O meu cinema paraíso

 O meu cinema paraíso

(Direitos reservados)

Pelo tempo abafadiço, a catraiada parecia um sino graças ao espectacular acontecimento do fim-de-semana:

Duma espessa cortina de poeira, ruidosa e triunfal, dava entrada em cena a carripana do cinema ambulante.

Almendra, aldeia de Vila Nova de Foz Côa, despertava então do afadigado e rotineiro mourejo da terra. Povo em reboliço vivia o pico de ansiedade perante aparição tão emocionante! O veículo percorria ruas, quelhos, contornava chafarizes, lagares de azeite, circulava em torno do pelourinho, os cartazes do filme dependurados e os pespinetas no encalço da traquitana – eh, eh, eh.

Hoje, hoje, senhoras e senhores, não percam.

Sensacional!

Um filme que faz comover gerações inteiras.

Anunciava-se pelos altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho, goelas escancaradas para todas as rosas-dos-ventos. Ah, noites fora de série… Sobre mochos e cadeirinhas de assento de palha trazidos de casa, a população rendia-se ao suspiro na Casa do Povo, sobrado já ovalado, tal berço comunitário. Volta e meia, porém, o celulóide quebrava para aflição do projeccionista. Da carcaça da máquina saíam espirros de angústia, uma sequência de engasgos e espasmos. Prolongado rosnar acirrava ainda mais a expectativa.

– Ó-ou!…

No estertor, luzes acesas. Com estardalhaço assoa-se Ti Calhordas, ferrador de nomeada – frrron! Fartas mijadelas dos Bexigas na esquina junto à estrada. O sapateiro Brochas, cu de sono, a ressonar que nem cevado de muito alqueire, não reagia aos pirralhas que dele faziam caçoada por cima da calva. Só uma única vez acordou estrebuchado e, voltado para trás:

– Bô! Quereis ensaiar? Escacho-vos a tola.

Ancuda, numa lufa-lufa de santas paciências, Camila Corre-Corre tapava o relevo do seio com um cueiro. Que maravilha!… a mamada morninha da igrejeira punha em anjo toucado de branco a rabugice do filho ranheta que volta e meia berrega, berrega – deve ser dos gases.

– Apaguem as luzes!

– Silêncio!

Trrrrrrrrrrrr-trrrrrrrrrssszzz. Cortados os fotogramas, unidos os outros com fita-cola, a película por fim desbobinando, desbobinando… e a funcionarem em pleno todos os complicados mecanismos que davam luz e movimento à máquina de projectar.

Uf!, bem-haja Senhora do Alívio.

As meninas casadoiras de cestinha no regaço com ovo de madeira para pontear meias, as costureirinhas que espreitam pelas cortinas de musselina a ver quem chega, quem passa e… será ele, o príncipe encantado a resgatá-las do desesperante celibato?, as casadoiras que vivem o ciclo preparatório dos enxovais tornavam a embaciar os olhos na sequência dramática dos enredos saídos das bobines. Fungam ao de leve, esboçam sorrisos eivados de comoção. Tossicam e suspiram, complacentes.

Tudo quedo.

Enlagrimado.

Amor de Perdição – devagar, devagarinho, lá se ia dobando no ecrã, imaculado lençol nupcial.

Philippe Noiret e Salvatore Cascio: em nome do cinema e da cinefilia. (RTP)

Anos depois, o largar a terra dos meus mortos e a viagem da beira-Douro à beira-mar: Leça da Palmeira, concelho de Matosinhos. E volta a magia do cinema, as matinées dominicais caso não houvesse notas negativas do liceu e o orçamento suplementar da família cobrisse a rubrica das despesas com o ócio.

O Salão Paroquial…

No hall, as vitrinas que mostravam os placards com fotografias das cenas mais marcantes dos filmes. O cheiro dos estofos, o toque de entrada, dooom!… os catraios delambidos vendendo no tabuleiro suspenso por fita à volta do pescoço pacotes de bolacha baunilha, amendoim torrado envolvido em papel amarelo de celofane, chocolates e rebuçados “Noivos”.

Escuridão.

Mal abria o pano de boca, rogava para na primeira fila não se acaçapar toleirão de bovídea pescoceira a tapar-me a visão. Também oxalá uma velha analfabeta não tivesse pago o bilhete à amiga para lhe ler alto as legendas e imitar a entoação dos actores.

Não.

Bem-haja, outra vez bem-haja Senhora do Alívio.

Podia viver o ataque ao comboio liderado pelo Lawrence da Arábia, a corrida de quadrigas em Ben Hur. Em outras ocasiões, à minha frente, num plano largo, rasgava-se o mítico oeste americano em versão western-spaghetti, porém, «pouco barulho, vai a fila inteira lá para fora». De olhos esbugalhados, os arrumadores na tentativa de localizarem arrotos, esganiços e assobiadelas, impertinente espeidorrar, gestos obscenos feitos em sombras chinesas na alvura da tela.

