O nosso Volódia
O sinalAberto inaugura hoje um espaço novo intitulado “O Jazz de Vladimir”, que será inteiramente dedicado à divulgação pública do espólio literário e artístico do Vladimir, de quem os coordenadores desta rubrica, Luís Martinho do Rosário e Cristina Nobre, falarão umas linhas mais abaixo. Com esta iniciativa, apenas possível face à total abertura e disponibilidade da família do artista, a quem agradecemos toda a confiança depositada no nosso Jornal, sinalAberto dá mais um passo na consolidação do seu projeto editorial, consubstanciado no exercício de um jornalismo exigente e com Agenda própria, e na ideia de que a sua prática é, simultâneamente, um ato cultural e de cidadania.
Luís Martinho do Rosário
Vladimir Rodrigues – simplesmente Vladimir ou Volódia para os amigos – nasceu em 1969 em Paris e faleceu em 2016 enquanto dormia, vítima de uma paragem cardiorrespiratória. Faria 51 anos em 23 de Julho.
Viveu uma vida culturalmente rica mas teve uma infância de menino-homem, crescendo num meio de pais-ativistas, em luta constante contra o tempo madrasto, e de intelectuais, operários e resistentes à ditadura, primeiro em Évora e depois na Marinha Grande, onde ingressou numa fábrica de moldes sem completar o secundário. Sempre viveu entre adultos, curioso sobre o mundo.
Em 1989, aos 20 anos, sofreu um grave acidente ao embater num camião quando viajava de motorizada. Esta foi a sua primeira experiência de quase-morte, gravíssima, aquela que o moldaria física e neurologicamente toda a vida.
Regressou à vida e realizou um curso na Escola de Artes Bento de Jesus Caraça, em Lisboa, entrando definitivamente no estranho mas belo mundo do desenho e da pintura. De resto foi um autodidata na plena aceção da palavra.
Vladimir foi o Volódia, mas poderia ter sido um de nós. A vida pregou-lhe demasiadas partidas. Aos 29 anos, por exemplo, esteve hospitalizado durante semanas; noutra ocasião foi encontrado ao fim de cinco dias nos pântanos do Montijo, inconsciente, naquela que foi a sua segunda experiência de quase-morte.
Continuou a viver, dolorosa mas tenazmente.
Por vezes tinha violentas explosões de fúria, revoltado contra as limitações que lhe coartavam a expressão plena e o impediam de assumir a identidade biológica completa, como os demais. Incontrolável, rasgava e queimava manuscritos, desenhos e pinturas. Dizia que era uma forma de exorcizar os seus fantasmas. O pai calcula que cerca de 3/4 da sua obra pereceu durante esses acessos.
De resto era diferente, gentil e delicado. Oferecia constantemente as suas obras a amigos e familiares, como se retribuísse o amor e a amizade com os legumes da sua horta. Dar, para o Volódia, era também uma forma de cumplicidade artística e intelectual. Às tantas gostas deste. Sim, gosto, por mim ficava com todos, Volódia.
Nessas ocasiões de amor, o Volódia parecia um cão grande desajeitado a tratar um bebé humano com patinhas de algodão. Foi o que disse um amigo uma vez, carinhosamente, em nome de todos.
Conheci-o desde pequeno. Gostava muito dele. Todos gostávamos muito dele.
Não podendo ter uma atividade regular e organizada, superou-se continuamente pela leitura, pela interminável leitura dos grandes e pequenos mestres, e alimentou-se vorazmente da música, principalmente o jazz negro da América profunda. Amava jazz. Não vivia sem jazz.
O Volódia lia compulsivamente. Lia tudo. Lia para conhecer e sentir. Lia para matar a solidão. Tratava os livros como pessoas e não havia lugar para preconceitos de qualquer espécie. Tratava os livros e os seus autores como gostaria que os tratassem a ele.
Mas tinha um núcleo duro de autores de estimação. Fernando Pessoa e Herberto Hélder. Jorge Luis Borges. Walt Whitman e Jack Kerouac. E Arthur Rimbaud, que lia diretamente do francês. Ninguém sabia onde os ia buscar, mas a verdade é que passou metade da sua vida a folhear livros em livrarias e bibliotecas.
A melhor oferta sempre foi um livro, e isso tinha dois sentidos.
