O reconhecimento do mercado académico e o seu adoecimento no Brasil (1)
Há algo de muito curioso na cultura profissional brasileira. É curioso por apresentar uma visão limitada do que seria o mercado de trabalho. Para alguns, o mercado de trabalho pode ser dividido entre indústria, academia, serviço público e terceiro setor. No entanto, essa percepção do mercado de trabalho no Brasil parece estar engatinhando, posto que a cultura popular entende o mercado académico como “ainda está estudando”, “quando você vai trabalhar mesmo?”, “quem sabe trabalha, quem não sabe ensina”, ou até mesmo a máxima “você não faz nada”. Essas frases demonstram uma passiva-agressividade entranhada à cultura brasileira, em que o ensino universitário é percebido ou como estudo ou como o acto de fazer nada.
Mais estranho é perceber que esta visão limitada e agressiva de se comunicar está a penetrar os espaços universitários, a resultar na desvalorização do próprio investigador e professor – “ah, mas você ainda está estudando, trabalho mesmo é depois do doutorado”. Para muitos académicos, a fatídica frase “trabalho mesmo” costuma vir depois de algum outro comentário, como se a atividade de pesquisador não fosse trabalho.
De acordo com o Lattestats de dados e estatística da Plataforma Lattes, hoje, há 7.093.754 currículos cadastrados, em que apenas 6,3% se refere a doutores e 7,9% a mestres. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) apresenta o estudo e pesquisa no programa de doutorado como de extrema importância para o desenvolvimento, no futuro, das inovações e treinamento de investigadores para o avanço do conhecimento.
“Portadores de diploma de doutorado devolvem um conjunto específico de habilidades quantitativas e qualitativas, tanto em ambientes académicos quanto industriais. Doutores são atrativos ao mercado de trabalho e possuem, na sua maioria, uma alta taxa de empregabilidade mesmo em situações de crise económica”. (Education at a Glance 2019: OECD Indicators)
De acordo com os dados relativos à evolução da formação por ano, o Brasil apresentou uma evolução crescente na graduação de 2003 até 2011, referentes aos anos do primeiro e do segundo mandatos do Presidente Lula da Silva, que foram marcados pelo acesso das camadas menos favorecidas da sociedade ao ensino universitário. A partir de então, iniciou-se um declínio, em conformidade com a instabilidade política e económica nos governos de Dilma Rousseff.
Já o acesso à pós-graduação permaneceu em lenta ascensão até ao início do governo de Jair Bolsonaro, quando começou um aumento do contingenciamento da verba destinada à educação. Apesar de os números de pós-graduandos se manterem crescentes, em 2018, principiou um declínio significativo e acentuado com a entrada de Jair Bolsonaro na Presidência e o contingenciamento de 1,68 bilhões de reais que seriam destinados à educação, sendo R$366 milhões voltados para as universidades e para os institutos federais.
Com o orçamento destinado à educação a ser sistematicamente bloqueado, em 7 de Dezembro de 2022, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES) informou, em nota oficial, que não conseguiria pagar o corpo discente de bolsistas no último mês do ano. Surpreendida pela edição do Decreto n.º 11.269, de 30 de Novembro de 2022, não autorizou o desembolso financeiro. A comunidade académica movimentou-se para negociar o pagamento urgente das bolsas de pós-graduação e formação de professores do ensino básico, o dinheiro foi transferido no próprio mês de Dezembro. O quadro da educação universitária brasileira agravou-se com os primeiros anos de pandemia covid-19 e a qualidade de vida do corpo discente de pós-graduação percebeu-se em situação ainda mais precária.
Entretanto, o professor e pesquisador Robson da Cruz, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), em entrevista para a TV UFMG (da Universidade Federal de Minas Gerais), já verbalizava, em 2017 e depois em 2021, sobre os indícios do desenvolvimento de psicopatologias durante a pós-graduação no Brasil. Especialista em organização psicossocial e problemas psicológicos da escrita académica, Robson Cruz fala da dificuldade que as pessoas possuem em perceber a pós-graduação como um trabalho e em desenvolver uma rotina condizente com as demandas e as cobranças. A transição da graduação para a pós-graduação envolve uma mudança de percepção sobre o ambiente académico e de demanda com o aumento da produção escrita para a publicação científica do conhecimento.
