O nome da rosa
As flores são débeis. São ingénuas. Defendem-se como podem. Acham que são terríveis com os seus espinhos.1
Os últimos três meses do ano de 1974 passei-os na cidade de Lüneburg (na antiga República Federal da Alemanha – RDA), tinha ganho uma bolsa do Goethe-Institut para continuar os meus estudos em língua e cultura alemãs, depois de ter frequentado cursos na cidade de Frankfurt (Main), na Volkshochschule (universidade popular ou escola superior popular) e na Bachschule.
Lüneburg é uma bela cidade do Norte de Alemanha, perto da cidade de Hamburgo, à qual, pela proximidade, ia quase todos os fins-de-semana para assistir ao teatro, à ópera ou ao bailado naquele que é, sem dúvida, um centro cultural impressionante. São de destacar, por exemplo, o Deutsches Schauspielhaus (teatro no bairro St. Georg) e o Thalia Theater.
Lüneburg: cidade de Bach
Johann Sebastian Bach, talvez o músico mais universal, viajou pouco. Mudou-se, por motivos de trabalho, pelas pequenas cidades da Turíngia e pelos solares e urbes mais importantes da vizinha Saxónia. Existem apenas evidências de três lugares mais distantes, para onde ele viajou, sempre em trabalho; todos os três no Norte da Alemanha: Lüneburg, na juventude; Lübeck, no início da maturidade; e Berlim.
Em 1700, Johann Sebastian Bach tinha 14 anos. Com o seu amigo Georg Erdmann, ele deixa a sua aldeia (Ohrdruf), na Turíngia, para continuar os seus estudos no prestigioso Michaeliskloster em Lüneburg, no Norte da Alemanha. Era uma escola particular, com alto nível académico, frequentada por crianças da pequena nobreza.
Recorrendo à minhas memórias, na turma em que eu estava inserido, destacava-se um aluno norte-americano com o qual fiz amizade durante aquela época, era um jovem ex-combatente da guerra do Vietname e julgo que a nossa aproximação se deveu ao facto de ambos, em algum momento das nossas jovens vidas, termos estado muito próximos da morte. Ele no sangrento conflito bélico asiático e eu numa guerra suja promovida, internamente, pelo exército nacional chilena, contra a sua própria população, depois do golpe de estado de 1973.
Acabado o curso, chegou o momento das despedidas e lembro-me de lhe ter oferecido uma cópia, em Alemão, do “Voo Nocturno”, de Antoine de Saint- Exupéry (“Vol de Nuit”, de 1931), segundo romance do escritor e aviador francês.
Curiosamente, após muitos contactos e muitas conversas, nunca falámos deste autor, que – como confessou, nesse último encontro – era um dos seus predilectos. A nossa despida teve o sabor de outras tantas que já experimentei na minha vida, com a consciência de que muito raramente seria possível algum reencontro.
Nora Gonzalés Fornés, no jornal El País (na edição de 7 de Maio de 2013), actualiza “o nome da rosa”, quando nos dá notícias de uma nova reedição em Espanhol das memórias de Consuelo de Saint-Exupéry2 (o seu nome de solteira é Consuelo Suncín Sandoval), a quem chama “la mujer maltratada por el gran héroe de la literatura francesa” – mulher inspiradora da personagem da rosa, na obra “O Principezinho”, narrando a tumultuosa relação que ela manteve com o seu marido.
Confesso que não conheço o livro “Memorias de la Rosa”, do qual apenas obtive alguma informação através da Internet, citando agora a editora3 que nos apresenta a obra da sua autora com estas palavras:
“Depois, descobri que a flor era eu, uma flor muito orgulhosa, como diz o Principezinho.” “Memórias da Rosa”, leva-nos ao universo de “O Principezinho”, o livro francês mais lido e traduzido de todos os tempos. Uma das vozes dessa obra quis contar-nos a sua história. A rosa da história, Consuelo, descreve o mosaico da sua vida junto do famoso autor. A narrativa é o percurso de Consuelo e de Antoine de Saint-Exupéry, seu marido, piloto e escritor, que ela apresenta como um homem ambicioso, ávido de aventura, um Cavaleiro Voador, um escritor frustrado e um génio devorado pela personagem que forjará a sua fama.
