O maravilhoso mundo das manhãs
Aceito que as manhãs tenham de existir (se não, como chegávamos à hora do almoço?), mas prefiro que sejam os outros a lidar com elas. Quem me vê antes do meio-dia costuma perguntar: “Acordaste agora?” A resposta certa é: “Não, ainda estou a acordar.” Pré-confinamentos, uma pessoa tinha de sair de casa cedo para fazer-se à vida, mas os últimos dois anos introduziram o conceito de ir direto da cama para o trabalho, algo que eu apreciei, embora nem sempre fosse saudável.
Infelizmente, o mundo não funciona de acordo com as minhas preferências. E, no outro dia, vi-me forçado a estar pelas ruas de Madrid às oito de manhã. Já que ali me encontrava, aproveitei para analisar as manhãs espanholas. A primeira tendência que identifiquei – imagino que é válida em todo o mundo – é que o grupo que mais sofre com as manhãs são os progenitores. Lá vão eles – pais, mães, avós – a levar os miúdos à escola, com trotinetas e sacos de educação física, variando entre a bajulação e as ameaças.
Identifico-me com um garoto, Javi, que arrasta os pés (e a mochila) atrás de um pai desesperado. Nada consegue a velocidade de tartaruga. Estou contigo, Javi, temos de lutar contra o poder instituído antes de ter idade de pagar as nossas contas. Vi dois tipos de pais a esta hora: os que vão chegar atrasados e os que não aceitam que vão chegar atrasados. Uma mãe – que, por acaso, é portuguesa – vai pela rua com três filhos e chega a um ponto em que desiste. Deixa a filha que não quer andar para trás e diz aos outros que se mexam. São técnicas e estratégias.
Tanta animação a esta hora deixou-me sem energia. Sento-me para tomar o pequeno-almoço. Aqui, o ritmo é diferente. Com os trabalhadores já no escritório, os cafés tornam-se o domínio de quem não pode ou já não precisa de trabalhar. Uma mesa chama-me a atenção. Seis pessoas mais velhotas estão numa conversa animada, com as queixas típicas do complicado e caro que é viver em Madrid, admitindo, ao mesmo tempo, que nunca deixariam a cidade.
Questões que nunca mudam: não se pode viver nas cidades, mas é ainda mais complicado viver fora delas. Nem sei se encontrariam um grupo tão animado ao pequeno-almoço noutro lugar, porque sempre que chega mais alguém é uma festa. O que comem é um clássico espanhol: pão com tomate, cafés com leite, chocolate quente com churros. Ao lado, uma rapariga tenta manter a tradição pedindo uma torrada com tomate, mas acompanhada de uma Coca-Cola. Muy mal, digo eu.
As manhãs são um mal necessário, mas ajudam a entender um pouco da cultura local. Em qualquer lugar, os pais vão estar a correr com os filhos para a escola, mas só em algumas se encontram estes grupos de pessoas que dedicam tempo para conversar, particularmente, numa cidade tão grande. E nem vos digo como é fácil que a conversa se prolongue, até que os cafés se transformem em cervejas, o que é sempre uma possibilidade.
Quantas mais pessoas nelas habitam, mais impessoais se tornam as cidades. O mundo moderno está construído de maneira a que tudo esteja otimizado, até as interações humanas. E, na pressa do dia a dia, há cada vez menos espaço para apenas estar e interagir, o que é uma pena. Aliás, o sistema capitalista conseguiu, em simultâneo, subir a produtividade e as horas de trabalho, atirando a essência humana, que pede mais ócio que lucro desmedido, para segundo plano. Por isso, fico contente quando ainda consigo encontrar estes pequenos momentos de humanidade e de conexão. Só não me peçam que acorde cedo, em cada dia.
11/07/2022