Nas filas de trás, caladinhos que nem ratos, os pares de namorados ou de engate de ocasião devoravam-se com beijos na boca decalcados dos filmes para adultos. Apalpavam coxas e peitos, às vezes mais do que isso, enquanto iam espreitando as primeiras aparições do esguio Clint Eastwood com guarda-pó ou de poncho sobre os ombros. “Cuidado, podem ver-nos”, ela ofegante e preocupada pela reputação; ele, concentrado, ofegante, lá conseguia descruzar-lhe as pernas e de mãozinha escorregadia falsamente travada sobe, sobe, até…

Bang! Bang!

Abatido o bulício das hormonas e molhadas de índios Apaches e Sioux, finalmente aí vinha ela toda colorida, a inolvidável, a emocionante coboiada com colt-45 e balas de Winchester: a diligência ziguezagueia, o banco é assaltado, escorre uísque no saloon, grande-plano do solitário justiceiro com barba por fazer e cigarrilha na ponta dos lábios. Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone, música e que música!, de Ennio Morricone, estribilhos assobiados pelas seitas e seitinhas de marmanjolas no regresso a casa.

Eis o bom, o mau e o vilão, cigarrito comprado avulso na dobradiça da boca cobiçando a calmeirona da fila do lado, no final das sessões a lamber os pequenos cones dos caladinhos entoucados de creme e canela. Magana, partia para a sedução perfumada de água-de-colónia Lavanda e olhava de cima da burra, burraçuda.

Ecrã rasgado, dele, em cascata, precipitava-se então a acção para a plateia: por causa de invejas e ciumeiras estalavam duelos entre jovens machos latinos, reboliço alargado a empurrões e biqueirada: “Anda lá para fora, se és homem! O quê? Agarrai-me, senão deixo-lhe a peida pior que um chapéu de mendigo.» Rapazolas varonis, pernas arqueadas pelo jeito da sela imaginária disputavam a Dulcineia, “ai laviu, darlingue” com fogosidade made in Hollyood. No pano de fundo, ainda pela posse da fêmea, os biliosos dos bairros piscatórios faziam rebolar bombeiros, polícias, o Tone carteirista e os seus compinchas. Um lingrinhas sem ter a ver com o guião saltou da cadeira vítima de sapato interceptado pela peruca. Nuca nua, há que encolher-se pela cena do enxovalho.

Charape, boy.

Ao vivo, o Bronson, o Douglas, o Gary Cooper, o Gregory Pecck, o Burt Lancaster, o Anthony Quinn, cada qual no papel dos protagonistas a zurzirem os gringos rivais. À má fila, a realidade explodia pelas cadeiras e corredor onde um narigudo soqueia um brutamontes, o mau da fita – reles imitação do John Waine – que bate em retirada, quebradiço. O sangue da lábia manchara, até, o lencinho “vianense” da namorada. Um “Rio Bravo”.

Intervalo.

Cigarradas com estilo, mictórios que tresandam a urinas misturadas de bisgadelas, pois esse era o costume – urinava-se, cuspia-se.

Pigarça, ainda perfumosa, a magana humedecia os lábios com a ponta da língua passando-os demoradamente pelo batom. Não há muitos anos recebera uma menção honrosa num concurso Miss-Praia, feito que provocaria tal onda de choque em alguns pretendentes que empreiteiro endinheirado cativo da orografia daquelas carnes angulosas, gulosas, lhe jurou fidelidade para a vida. Como reagiu a magana?

“Quero homem que não me compre.”

A explicação embraveceria o rol das comadres pegadiças, unânimes na recriminação: “Ó filha, atiras assim a sorte grande pela janela fora?” Afinal, qual a ambição? Um Joselito de bel-canto pronto, prontinho a ser desmamado. Bem lá no fundo, esta espécie de Sophia Loren mulheraça picante e decotada, cintura de vespa, sofria de um mal nunca antes diagnosticado: era romântica. E ávida, muito ávida por escutar Gianni Morandi em Non son degno di ti. Depois?, scusi, bona sera, virar costas em jeito de prima donna.

Nos dias imediatos os cachopos fechavam-se na caseta do quintal, olhar cravejado nas coordenadas celestiais, a fazerem amor com Sophia Loren, amore mio, ai mamma mia, la piú bella napolitana de todo o mundo. Esgazeados, após terem rasgado o vestido azul repleto de bolinhas brancas, possuíam Sophia no porão do barco, num rochedo próximo da rebentação do mar, numa barraca de lona fechada, no quarto de fazerem os deveres escolares, no restolho de uma bouça. Que boca carnuda! Que mamas! Que ancas! E os olhos verdes? Sophia a exalar voluptuosidade devorada na cama de ferro coberta de franjas. Molto bene.

Para trás, as tardes pandegueiras, o hilariante Charlot, o gingar de Cantinflas e outras aventuras da sétima arte. Salão Paroquial em crise e o encerramento – The End. Modernas salas de projecção, cineclube, filme de autor, de grandes realizadores, de baixo orçamento, super-produções, enfim, outro tempo. O deslumbramento, esse, partira encavalgado em direcção ao pôr-do-sol.  

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02/07/2020  

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Alfredo Mendes

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