O reconhecimento do mercado académico e o seu adoecimento no Brasil (2)

 O reconhecimento do mercado académico e o seu adoecimento no Brasil (2)

(colband.net.br)

O acto de fazer pesquisa no Brasil

É chegado o segundo artigo da série (ou dossiê jornalístico) “O reconhecimento do mercado académico e o seu adoecimento no Brasil, em que apresentamos o cenário brasileiro da pós-graduação por meio da consolidação do mercado académico e em que abordamos as questões referentes ao adoecimento do corpo docente e discente no país.

Na peça jornalística anterior foram referidas as dificuldades e os preconceitos enfrentados na constituição de uma carreira académica no Brasil, a evidenciar uma limitação do mercado académico. O perfil feminino do ensino universitário no país, principalmente na pós-graduação e a crise do reconhecimento da pós-graduação stricto sensu como um trabalho investigativo.

(Créditos fotográficos: Law Ho Ming / Getty Images – sicnoticias.pt)

O desconhecimento sobre o que é o ensino académico universitário cresce e, para muitos brasileiros, o ensino académico é percebido apenas como o momento em sala de aula. Como se por um passe de mágica aquele conhecimento partilhado fosse elaborado naquele momento em que a aula se faz. Para estas pessoas, a realidade do trabalho científico e de pesquisa encontra-se distante, ao ponto de sequer perceber a sua presença.

Assim como o seu antecessor, o pilar do ensino e da educação, o pilar da investigação também possui a sua diversidade distribuída em escrita, em revisão e na editoração de artigos e de livros, assim como na escrita e na aplicação de projectos para a disponibilização de verbas, a par do gerenciamento de projectos e de pessoal (recursos humanos), da análise e da interpretação dos dados. Tudo isso acrescido da sua aplicação teórica, da participação em eventos científicos, da escrita científica e da sua publicação, além da disseminação do conhecimento e da aplicação ética do campo de pesquisa. Já o pilar de serviço está, como diz o nome, ao serviço do investigador e dos seus alunos, por meio da participação em exames de qualificação e de defesas académicas, da orientação profissional e, até mesmo, pessoal.

(rigorcientifico.com.br)

Por vezes, o trabalho académico foi percebido de forma tradicional em que o pupilo se dedicava a apre(e)nder os conhecimentos e o ofício do seu mestre, para que posteriormente pudesse substituí-lo. Essa relação directa entre mestre e pupilo é presente até aos dias de hoje. Em algumas instituições de ensino, esta relação encontra-se consolidada ao ponto do pupilo tornar-se um expert nos conhecimentos do seu mestre e pronto para perpetuar aquilo que lhe foi ensinado. O que tem a sua valia, uma vez que se aprende um conhecimento em detalhes e em profundidade. Entretanto, em relação ao desenvolvimento científico, este comportamento apresenta um alto grau endógeno, que pode danificar, a longo prazo, o espaço académico de troca científica e de inovação.

Pois, nenhuma pesquisa académica é feita sem o uso de curiosidade e sem recorrer à criatividade, nem sem atender ao desenvolvimento de um olhar crítico para o objecto e o sujeito de pesquisa. Há que se pensar “fora da caixa”. Entretanto, esta capacidade de conectar, de analisar e de interpretar diversos assuntos pode parecer subestimada pelos vêm de fora do campo e, até mesmo, pelos companheiros de profissão.

Para que haja criatividade na academia, para que se possa pensar “fora da caixa”, é preciso que esta se mantenha em constante e contínuo relacionamento com os diversos tipos de mercados, para além de um contínuo olhar atento às mudanças em redor. A academia analisa a fundo aquilo que emergiu na sociedade e na Natureza, seja qual for o tema. Por isso, é um processo lento e longo. Postergar a recompensa e lidar com frustrações faz parte do quotidiano académico.

Mas criatividade? Por onde se começa a fazer valer a criatividade académica? Para a surpresa de muitos, a criatividade académica vem da capacidade de questionamento e da curiosidade presente em cada questão. É fazer valer a criança que habita em cada um e nutri-la. Para alguns, pode parecer simples, no entanto esse questionamento tem raízes na filosofia. O doutor J. Britt Holbrook, professor associado do Departamento de Humanidades no Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, em entrevista ao sinalAberto, explica-nos mais sobre as origens do pensamento científico, como ele o percebe actualmente.

J. Britt Holbrook, professor associado do
Departamento de Humanidades no Instituto de
Tecnologia de Nova Jersey (Department of
Humanities and Social Sciences – New Jersey
Institute of Technology). (centers.njit.edu)

sinalAberto (sA) Ao longo do tempo e da História, o conceito de “ciência” mudou. Como essa mudança impacta a forma em que se percebe a Ciência nos dias de hoje? Como é que a Filosofia contribuiu para o campo da Ciência?

