O inqualificável mundo da censura

 O inqualificável mundo da censura

(Créditos fotográficos: Adam Winger – Unsplash)

Uma sanha censória percorre o mundo ocidental, na tentativa de corrigir livros escritos há séculos. E como é habitual em práticas de censura, tudo é executado em nome da justiça.

Em nome do bem comum, lá vão apagando ou traduzindo em linguagem inclusiva obras-primas que autores (já clássicos) escreveram com aprumo e arte, fixando o mundo que lhes coube em sorte conhecer e imaginar.

A literatura, arte de excelência, fixa – como nenhuma outra – o percurso do  homem e a sua civilização de altos e baixos, de invasões e acolhimentos, com heróis improváveis: negros, amarelos, peles-vermelhas ou brancos; sanguinários ou pacifistas; tiranos ou libertários na guerra e na paz.

E, para gáudio dos novos censores, só será necessário corrigir e editar à sua maneira. Basta-lhes um teclado.

Sempre em nome da felicidade do povo, criaram a animação permanente (quem lê, ainda, a história do sanguinário coliseu que ilustra a decadência dos Romanos?), seja através de jogos que mobilizam a multidão, seja através dessa proximidade de um ecrã aceso em todos os lugares, que vai educando os sentidos e o gosto, preenchendo o vazio que se instala após o trabalho obrigatório de sobrevivência.

(Créditos fotográficos: Ismail Salad Osman Hajji dirir – Unsplash)

Nunca, como hoje, o preenchimento do tempo livre foi tão preparado para que ninguém fique com tempo para a Leitura, para o Teatro ou para o Cinema. A não ser a de obras expressamente criadas para divertir, para consumir com uma cerveja fresca na mão e um pacote de pipocas na outra. Depois do trabalho, o importante é o divertimento para esquecer; e o banquete para comer e beber até à exaustão.

Parece que só o tabaco prejudica a saúde. E que o álcool ainda não afeta o funcionário que cumpre horários de segunda a sexta. A obesidade ainda não é uma catástrofe. Lá chegaremos. O Estado paternalista não pode tratar de tudo ao mesmo tempo, calma!

Numa inqualificável censura em nome do bem, como é sempre o discurso de todos os totalitarismos, as democracias europeias, em parceria com a América do Norte (que civilizou), dedicam-se, em pleno século XXI, a corrigir obras literárias, para evitar ofensas étnicas ou de género. E, assim, entramos a fundo na estupidificação com que são tratadas, atualmente, a arte, em geral, e a literatura, em particular.

Temo que o radicalismo de Franz Kafka seja proibido, em breve, nas universidades, pela dificuldade de os alunos (e professores) perceberem, já, a metáfora da “Metamorfose” ou a falta de sentido na narrativa do “Processo”. Diluir a importância da arte, a um ponto de a tornar irrelevante e acrítica, é também uma máquina de censura eficaz.

Hoje, neste nosso admirável mundo tecnológico, não será necessário recorrer ao triste espetáculo do fogo que os antigos regimes totalitaristas usavam para afastar os cidadãos dessa literatura que corrompia os espíritos mais curiosos e libertários.

A arte que solicita atenção, a que nos interpela nas nossas certezas, a que nos leva a encontros com seres extraordinários que viveram há mil anos, no século passado ou com quem ainda partilhamos o presente, é um perigo evidente para a nova ordem internacional.

(Créditos fotográficos: Joshua Coleman – Unsplash)

Com a correção de livros considerados obras-primas, ao longo de séculos, pelos seus leitores e críticos – daí a sua sobrevivência até hoje –, inaugura-se uma nova ordem ocidental que decreta que não convém desassossegar nem interpelar: só divertir.

Os livros que não divertem e que estão cheios de pessoas em sofrimento e com comportamentos imperfeitos, há que os editar de novo. Como deve ser. Sem ofensas ao padrão de desenvolvimento bem estudado por especialistas encartados.

O novo paradigma é uma ilha digital de liberdade, de fraternidade e de igualdade, sem racismo, sem fome e sem violência. Mas também sem literatura de ficção com lutas racistas ou laborais, pois são uma ofensa à inclusão, à justiça social e ao pacifismo global e financeiro que o Ocidente constrói e espalha pelo Mundo, como um manto de felicidade, ao alcance de todos.

Com a ajuda dos corretores eletrónicos, a guerra apaga-se; o racismo é, finalmente, eliminado; e a violência terá o seu fim num abraço muito, mesmo muito apertado (até à asfixia?). E viveremos todos no mundo, finalmente, corrigido à imagem do “grande irmão” que George Orwell já tinha anunciado, em 1949.

Manuel Vicent (colunista do El País) também já o tinha vaticinado, nos anos 80 do século XX: o que não passar pela televisão deixará de existir na vida das pessoas.

Felizmente, Portugal ainda não é bem esse mundo ocidental e desenvolvido.

(Direitos reservados)

Ninguém na Assembleia da República ainda apresentou um projeto-lei para eliminar “A Queda de Um Anjo” das livrarias; nem pediu para que se corrija, na obra de Camilo Castelo Branco, a origem daquele deputado que só chegou ao Parlamento pela fortuna do pai, um rico comerciante do Porto, que inventou a aguardente de nabo.

Espero que algum deputado (ainda leitor) mais atento não queira “proteger” o nosso Parlamento do enxovalho a que foram submetidos os seus antecessores na literatura. Ou que o reitor de alguma universidade não decida retirar do ensino “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, por nos mostrar, com a nitidez de um espelho, o saber inchado dos conselheiros Acácios que as universidades ainda teimam em profissionalizar.

(Direitos reservados)

Mas a História ensina-me que, mais tarde ou mais cedo, também este tipo de correção eletrónica da edição de obras literárias chegará a Portugal. Só peço que todo este “mundo limpo da imperfeição” chegue o mais tarde possível; apenas, o suficiente para já não me encontrar com vida.

Nessa altura, os sobreviventes já terão apagado a luz da inquietação e do desassossego. E viverão felizes, do berço até à sua última morada.

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01/06/2023

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Elsa Ligeiro

Editora e divulgadora cultural.

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