O interior do país
É difícil resumir em poucas palavras ao que se vem; o importante será explicar onde nos encontramos e qual o caminho a percorrer. Profissionalmente estou na área da Cultura e das Artes; a mais difícil profissão de gerir no século vinte e um em Portugal. Editar livros e revistas (imagino a dificuldade em publicar e distribuir jornais) é um desafio olímpico. No Interior, é uma impossibilidade devido à inexistência de gráficas de qualidade.
Enquanto profissional das artes literárias (em decadência, em prol das performativas, muito mais adequadas ao entretenimento que move o mundo) decidi, em 2016, abandonar a provinciana Coimbra; para me deslocar para o concelho de Castelo Branco, de modo a conhecer na carne o provérbio “ninguém é profeta na sua terra”.
Nascida em Alcains, aqui regressei, depois de 25 anos em Coimbra, onde me conheci melhor e percebi que frequentar a Academia não é um sinal aberto à inteligência nem à criatividade. Os meus vinte cinco anos de Coimbra foram um curso de conhecimento profundo sobre a Poesia e a falta dela; sobre as relações humanas e a dificuldade de criar comunidade para lá do interesse pessoal. Talvez a nossa condição humana seja a de nos agruparmos apenas (e só) para defendermos o nosso interesse individual. E, se assim for, ao menos que o façamos com a humanidade que os livros registam com firmeza.
Ou indo um pouco mais à frente: gostava de falar de Poesia, a arte humana por excelência (espero ter engenho e arte para o comprovar através de futuras crónicas que me proponho escrever).
Vivo há algumas décadas no equívoco de ser olhada pelos meus pares, e por muitos outros, como a rapariga das atitudes poéticas. É verdade, mas não na afirmação lírica com que o dizem. A Poesia, a mais humana das artes, repito, é a que me obrigou a regressar a Alcains, muito mais que o estranho provérbio que partilhei no início desta crónica ou conversa aberta.
O desejo de justiça, o dever de dar valor ao território da juventude; o regresso a uma identidade que nunca perdi e a uma infância sempre mitificada, especialmente quando se estagia já na difícil arte da perda (dos avós, dos pais). Viver de forma definitiva, desde 2016, na Beira Interior, deu-me uma perspetiva de Portugal que os estudos académicos e as reportagens jornalísticas nunca conseguiram, porque não são reais.
A mobilidade, a falta de uma opinião pública qualificada e a imprensa totalmente afeta ao poder autárquico ou religioso (sim, ainda há jornais da paróquia e dirigidos por sacerdotes) não são estatísticas nem mestrados com muitas fontes académicas. A vida não se estuda, enfrenta-se com o corpo e a alma.
O envelhecimento das aldeias e das vilas não é, apenas, o que vemos nas reportagens televisivas com narrativas líricas e banda sonora adequada. O Interior não está abandonado porque nunca esteve no centro de nada. Sempre foi invadido ou usado para narrativas salazarentas sobre o que é o povo autóctone. A aldeia mais portuguesa de Portugal sempre esteve no Interior. A pobreza honesta sempre foi a do Interior. Torga tem dos serranos uma imagem jocosa e de pastores; e com pouco conhecimento da realidade, diga-se. Classifica-os de teimosos: “[…] como um Sísifo voluntário, nenhuma mudez original é capaz de o impedir de tornar audível o que esta afirmação promete de tenacidade, concentração, serenidade e consciência de si. Ou não estivesse a serra por detrás dos seus gestos! Medieval e tosco na capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital, ajoelhado e renascido em Góis, fidalgo descobridor em Belmonte, viajante na Covilhã, guerrilheiro em Midões, pastor e camponês em toda a parte, ninguém o pode ignorar. […]”
Mais à frente Miguel Torga atira: “Sem o dizer, sem o afirmar, o beirão sente-se dono de Portugal. Cingido até fisicamente às estremas da sua courela, herda, contudo, o sentido absorvente e centrípeto da mãe.” E pouco crente na possibilidade da eleição futura e democrática de Guterres ou de Sócrates, beirões com mando no Terreiro do Paço, escreve no seu livro Portugal: “Não há casal, dos inúmeros que se espalham pela serra fora como pequenos rebanhos de ovelhas, onde não tenha nascido um desses homens sem brilho, apagados e humildes, que começam a tocar pífaro sobre uma lapa, e que às duas por três estão no Terreiro do Paço de aguilhada na mão”.
O Torga é muito querido (mas pouco lido) no Interior do país. Mas também por aqui não se lê Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade ou José Cardoso Pires; nem sequer os convocam para fazer parte da extraordinária Seleção da Beira Interior, o que na minha opinião é um escândalo. Pêro da Covilhã, Pedro Álvares Cabral, António de Andrade, Amato Lusitano, Pedro da Fonseca, Manuel Antunes, Frei Heitor Pinto (as mulheres ficaram todas à espera dos filhos) nasceram aqui e daqui partiram para nunca mais regressar. Por que é que poucos ficam ou regressam ao Interior? Tentarei responder nos próximos meses a esta questão.
15/12/2022