O povo Yanomami está em crescente genocídio
As instituições brasileiras estão a mobilizar o país para salvar o povo Yanomami e o seu território, que foram abandonados pelos serviços do Estado e que, nas últimas décadas, vêm sendo atacados pelos garimpeiros e pelos interesses subjacentes. O ataque tem sido tão brutal que as autoridades de Brasília falam em genocídio. O Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente da República, o Exército e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) são algumas das entidades que, nas últimas semanas, vêm mobilizando esforços para acudir a esta situação que, além de crise humanitária, é “uma tragédia ambiental”.
A Associação Brasileira dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) revela que mais de 570 crianças yanomami de Roraima morreram de fome e de desnutrição nos últimos quatro anos. Destas, cerca de cem, com idades compreendidas entre um a quatro anos, morreram de desnutrição, de pneumonia e de diarreia.
O Papa enviou à região da Amazónia, na semana de 30 de janeiro a 4 de fevereiro, o cardeal Leonardo Steiner, arcebispo metropolitano de Manaus e 1.º vice-presidente da Conferência Eclesial da Amazónia, para reforçar a proximidade e o cuidado que a Igreja católica, há muitos anos, vem mostrando, pela denúncia e pela ação, em prol daquele povo indígena. Além de se ter encontrado com as comunidades no estado de Roraima (mais a norte no Brasil) e visitado internados em instituições de saúde, reuniu-se com as lideranças comunitárias, para avaliar a situação e tornar a ação mais eficiente.
O garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) cresceu 3.350%, entre 2016 e 2021. A consequência direta é o crescimento da malária, da desnutrição infantil, da contaminação por mercúrio e da exploração sexual. O cenário é descrito no relatório Yanomami Sob Ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo, divulgado, a 30 de janeiro, pela associação Hutukara, que representa o povo Yanomami.
O objetivo do relatório foi descrever a evolução o garimpo ilegal na TIY em 2021, caraterizando o crescimento exponencial do garimpo com o termo “invasão”, sendo o momento atual o pior desta invasão, desde que a Terra Indígena foi demarcada e homologada, há 30 anos. Mostra como a presença do garimpo na TIY é causa de violações sistemáticas de direitos humanos das suas comunidades. Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro e de cassiterita (ou cassiterite, que é um dióxido natural e principal minério de estanho –SnO2), no território yanomâmi trouxe uma explosão de malária e de outras doenças infetocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, a par de um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas.
Os efeitos são diretamente sentidos por 16 mil moradores de 273 comunidades, o equivalente a 56% da população total. Em termos comparativos, o tamanho do território yanomâmi é sensivelmente o da área de Portugal e nele habitam 29 mil pessoas, organizadas em 350 aldeias. Todavia, como vincam este e outros relatórios e testemunhos, não é só a extração ilegal de minério que inferniza a vida do povo. Os garimpeiros ocupam território, reduzem os espaços tradicionais de caça e de cultivo e usam a fome e o álcool para explorar sexualmente crianças e mulheres.
Foi claramente assumida como orientação política, no governo de Jair Bolsonaro, a redução das áreas de reserva das comunidades indígenas, para as abrir e afetar à agroindústria e à exploração mineira. E pode dizer-se que esta política franqueou as portas ao garimpo ilegal.
Uma das primeiras visitas de Luiz Inácio Lula da Silva, após a tomada de posse, no início de janeiro, foi a Roraima e, logo ali, prometeu acelerar medidas de proteção e de apoio às comunidades indígenas, que passaram pela criação de um ministério específico no novo governo.
Face à tragédia encontrada e denunciada publicamente, um juiz do STF ordenou uma investigação à gestão de Jair Bolsonaro por crime de genocídio de indígenas e de desobediência a decisões judiciais, bem como a retirada, pela administração, das dezenas de milhares de garimpeiros ilegais que operam em terras indígenas.
O agravamento das aflições das comunidades indígenas, em geral, e dos Yanomami, em particular, nos anos do bolsonarismo, não pode fazer esquecer que o problema é estrutural e que remonta, pelo menos, ao período da ditadura militar.
Dirigentes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma das instituições da Igreja católica que mais tem estudado e trabalhado em prol da causa destas comunidades originárias, observam, em artigo de 30 de janeiro, que os Yanomami, não apenas hoje ou ontem, mas durante décadas, são vítimas de um Estado que se estruturou para não os deixar viver no seu território. E recordam a década de 1970, em que os militares, sob o pretexto de que a Amazónia seria invadida por comunistas e por guerrilheiros e que, perante isso, o país deveria preparar-se para os combater, levaram para a região de Roraima e do Amazonas, juntamente com os soldados, dezenas de milhares de pessoas arregimentadas para “desmatar, plantar pasto e soja e criar bois”. Ao mesmo tempo, desencadeou um movimento de construção de estradas e de rodovias, e financiou obras de hidroelétricas, de expansão da mineração e exploração madeireira.
Os garimpeiros foram invadindo as terras, no meio desse movimento. E grandes obras rodoviárias e pistas de aviação começaram a amputar as terras dos povos autóctones. Vários foram os episódios de assassinatos, incêndios, contaminação das águas, malária, tuberculose, fome, miséria e extermínio. Tudo isto está documentado em relatórios e em estudos reveladores de que, num período de dois anos, morreram mais de 2.500 indígenas Yanomami, como dizem os dirigentes do CIMI, em referência a março de 1985.