O professor Robson Cruz faz uma distinção entre os diversos perfis de escritores e aponta o escritor académico como um dos mais rigorosos e rígidos a levar ao bloqueio da escrita e ao desenvolvimento de psicopatologias como a ansiedade, a depressão e os pensamentos suicidas. Apesar do espaço universitário ser de conhecimento, o ambiente da pós-graduação, muitas vezes, silencia o sofrimento a deixar o pós-graduando isolado.
De acordo com Professor Robson Cruz, o acto de escrever é muito privado, ao ponto de o processo não ser compartilhado nem mesmo entre o orientador e o orientando. Acaba-se por criar crenças limitantes sobre o que é o processo de escrita e o quotidiano académico, levando os discentes ao silêncio e ao sofrimento. Para um académico, a lista de tarefas pode fazer a impressão de nunca ter fim, obrigando o pós-graduando a trabalhar sete dias por semana e, com isso, a desenvolver uma sensação de impotência e de inferioridade. Essa mesma sensação também é compartilhada pelo corpo docente, dado que os professores relatam a dificuldade de impor limites ao trabalho académico, envolvendo uma situação em contínua conexão com o trabalho.
A precariedade financeira e de saúde mental da pós-graduação não ocorre apenas no Brasil. Em 2022, a revista Nature apresentou a sua pesquisa global com doutorandos e alunos de pós-graduação, em que 85% de 3253 respondentes afirmara preocupar-se com a inflação e com as dificuldades financeiras.
“Dificuldades financeiras não são um rito de passagem ou uma inconveniência temporária.” (Nature)
As instituições de fomento à pesquisa sabem que o corpo discente da pós-graduação será o corpo docente e os pesquisadores do futuro. No entanto, não pagam um salário condizente para uma vida minimamente digna. Muitas dessas instituições passaram a apresentar as bolsas de pesquisa não como uma salário, mas como uma ajuda de custo pelo baixo valor atribuído. Até 2022, os órgãos federais de fomento à pesquisa no Brasil, CAPES e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), apresentavam fomento nos valores1 de R$1.200,00 para mestrado e R$2.400,00 para doutoramento. Em 2023, com o ajuste do salário mínimo para R$1.320,00 e a entrada do presidente Lula da Silva no seu terceiro mandato, os valores das bolsas de fomento pela CAPES foram reajustados, respectivamente, em R$2.100,00 para mestrado, R$3.100,00 para doutoramento e R$5.200,00 para pós-doutoramento.
Outros académicos tratam a ausência de um salário como uma inconveniência temporária, forçando o aluno de pós-graduação a que retorne a viver com os pais, por não possuir condições de autonomia financeira ou, até mesmo, que se submeta a condições ainda mais precárias de vida, desqualificando o investigador do reconhecimento financeiro.
A escassez de oportunidades para seguir a carreira académica faz com que muitos profissionais busquem oportunidades fora do eixo regional sul-sudeste. O censo de 2016 organizado pelo Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil Lattes/CNPq apresenta, no eixo sul-sudeste, as concentrações de 63% dos pesquisadores e de 67,3% de doutores. Apesar da descentralização da pós-graduação no Sudeste do país, com um crescimento considerável nas demais regiões, apenas o Nordeste apresenta um número de investigadores próximo ao da região do sul, com 21% e 18,8% dos doutores. De acordo com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), em 2017 o Nordeste apresentou 18,6% de titulados no mestrado e 15% no doutoramento.
Conforme o relatório de Mestres e Doutores 2019 do CGEE, o grau de endogenia académica cresceu consideravelmente no país, de 2009 a 2017. Estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro apresentam um grau de endogenia de aproximadamente 90% em relação aos mestres, e entre 75% a mais de 90% para os doutores, a considerar que houve pouca alteração entre os anos. O grau de endogenia é fundamental para analisar a diversidade de produção científica nas instituições de ensino e, com isso, a sua qualidade.
Hoje, o ensino académico no Brasil tem mais rosto de mulher. O censo de 2010 já apresentava um maior número de mulheres a buscar aprimorar-se com a pós-graduação. Essas mulheres altamente qualificadas são as mesmas que movimentam a imigração brasileira desde então. Saem do país em busca de se aprimorarem e de obterem uma melhor remuneração profissional. O CGEE apresenta um maior aumento de mulheres tituladas na pós-graduação com 55,7% no mestrado e 54,4% no doutoramento. O Brasil encontra-se na 13.a posição, com 55,8%, para mestrado, abaixo dos Estados Unidos da América, de Portugal, do Canadá e do México. Na terceira posição, com 54,4%, para doutoramento, abaixo apenas da Polónia e de Portugal. Entretanto, a taxa de emprego formal entre mulheres altamente qualificadas com título de pós-graduação stricto senso ainda é inferior à dos homens, assim como a diferença na remuneração média é de 27% menor, quando comparada com a dos homens.
