O Mercado dos Lavradores da cidade do Funchal
Todos os dias, antes de ir para os ensaios, neste breve período em que estou na Madeira, passo pelo Mercado dos Lavradores da cidade do Funchal.
Na parte da frente, concentram-se as vendedeiras de frutas e de flores, ainda vestidas com os seus trajos tradicionais, de saias listadas de cores berrantes.
Como regista a página electrónica Folclore de Portugal, a propósito dos trajos tradicionais madeirenses, no início do século XX: “As saias riscadas das mulheres chamam-se saias cardadas. São de lã e têm conjuntamente as seguintes cores: amarela, azul, encarnada e verde. […] Na cabeça uma carapuça, saia curta de lã encarnada, com listas verticais de cores; capa de meia cintura, azul-escura, debruada de largas fitas de renda da mesma cor, posta sobre o ombro esquerdo e passando por debaixo do braço direito, indo encontrar-se as duas extremidades um pouco abaixo do peito, descobrindo uma branca camisa de linho, abotoada por grandes botões de oiro, com numerosas pregas e caindo sobre as franjas de um colete de cores, sobre o qual assentam grossos grilhões de oiro.”1
No mercado, abundam os frutos mais variados, muitos deles oriundos e típicos da Madeira: anona, bananas, banana prata, a pêra abacate, pêra melão, tomate inglês, papaia, maracujá banana, fruto delicioso (ou maravilha), manga, maracujá, outro maracujá banana, maracujá tomate, pitangas e outras variedades que misturam sabores e aromas originais.
Das flores também podemos falar, encontrando os antúrios, as estrelícias e orquídeas da Madeira, os jarros, também as modestas hortênsias que enveredam as estradas (as nossas hidranjas), as coroas de Henrique (agapantos) e outras.
As vendedeiras caracterizam-se pela simpatia e pela atenciosidade, são as verdadeiras embaixadoras do povo madeirense junto dos turistas curiosos e ávidos de fotos ou selfies. Provavelmente, algumas delas são as mesmas que, há quarenta anos, despertavam a minha curiosidade de visitante. Não encontrei, e foi pena, uns pequenos ramalhetes de camomilas secas destinadas à infusão… Pareciam pequenos brinquedos de noivado infantil!2
Ainda na parte da frente do Mercado dos Lavradores, podemos encontrar os cheiros que caracterizam a culinária da ilha: o louro, a segurelha, o alecrim, o tojo, o funcho/fiolho transmontano e as diversas variedades de alho que aromatizam o bolo do caco.
Em pequenas lojas, estão os vinhos da Madeira e os licores, a poncha em versão engarrafada, os rebuçados de funcho e de outros sabores; e o bolo tradicional de mel da Madeira, bolo denso e rico em frutos secos e especiarias, ideal para o Natal.
Na parte traseira do Mercado, está a praça do peixe. A visita a esta parte é obrigatória, pela abundância, pela oferta e também pela perícia e experiência dos artesãos/vendedores na limpeza e no desmanchar do peixe. Aí se encontra, de olhos vidrados e abertas guelras, uma enorme e variada qualidade de peixes: a cavala, a garoupa, a dourada, o bodião, o pargo, o boca negra, o peixe-porco, o robalo, o pregado, o charuteiro, a freira, o sargo, o rosado espadarte, a moreia e o gordo e cilíndrico atum, do qual quase tudo se aproveita. Também o gaiado seco que, preparado de escabeche, bem como as lapas são pratos preferidos dos pescadores nas vilas piscatórias da Região Autónoma da Madeira.
Ver o peixe-espada preto ser limpo cuidadamente, até ficar transformado numa espada branca, é uma delícia para os olhos. Apetece lembrar o poeta Carlos Drummond de Andrade, quando escreve: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar.”
Ter mantido a tradição original neste mercado foi a mais sábia e acertada solução. Não tem nada a ver com as renovações praticadas no Porto, no Mercado do Bom Sucesso e do emblemático Mercado do Bolhão, transformados em praças de comida gourmet e de falso glamour, o que acabou por os descaracterizar completamente.
O Mercado de Lavradores3, é uma viagem ao passado no presente, onde se mantém a tradição milenar dos mercados públicos: troca não apenas de bens e de serviços, mas também permuta de saberes e de experiências vindas de outros lugares e culturas.
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Notas:
1 – Com base num artigo publicado no jornal O Século, de 23 de Junho de 1901, sem assinatura.
2 – A camomila é designada, na Madeira, macela ou marcela. E recomenda-se, na infusão, utilizar um número ímpar na preparação. A Anthemis nobilis é originária da América do Sul e desenvolveu-se bem na região madeirense, principalmente, na zona da Camacha.
3 – O Mercado dos Lavradores é um prédio histórico situado no centro da cidade do Funchal, na Madeira. Apresenta-se como uma obra que preserva a arquitectura tradicional do Estado Novo, num estilo que oscila entre a Art Déco da década de 1930 e o Modernismo. O Mercado dos Lavradores foi inaugurado a 25 de Novembro de 1940, sendo o projecto arquitectónico da autoria de Edmundo Tavares. É, igualmente, uma das obras de referência do período do governo camarário de Fernão de Ornelas.
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09/05/2024