J. Britt Holbrook (JBH) – Eu limito as minhas observações à ciência ocidental, cujas origens remontam aos filósofos da Grécia Antiga do século VI a.C., quando Tales de Mileto deu o passo filosófico, e mais tarde, científico, por excelência, tentando explicar tudo com base num único princípio. “Tudo é água”, afirmou Tales. Embora os filósofos posteriores tenham rejeitado a afirmação de Tales como falsa, substituíram a água pelo ar ou pelo fogo, por exemplo. Seguiram o método reducionista de Tales. “Tudo é Um”, concordaram eles, embora discordassem sobre o que era o “Um”.

Esses filósofos também realizaram um movimento que hoje consideramos essencialmente científico. Para além das suas tendências reducionistas, que os cientistas de hoje também partilham, vemos a importância da falsificabilidade para a ciência. Se somos cientistas, temos de fazer afirmações que podem, em princípio, ser demonstradas como falsas. Tudo é água. Não, tudo é ar. Não, tudo é fogo. O facto de podermos dizer não a tudo isto marca a transição da superstição para a ciência e estimula-nos a procurar a resposta certa.

Tales de Mileto (netmundi.org)

À medida que continuavam a conversa, os filósofos, gradualmente, se tornaram mais metódicos e mais analíticos. Em vez de procurarem a explicação para tudo em termos de uma coisa, reducionismo puro ao estilo de Tales, os filósofos começaram a concentrar-se na procura de explicações para coisas diferentes. Em vez de perguntar “O que é a vida?”, passaram a fazer perguntas como “Qual é a melhor vida para os seres humanos?”.

Embora alguns tenham interpretado esta mudança, normalmente identificada com Sócrates, como favorecendo a ética em detrimento da ciência. Tanto Sócrates quanto Platão e Aristóteles associavam uma boa vida dos seres humanos ao conhecimento. Na verdade, a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles, conclui que a melhor vida para os seres humanos seria a theoria, ou seja, a contemplação das verdades divinas.

(Direitos reservados)

Embora esta invocação do divino possa tentar-nos a examinar a relação entre religião e ciência, a sua pergunta aponta, em vez disso, para uma tensão dentro da própria ciência, entre diferentes campos da ciência, ou o que chamamos hoje de diferentes disciplinas. Deixando então de lado a questão da religião, como deveríamos entender a ideia de diferentes disciplinas científicas? Obviamente, diferentes disciplinas preocupam-se com o avanço do conhecimento em diferentes áreas ou campos do pensamento. Vemos que este tipo de divisão já existia com Aristóteles, que imediatamente também introduziu a ideia de uma hierarquia de conhecimento.

A vida da theoria é o bem maior para os seres humanos, porque busca o conhecimento divino. O conhecimento dos assuntos humanos – política e ética – é de ordem inferior ao conhecimento divino, para Aristóteles, em parte porque não podemos esperar o mesmo grau de exactidão quando se trata de assuntos humanos. Na verdade, os campos da ética e da política deveriam ser organizados em torno da ideia de construir a sociedade para permitir uma vida de contemplação. Aristóteles considerava como ciências inexatas a ética e a política, por serem subservientes à ciência exata da metafísica, que revela as verdades divinas para os filósofos contemplarem. O princípio geral em ação aqui é: tudo o que é valorizado por si mesmo é mais valioso do que tudo o que é valorizado por outra coisa. Visto que a ética e a política só têm valor na medida em que servem para promover a vida de contemplação, são meramente instrumentais. Theoria, por outro lado, é intrinsecamente valiosa.

Representação de Aristóteles ensinando Alexandre, o Grande. (Gravura de Charles Laplante, gravador e ilustrador francês. Esta gravura foi inserida, pela primeira vez, como ilustração no livro, de Louis Figuier, “Vie des savants illustres – Savants de l’antiquité”, tomo 1, Paris, 1866. – pt.wikipedia.org)

Vemos a ideia de uma hierarquia de conhecimento em funcionamento ainda nas universidades de hoje. Primeiro, tendemos a dar mais importância à investigação, definida em termos gerais como o avanço do conhecimento, do que ao ensino. As classificações universitárias colocam sempre as universidades de investigação acima das instituições de ensino superior dedicadas ao ensino, o sintoma mais explícito e descarado do nosso amor pelas hierarquias do conhecimento. Nas universidades, os investigadores são normalmente mais valorizados, mais promovidos e mais remunerados do que os professores.

(ef.com.br)

J. Britt Holbrook explica, rapidamente, sobre o funcionamento do mercado académico nos Estados Unidos da América, bem como a perspectiva do mercado académico e dos próprios alunos quando escolhem os seus cursos.

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JBH – Tornar-se “apenas” um professor nos Estados Unidos, ou seja, estar empregado, apesar do seu doutoramento, numa posição apenas de ensino, sem estabilidade e por vezes não docente, significa fracasso.

Ao desvalorizar o ensino, também desvalorizamos a aprendizagem. O diploma universitário de hoje é visto apenas como uma credencial, uma condição necessária para conseguir um emprego. Do ponto de vista do estudante, as melhores universidades de hoje são aquelas que lhes garantirão o melhor retorno, em mensalidades e taxas, muitas vezes garantidas por meio de empréstimos estudantis que trazem consigo dívidas paralisantes. Ou seja, um emprego bem remunerado. Numa situação como esta, os estudantes veem naturalmente os cursos nas áreas STEM [acrónimo de ScienceTechnologyEngineering e Math] – Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática – como mais atraentes do que os cursos nas áreas de Humanidades, Artes ou, mesmo, Ciências Sociais. Geralmente, é possível conseguir um emprego mais bem remunerado com um diploma de graduação em Engenharia do que com um doutorado em Filosofia, por exemplo.

