O que é que vai ser do rapaz?
As crianças ucranianas começaram a ser preparadas para um cenário em que, nesta concepção moderna dos nacionalismos, a soberania de Estado se aplica de forma total e uniforme, dentro dos limites, ainda possíveis, de um território moral, ideológico e geográfico. Numa recente animação televisiva, as crianças aprendem da seguinte forma o alfabeto cirílico (aqui em transcrição românica): “A” como em Azov, “F” como em F-16, “L” como em Leopard, tudo misturado com paisagens verdejantes, um crocodilo-professor com capacete militar camuflado e varinha, uma alusão a um planeta cujas principais bandeiras são as dos Estados Unidos da América (EUA), da Alemanha, da Polónia, do Canadá, do Reino Unido e da Turquia.
Pode concluir-se que os objectivos políticos do mundo anglo-saxónico foram alcançados naquele país, cujo ventríloquo, em nome da invasão do seu país, justifica todo o tipo de loucuras e de desastres, incluindo, é certo, a americanização do próprio país. Esta escala de erros, associada ao iminente espírito de civilização massificada e estandardizada, trouxe-me à memória os efeitos da ideologia nazi nas crianças alemãs, lidos em Heinrich Böll (“O que é que vai ser do rapaz?”) e Peter F. Wiener (“A Educação Nazi descrita por um alemão”). Deste último, fica a citação: “O bebé Alemão é procriado: obedece a um plano cuidadosamente estudado pelo Führer com o fim único de que não venha a faltar material à máquina de guerra do Reich. Os pais só têm a fazer uma coisa, cumprir à risca as ordens do Estado. «Adolf Hitler é simultaneamente pai e mãe, irmão e irmã de todos os alemães» disse Goebbells em 1934»” (página 16).
Como sabemos, o exército ucraniano depara-se com um gravíssimo problema de mobilização militar (as imagens de recrutamento coercivo abundam nos canais de Telegram). A contra-ofensiva, já se sabe, foi um flop, para usar o jargão anglófono da moda, e chega a ser penoso ouvir o major-general Isidro de Morais Pereira tecer loas aos mísseis Taurus de longo alcance, quando as forças militares ucranianas se queixam de arbustos, ou o ex-ministro Azeredo Lopes a desencantar moinhos de vento. O reconhecimento do fiasco é praticamente geral, mesmo contra a vontade da maioria dos comentadores que insiste em contradizer factos e, por isso mesmo, tanto Filipe Pathé Duarte como Bernardo Pires de Lima (quanto a mim, os mais providos de informação e, nesse caso, com outra desenvoltura manipuladora) se remeteram a um prudente silêncio. Seguem a tradição. Por outro lado, ficamos mais descansados quanto a rendimentos auferidos em comentários.
Há quem assegure adivinhar-se a maior humilhação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), por sinal, mais evidente do que a do Afeganistão. Até lá, quem lucrou com isto? Os EUA, naturalmente, pelo fornecimento de armas, pela venda de petróleo e de gás, e por combaterem numa guerra por procuração, sem um elemento do exército regular no “terreno”. A Rússia, que, face a mais de uma dezena de sanções, logrou cotar-se no quinto lugar, quanto ao crescimento das economias mundiais (valor atestado pelo Banco Mundial), e terá jogado aqui a sua cartada na mudança de paradigma económico, com novos mercados reforçados a Oriente, a Sul e no Médio Oriente.
E quem perdeu? Os Russos, certamente – a propaganda russa deverá conter os números, na maior das probabilidades, muito elevados em baixas humanas. A Europa, cujas economias vivem recessões, muito para lá do ensurdecedor silêncio actual de Ursula von der Leyen. E a Ucrânia, por tudo (isso bastaria), e por um presidente que vive a ficção de não haver fracções na unidade ucraniana, segundo a máxima “não há preço para os sacrifícios”.
Se quisermos ser detalhados, lembremos um recente estudo de opinião publicado no jornal diário ucraniano Strana.ua, que nos oferece um esboço de posições internas quanto à guerra, e em que se afirma que mais de 30% dos ucranianos está preparada para acabar o conflito a qualquer custo, embora 53% acredite na vitória sobre a Rússia.
Convém, igualmente, não esquecer o alerta do jornalista ucraniano Lev Golinkin, que, num cenário pós-guerra, vê aquele país transformado no Texas da Europa, pela proliferação de armas ilegais. Relativamente à OTAN, já vimos como ela se destapou, quais os seus princípios e interesses, por que valores “democráticos” se rege. Ainda não se sabe quantos meses demorará a desintegrar-se, como prevê o coronel Lawrence Wilkerson, ou se o seu pragmatismo a manterá intacta. A máquina de propaganda ocidental é, porém, tão boa ou melhor do que a russa.
Questionado por um seu colega italiano sobre o que pensava acerca da guerra, o cientista russo Artem Oganov perguntou acerca de qual das narrativas deveria expressar-se: a que nos trazem os media ou a guerra Ocidente-Rússia? Segundo ele, a História porá tudo no seu devido lugar. Para já, e por aqui, as habituais compreensões erradas, distorções, adições, subtracções e adaptações criativas. Exactamente como o Ocidente quer ver a situação.
Uma coisa é certa: não haverá uma segunda contra-ofensiva.
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Post scriptum:
À data da redacção deste artigo, ainda não havia tido conhecimento de dois factos: a intervenção propagandística do Ministério da Educação russo nos manuais escolares que abordam a intervenção militar na Ucrânia; as declarações de Stian Jenssen, chefe de gabinete do secretário-geral da OTAN, sobre a cedência de território da Ucrânia à Rússia, nas negociações.
Se, como também já se julga, os últimos batalhões militares da reserva ucraniana falharem nesta batalha final, preparemo-nos para um pior cenário, que já havia apontado há muito. A entrega, sem grandes restrições, de imenso território à Rússia, e a possibilidade de uma intervenção polaca. Mas, aqui, há ainda muito por perceber. Por exemplo, a possibilidade de, à semelhança do que aconteceu na II Guerra Mundial, os Russos voltarem a dizimar os últimos batalhões, tal como, então, fizeram com muitas unidades alemãs, que foram rechaçadas pelo avanço soviético, marchando sobre Berlim. Agora, leia-se Kiev.
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Nota do Director:
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21/08/2023