não haver nenhum debate, nem no campo político nem na sociedade civil, sobre este injustificado privilégio, apesar de ele se tornar cada vez mais insustentável, à medida que o valor das pensões do regime geral se vai distanciando das correspondentes remunerações à saída, quer pela degradação da ‘taxa de substituição’, quer porque a atualização das pensões não acompanha a das remunerações.” No entanto, como referia o Público, o envelhecimento dos conselheiros preocupa o presidente do STJ.

Os encarregados, constitucionalmente, de administrar a justiça, em nome do povo, vivem e trabalham de forma injusta, comparativamente com os demais trabalhadores da administração pública

E, em nome do “mínimo de respeito pelo princípio da igualdade constitucional”, o renomado académico discorre: “É de perguntar se, daqui a uns anos, é social e politicamente tolerável uma situação em que as pensões da generalidade dos portugueses são da ordem dos 50% do valor dos correspondentes vencimentos no ativo, enquanto uma pequena ‘elite da toga’ continua a obter uma pensão mesmo superior à sua elevada remuneração, e beneficiando automaticamente de qualquer valorização superveniente desta.” Na verdade, como bem observa, “ao contrário das demais, aquelas pensões nenhuma relação têm com os descontos dos seus beneficiários para a segurança social”.

***

Foi, em tempos, apontado o caso “escandaloso” da ex-ministra Francisca Van Dunem, que nem chegou a ocupar o cargo, tendo acedido ao STJ a 29 de março de 2016 e sido, depois, jubilada enquanto exercia funções governativas. E vinca-se que o erro está na tomada de posse enquanto era membro do Governo, em alegada incompatibilidade com o princípio da separação dos poderes e com o da independência dos tribunais.

Francisca Van Dunem aposentada e jubilada como juíza do Supremo Tribunal. (cnnportugal.iol.pt)

Não tendo competência para contra-argumentar, pergunto-me se os deputados e os membros do Governo perderão os seus direitos profissionais enquanto e porque estão no exercício de cargos políticos stricto sensu. Seria ilegal e injusto, se fossem remunerados pelo vencimento de origem, ou seja, se a ex-ministra da Justiça e, mais tarde, também da Administração Interna fosse remunerada como juíza conselheira do STJ. Quanto ao mais, está nas mesmas condições dos que não aquecem o lugar.

Quanto ao princípio da separação de poderes, não o vejo desrespeitado, a menos que houvesse exercício simultâneo de funções num e noutro órgão de soberania; ou se voltassem aos tribunais sem o conveniente período de nojo político. Também os ministros e secretários de Estado que forem eleitos deputados suspendem o cargo, quando vão para o Governo, e regressam ao Parlamento, à universidade, à escola ou à empresa, quando deixam as funções governativas.    

Presidente da República (Marcelo Rebelo de Sousa) e primeiro-ministro (António Costa). (cnnportugal.iol.pt)

Quanto a independência política, esta é prerrogativa dos Tribunais, do Parlamento, do Governo e do Presidente da República. Todos estes são órgãos do poder político soberano e são independentes. Entretanto, vê-se como os membros do Governo se dirigem aos deputados e como estes os tratam. Vê-se como o Presidente da República (o PR) critica o Governo e faz, publicamente, juízos de valor sobre os ministros e secretários de Estado (o que não devia fazer), tentando marcar a sua agenda política. Se fôssemos a levar à risca a separação absoluta dos poderes (eles são mais contrapesos do que poderes separados), o PR não poderia, por exemplo, vetar leis, dissolver o Parlamento ou enviar-lhe mensagens. Parece que a única independência de órgãos de soberania a levar a preceito é a dos tribunais. E a dos outros órgãos?   

Enfim, pouco falta para os Tribunais serem um Estado dentro do Estado. Porém, nunca se pode aceitar, em nome do respeito pelas instituições democráticas, a insinuação abjeta da Sábado da transformação do STJ em Supremo Tribunal de Jubilação.

02/02/2023

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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