A crise para manter o equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho é constante para os discentes de pós-graduação e colabora para a queda da saúde mental. Para além disso, a dificuldade enfrentada pelos graduados para adentrar o mercado de trabalho, após a defesa das suas investigações, colabora para o sentimento de incerteza.
Para os desconhecidos desse mercado académico, convém explicar algumas questões importantes sobre o trabalho do pesquisador e quão lento é o seu reconhecimento. É sabido que o académico precisa de aprender a protelar o reconhecimento financeiro e profissional a longo prazo. O trabalho académico é dividido em três pilares: ensino, pesquisa e serviço. Em que o pilar do ensino na Educação, diz respeito à preparação e ao ensino em sala de aula e à avaliação dos alunos, ao desenvolvimento profissional e treinamento do professor e pesquisador, à supervisão de alunos, à organização e participação de/em seminários, conferências e congressos, à supervisão de alunos, ao trabalho burocrático de responder a emails e de elaborar relatórios, bem como à escrita de artigos científicos e à divulgação de conhecimento.
O adoecimento físico e mental do corpo discente e docente nas instituições de ensino universitário tem crescido consideravelmente. A professora e pesquisadora Andrea, com idade na casa dos 40 anos, apresentada aqui com pseudónimo, pelo receio de sofrer retaliação de colegas na academia, explica mais sobre as dificuldades em ingressar no mercado académico, em geral. Originária do Sudeste do país, Andrea conseguiu uma oportunidade para lecionar numa faculdade particular, no Norte do país, em Ciências Sociais Aplicadas e, em seguida, noutra instituição particular no Nordeste. Esse movimento foi feito após inúmeras tentativas de ingressar como professora no Rio de Janeiro.
Com mestrado, estágio docente, experiência na indústria e uma segunda pós-graduação, Andrea, decidiu botar o seu currículo debaixo do braço e apresentar directamente aos professores universitários que conhecia. Para a sua surpresa, Andrea foi recebida com desdém, pois não havia experiência suficiente em lecionar, para além do estágio de docência.
“Ele virou para mim, na minha cara e falou: ‘Desiste, você nunca vai conseguir.’ Eu enquanto docente nunca posso virar para um aluno, seja qual for a direção que ele queira tomar, tanto por questões académicas quanto por questões psicológicas, falar para ele desistir porque ele nunca vai conseguir. Os caminhos são abertos a todos, alguns têm oportunidade e outros não têm. Porque muitas das coisas, realmente, funcionam por indicação apesar de terem processos seletivos na maioria das universidades.”
Andrea foi contratada para um contrato de menos de 40 horas semanais, a dar aulas de conteúdos com os quais não era familiarizada para suprir a demanda da instituição. Após um ano e meio assim, Andrea foi convidada a tornar-se coordenadora do curso. Apesar do medo em assumir mais responsabilidade, Andrea percebe ser muito vantajoso ir para uma instituição de ensino menor e longe dos grandes centros urbanos.
“Quais são as vantagens de você ir para uma cidade pequena? Primeiro que você vai fazer coisas que aqui eu demoraria muito tempo para fazer. Desde que voltei, eu estou tentando ingressar numa faculdade e eu não consigo. Lá, eu tive acesso a todo esse conteúdo pedagógico sobre montar curso, montar matriz curricular, receber comissão de avaliação, montar projecto pedagógico de curso muito cedo. Isso acaba sendo um benefício muito grande e era um local [onde] a maioria dos professores da região eram de fora, porque lá não tinha profissionais gabaritados para isso.”
Andrea conta que, no início, essa migração interna académica era muito vantajosa, alguns professores chegaram a receber salários de R$20 mil. Entretanto, quando Andrea fez esse movimento, a realidade já era outra. Ela recebeu uma carga alta de disciplinas condizente com um contrato de 40 horas/semanais. Porém, a realidade de receber o equivalente em salário por tempo integral chegou apenas quando ela adquiriu um cargo de gestão do curso. Em ambas as instituições de ensino, Andrea precisou de lidar com o que chama de sustentabilidade educacional, ou seja, cursos sustentáveis financeiramente e alunos bolseiros versus alunos pagantes. Uma realidade estende-se para além do ensino educacional a apresentar as instituições de ensino superior também como empresas, sejam elas públicas ou privadas, em que os seus consumidores são os próprios alunos. Para além das questões de gestão, Andrea apresenta críticas sobre o conteúdo de ensino ainda muito embranquecido no Brasil.