(Uma parte importante dos livros de arte e filosofia da sua enorme biblioteca foi doada pelo pai à Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD.CR) e à Biblioteca Municipal da Marinha Grande, após a sua morte.)
Fora da leitura e da música o Volódia era um ser muito só. No entanto, em momentos felizes, saia com os amigos ao café. Os amigos eram poucos mas unidos. Os de sempre, em Picassinos; os da praia com a mãe, na Nazaré; e os das férias grandes com os avós e a tia, em Alfarelos.
Tem desenhos e pinturas em coletividades e empresas de moldes da Marinha Grande.
Participou em exposições organizadas por coletividades de cultura e recreio da Marinha Grande, mas foram poucas.
Não foi fácil reunir o espólio poético e artístico que sustenta esta antologia online. Tão pouco foi fácil reunir informação fiável ou agrupar com algum nexo os poemas e materiais.
Pode dizer-se, em jeito de síntese, que os livros e o jazz constituíram o núcleo da vida atormentada de Vladimir; e que ele a devolveu generosamente em desenho, pintura, poesia e poesia-prosa.
Foi a forma discreta como ele quis comunicar com os que o amavam e com o mundo.
Todo este material, digamos o jazz de Vladimir, continua inédito.
E é o que nós e o pai, que abriu a coleção, nos propomos revelar aqui, lentamente, se tivermos a arte.
Feliz aniversário, Vladimir!
(Sem título)
Ligo o rádio FM na embalagem do momento instante
e vou tentar escrever de rajada o solo da minha alma
a poética da musical essência
os filmes realizados ao contrário do fim para o princípio ao retardador.
A inversão abismal do ser animal que vegeta nos pântanos suburbanos.
A narrativa abstrata da prosa poética desenvolve-se sinuosa
tal como uma serpente viciosa, deslizante, num jardim de flores muito belas.
Suaves carícias na machine intelectual.
Túlipas florindo na raiz do cérebro e as horas a decorrerem
fluidas, lentas, retrospetivas.
Quando a noite cai e o céu deixa de ser azul
as luzes dos candeeiros acendem.
Um negro marfim banha a atmosfera bafienta da urbe noturna.
Gravar nos calhaus da memória aqui retidos
o vazio e o pleno usufruto da mente
onde ainda é dia no quarto e a luz é acesa para espantar os espíritos.
As suas fosforescências que lhes cobrem o vulto.
O negro das sombras esconde-se atrás da música jazzística.
O ofício da escrita é duro e árduo.
Há que lutar até ao fim em si. Eis a questão.
Seria o que Shakespeare escreveria
porque um génio como ele pode estar muito mais vivo do que morto.
Vladimir Rodrigues 2 de Novembro de 2016
Dizer os traços da pintura
Não conheci o Vladimir enquanto ele esteve entre nós.
Tive a sorte de o ler e de o ver através dos seus desabafos escritos e dos seus desenhos nus e das cores dos traços da sua pintura. E de compreender a que ponto a incompreensão dos outros se pode sublimar, dolorosamente, através do dom artístico do eu.
Assim conheci Vladimir: por aquilo que nos deixou – muito inédito e escondido, abafado no cinzento dos dias – como legado de um ser humano na sua completude, desconhecido enquanto vivente; em revelação póstuma.
A escrita – ora poética, ora prosa confessional, ficcional, a tender para o conto breve, modelada pelas leituras dos mestres que admirava e lia com sofreguidão de aprendiz – mostra-nos a vertigem da criação e as dores de um quotidiano atravessado pelo desejo de alcançar sempre mais além, consciente da imperfeição que lhe minava os lampejos de luz. As palavras – vomitadas, gritos serenados, auto e hétero análises da consciência e da inconsciência do ser – eram uma janela para o desenho, a pintura, o traço do seu dom. Abriam-lhe caminhos para a forma imagística do belo perseguido, sempre fugidio, perseguido até à exaustão.
Que cada um de nós possa fazer uma visita a si próprio e ao que fica escondido de si mesmo, nesta antologia em linha de Vladimir Rodrigues, em que as palavras criam genesiacamente as formas desenhadas e pintadas.
Cristina Nobre
S. Pedro de Moel, Páscoa, abril de 2017