Consuelo, que considerava os textos do “seu Tónio” criações conjuntas, será injustamente afastada da história. Uma flor, imobilizada pelas suas raízes, deve permanecer parada, esperando. Mas o que significam essas esperas na vida de uma mulher apaixonada, inquieta e ansiosa? Um tormento. Uma dor dilacerante que marcará a sua vida como uma sentença inevitável. Essas memórias contêm o grito sincero e desesperado de um autor condenado ao esquecimento; o outro lado da moeda representado naquela flor que também teve de esperar o retorno do seu príncipe. As memórias de Consuelo contêm a história de alguém que amou apaixonadamente e que viveu um relacionamento que lhe causaria terríveis tristezas. E é o testemunho de uma mulher que viu as suas capacidades artísticas esmorecerem em favor das do homem com quem partilhou a sua vida. As pétalas daquela rosa caíram há muito tempo. Aqui estão os seus espinhos.
Nos anos oitenta e, mais tarde, nos noventa adaptei para o teatro o texto literário de “O Principezinho”, primeiro para o Teatro Experimental do Funchal (hoje, ATEF) e mais tarde para o Teatro Art´Imagem (na altura sediado no Porto). Foram as primeiras adaptações teatrais desta obra em Portugal. Mais tarde, outros grupos apoiados pelo incentivo do Plano Nacional de Leitura (PNL) seguiram o seu caminho.
A este propósito, a revista Estante aconselha os livros do PNL “que todos deveriam ler”, destacando “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry:
Com mais de 75 anos, o encontro entre um piloto perdido no Sara e um príncipe, oriundo de um pequeno asteroide continua a ser um dos livros mais recomendados. Mas provavelmente não é por este motivo que conheces O Principezinho. A verdade moral de que “o essencial é invisível aos olhos” é o verdadeiro “cartão-de-visita” do romance. Uma mensagem universal que já foi traduzida 300 vezes e está indicada pelo Plano Nacional de Leitura para alunos entre os 9 e 11 anos. Existe ainda uma versão infantil e juvenil. (sic)
Ainda sobre Consuelo de Saint-Exupéry, poderá ler um artigo do jornal Público e ainda uma interessante entrevista.
Com as recentes notícias dos resultados das eleições autonómicas e autárquicas em Espanha, fico expectante com a sucessão dos acontecimentos sociais e políticos, depois de ter seguido a respectiva campanha eleitoral deste país, fustigado ultimamente pela seca e por chuvas intensas, bem como por “desoKupas” violentos e também pelos insultos racistas e xenófobos dirigidos ao jogador brasileiro Vinícius Júnior. Ouvimos, muitas vezes, alguém que afirma: “Nós não somos racistas!” Porém, sabemos que os há, tal como as bruxas.
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Notas:
1 – O excerto inicial deste artigo está na obra mais conhecida de Antoine de Saint-Exupéry, “O Principezinho” (“Le Petit Prince”, de 1943), mas o que, talvez, muitos desconheçam é que a rosa tinha um nome, era o da sua mulher, Consuelo.
2 – Escritora e artista salvadorenha-francesa, casada com o aristocrata francês, escritor e aviador pioneiro Antoine de Saint-Exupéry (1901-1979). É autora do livro “Memórias da Rosa” e co-autora (com Antoine de Saint-Exupéry, com o qual esteve casada entre 1931 e 1944) de “Correspondance (1930-1944)”.
3 – Como escreve Antonio Iturbe, no artigo “El escritor Antoine de Saint-Exupéry maltratado por una periodista del diario El País”, Nora Fornés, no início do seu texto, regista que “essas memórias, recentemente republicadas em Espanhol pela editora Espinas , revelam a tortura emocional a que seu marido a sujeitou“.
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01/06/2023