As pessoas que migraram para a Amazónia eram, em geral pobres, sem-terra, filhos de pequenos agricultores e tantos homens e mulheres sem eira nem beira, usados como peões de empresários ou de especuladores de terras. Foram dezenas de milhares de pessoas que, a pretexto de encontrarem o ‘eldorado dos sonhos’ e ficarem ricas, ocuparam as terras e nelas puseram cercas. E, além dos colonos, os militares incentivaram o garimpo, especialmente de ouro e de diamantes, em Roraima, Pará, Mato Grosso e Rondónia. As invasões de terras e a devastação foram indescritíveis. Houve, por exemplo, no Amazonas, a abertura da BR 174, a ligar Manaus, Amazonas, a Boa Vista, Roraima. A sua construção e pavimentação acarretou tamanha violência que desencadeou a intensa dizimação de mais de 30 comunidades indígenas, entre elas as do povo Waimiri Atroari
Na década de 1980, os militares consolidaram o plano estratégico de ocupação da Amazónia através do projeto Calha Norte, estruturado nas margens do rio Solimões, do rio Negro e rio Amazonas. Uma das razões para o estabelecimento de pelotões nas fronteiras vinculava-se à ideia de que o Brasil estaria sob ameaça de agentes externos e dos próprios indígenas, já que estes, em associação com guerrilheiros da Colômbia, da Venezuela, do Peru e da Bolívia, poderiam formar nações independentes e tomar conta de todas as riquezas.
Em 1985, na era do governo Sarney, o Calha Norte assumiu forma de programa de Estado e os militares tornaram-se os agentes de proteção da Amazónia. Mais de 60 mil garimpeiros invadiram o território Yanomami. Estupros, assassinatos, incêndios, contaminação das águas, malária, tuberculose, fome, miséria e extermínio. Há nessa história, uma personagem central, a Funai (Fundação Nacional do Índio), presidida na época por militares e, depois, por Romero Jucá, do Movimento Democrático Brasileiro, que negociava com os garimpeiros.
Em 1992, o governo de Collor de Mello decidiu demarcar a Terra Yanomami em área contínua. O ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, foi o responsável pela consolidação do procedimento demarcatório. Foram criadas campanhas e desenvolveram-se programas sanitários de proteção à vida. Os garimpeiros foram sendo expulsos, as pistas de pouso e as infraestruturas destruídas, assim como combatidos os donos de postos de combustíveis que, em parceria com os empresários do garimpo, forneciam gasolina que abasteciam aviões, dragas, balsas, barcos e outros motores.
Em 1993, dos ataques dos garimpeiros resultou o Massacre de Haximu que tirou a vida a dezenas de Yanomamis.
Até ao advento do governo de Bolsonaro, parecia haver um refluxo das invasões na TIY. Mas as invasões nunca cessaram. Os dados das equipas de saúde, ligadas ao Distrito Sanitário Yanomami, as informações das organizações indígenas, da Funai e de outros pesquisadores, antropólogos, ambientalistas, indigenistas, missionários e missionárias apontavam e denunciavam que os Yanomami eram vítimas contínuas dos garimpeiros. Ora, nos termos da lei, as Terras Indígenas são bens da União, destinados ao usufruto exclusivo dos povos indígenas.
Jair Bolsonaro, ao assumir a governança do Brasil, no ano de 2019, retomou as práticas anti-indígenas dos anos de 1970 e de 1980: promoveu a desterritorialização, a desconstrução dos direitos, a integração ou dizimação dos indígenas, bem como anunciou o novo “eldorado garimpeiro”, agora sob o seu comando e controlo. As invasões, neste ambiente, voltaram a ser massivas, não só em Roraima, mas em todas as regiões da Amazónia.
O governo de Lula da Silva, como se disse, adotou como prioridade a defesa dos Yanomami, desenvolvendo ações para combater a desnutrição e atuando no sentido de reestruturar a assistência em saúde naquele território. Porém, faltam os anúncios de medidas administrativas, políticas e jurídicas para enfrentar os males do garimpo, dos garimpeiros e dos empresários, todos os criminosos, que agem como tentáculos do genocida. Há a necessidade urgente, nestes tempos de esperanças, de que sejam desencadeadas ações que ponham fim às invasões, para que o amanhã dos Yanomami não se torne o retrato de hoje.
É verdade que os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) tiveram maior sensibilidade em relação aos direitos dos povos originários, mas as medidas tomadas não permitiram combater a raiz dos problemas. Por isso, exige-se a responsabilização de quem desenvolveu políticas classificadas como genocidas e a expulsão da multidão de garimpeiros que se instalaram nesses territórios.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em nota de 31 de janeiro, intitulada Em defesa dos povos originários, vinca, uma vez mais, que estes povos, “integrados na natureza, têm sido desrespeitados de modo contumaz, a partir da ganância, da exploração predatória do meio ambiente, que propaga a morte em nome do dinheiro”. Portanto, após requerer das autoridades tratamento adequado do povo Yanomami, exige: “Diante da gravidade do que se verifica no Norte do País, das mortes, principalmente de crianças e de idosos, sejam apontados os responsáveis, para que a justiça prevaleça. O genocídio dos Yanomamis seja capítulo nunca esquecido na história do Brasil, para que não se repita crime semelhante contra a vida de nossos irmãos.”
De facto, as dores de cada indígena são também dores da Igreja, que, pela sua doutrina e pelo magistério do Papa Francisco, ensina a importância dos povos originários na preservação do planeta.
13/02/2023