“Se a gente olhar por uma perspectiva afro-diaspórica, o curso de ciências sociais aplicada ainda é muito embranquecido. Assim como vários outros cursos. A gente estuda história europeia, a gente estuda história estadunidense… A gente não estuda história da África, a história sobre os nossos ancestrais. A gente pega ali um Brasil colónia, vai para Portugal e tudo o mais… E essas matérias são importantes tanto para um aluno branco que precisa de um letramento racial quanto para a formação de um aluno que é afro-descendente e precisa se reconhecer. Precisa entender essa parte do nosso país.”
Com a mudança da matriz curricular e a instauração do Ensino à Distancia pelo Ministério da Educação e Cultura, Andrea viu a cena da educação superior mudar com a redução de seu salário e com o aumento da carga de trabalho. Entre os anos de 2011 e 2021, a modalidade de ensino a distância (EaD) cresceu 474%, sobretudo durante a pandemia. Em 2021, a quantidade de alunos em modalidade EaD representou 62,8%.
A gestão de um curso com um corpo docente adoecido e um corpo discente extremamente fragilizado, a apresentar desde ideação suicida a doenças como câncer, fez com que Andrea questionasse o rumo da profissão. Quando mudou de instituição durante a pandemia, Andrea também passou por situações que lhe trouxeram um maior abalo psicológico, principalmente ao não receber o devido apoio da gestão.
“O meu salário começou a reduzir drasticamente sem reduzir a minha carga de trabalho. Começou a não valer mais a pena a responsabilidade de ter que liderar um curso com um corpo docente que visivelmente não estava bem, com alunos que estavam abalados emocionalmente e psicologicamente.”
Além disso, ainda visualizando um aprimoramento da sua carreira académica, Andrea iniciou um doutoramento no exterior. Após sofrer devido a misoginia, decidiu abandonar em prol da sua saúde mental.
“Esse doutorado que no início era para ser um sonho, num determinado momento, se tornou um pesadelo porque não era pela questão financeira, mas pelas questões de vidas lá dentro. No meu caso, eu me via tendo todos os meus processos travados quando eu já estava lá com um determinado orientador, enquanto o aluno homem dele já estava com tudo liberado. Quando eu converso e relato isso para as pessoas, às vezes é difícil de acreditar que você passou por um episódio de misoginia, pelo facto de eu ter sido a única mulher da turma.”
Hoje, Andrea está em preparação para submeter um novo projecto para um programa de doutoramento mais receptivo ao seu campo de actuação. Após as experiências académicas, Andrea percebeu a necessidade de trilhar um caminho que fizesse sentido em relação ao seu amadurecimento como investigadora, para além de, simplesmente, adquirir um título. Muitas das dificuldades vividas por Andrea e por outros académicos vêm da ausência de um espaço acolhedor, de uma mentoria, de uma orientação profissional relacionada com o mercado académico tanto no Brasil quanto no Mundo, para construir um plano de carreira passível de ser realizado. A precariedade financeira, estrutural e psicológica faz com que os corpos discente e docente adoeçam no país.
A busca pela pós-graduação no exterior surge cada vez mais como uma opção frente ao cenário de declínio do incentivo à educação e à investigação, considerando que as universidades particulares apresentam um alto custo de propina concentradas em instituições familiares ou em empresas de capital aberto na bolsa de valores do Brasil, como são os casos da Ânima Educação, Cogna Educação, Cruzeiro do Sul Educacional, Ser Educacional e YDUQS. Estas cinco empresas compõem um conglomerado educacional direcionado para um ensino neoliberal que acompanha políticas económicas e diretrizes do Banco Mundial (BM), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC).
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Nota da Redacção:
1 – Nas cotações actuais, a importância de mil e duzentos reais (R$1200,00) corresponde a cerca de € 228,81 (duzentos e vinte e oito euros e oitenta e um cêntimos). Assim, a conversão de 2100 reais brasileiros (valor reajustado das bolsas de fomento pela CAPES para mestrado) envolve a quantia de 400,39 euros.
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06/11/2023