(© Instituto PROA – linkedin.com)

À luz do radicalismo vivido nos últimos anos, no Mundo e no Brasil, por governos neopopulistas, J. Britt Holbrook ressalta a necessidade de lembrar que a forma como percebemos a ciência, hoje, é um fenómeno relativamente novo, pois a ciência, actualmente, percebe-se como distinta da filosofia.

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JBH – Devemos lembrar, contudo, que a própria ciência, como algo distinto da filosofia, é, sim, um fenómeno relativamente novo. O termo “cientista” foi cunhado por William Whewell, em 1833, para substituir o termo “filósofo natural” e fornecer força retórica à profissionalização da ciência. Os cientistas do século XIX ainda procuravam o conhecimento por si só. Mas encontraram-se sob uma crescente pressão para demonstrar resultados práticos da sua busca pelo conhecimento, a fim de reunir os recursos necessários para continuar as suas investigações. “A plea for Pure Science” (em 1833), de Henry Augustus Rowland, que defendia a alocação de recursos para apoiar a busca do conhecimento científico por si só, caiu em ouvidos surdos, enquanto o inventor Thomas Edison, a quem Rowland chamou de “mero tinker” recebeu grande aclamação e apoio público.

William Whewell, cerca da década de 1860.
(pt.wikipedia.org)

Valorizar a ciência apenas instrumentalmente representa uma inversão da hierarquia original de Aristóteles, mas foi talvez uma reacção compreensível à Revolução Industrial. Em vez de organizar a sociedade para apoiar a vida contemplativa, como defendia Aristóteles, o Ocidente industrializado começou a organizar a sociedade, incluindo o ensino superior, para apoiar a indústria. O capitalismo, tanto como sistema global como enquanto filosofia, reduziu todo o valor ao valor monetário. Hoje, surpreendentemente, identificamos as pessoas como boas na medida em que são ricas.

sAConsiderando a ciência globalmente, como o Dr. Britt Holbrook percebe o impacto das fake news e o crescimento de crenças conservadoras no campo?

JBH – A pós-verdade e as notícias falsas são ferramentas que têm sido exploradas pelos neopopulistas para ganhos políticos e económicos. Utilizo o termo “neopopulista” porque não creio que o termo “conservador” se encaixe. Os chamados conservadores de hoje são bastante radicais.

Ataque ao Capitólio, nos Estados Unidos da América, em 6 de Janeiro de 2021. (Créditos fotográficos: Reuters / Jim Urquhart – dgap.org)

E Britt Holbrook exemplifica o ataque à capital dos Estados Unidos, em 6 de Janeiro de 2021, como um dos actos mais flagrantes do neopopulismo actual.

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JBH – Então, o que está acontecendo aqui? Acho que o que estamos vendo é outra inversão. Em vez de falar a verdade ao poder, os neopopulistas autoritários de hoje procuram dominar outros com a verdade. No entanto, seria um erro, na minha opinião, sugerir que só a ciência pode opor-se às forças da pós-verdade. Isso é verdade por alguns motivos.

Primeiro, na medida em que a ciência é cúmplice na produção e manutenção de um sistema social em que o dinheiro define valor, é, efectivamente, uma ferramenta de opressão social e política. Não estou aqui argumentando contra a ideia de que o dinheiro é bom ou valioso. Mas quando o dinheiro esgota a nossa ideia de bem, quando o que torna algo bom é o retorno monetário do investimento, quando o que torna alguém bom é quanto dinheiro vale, quando confundimos o dinheiro como o fim que todos deveríamos perseguir, em vez de como um mero meio para perseguirmos fins mais dignos, algo está muito errado.

Em segundo lugar, penso que Aristóteles é culpado de nos conduzir no caminho do empobrecimento do conhecimento. Ele cometeu o erro de pensar que já possuía a Verdade, conforme revelada pela ciência da metafísica. Ele cometeu outro erro ao pensar que apenas algumas pessoas podem compreender a Verdade. Ele cometeu mais outro erro ao sugerir que toda a sociedade deveria ser organizada em torno do apoio à vida de contemplação, como se o suposto acesso exclusivo à Verdade justificasse a subjugação de todos os outros. Esta forma de pensar apoia a noção de que o conhecimento justifica o uso do poder para subjugar os outros.

(super.abril.com.br)

Então, qual é a solução? Eu não tenho a certeza. Mas acho que deveríamos começar por colocar o dinheiro no seu devido lugar. É, apenas, um meio para atingir algum outro fim. Que fins devemos perseguir, se esses fins valem o dinheiro e outros factores de produção, quem deve beneficiar-se? E assim por diante… Estas são as questões que todos devemos colocar. Quanto à ciência, acho que precisamos parar de pensar no conhecimento como poder e começar a pensar na aprendizagem como empoderamento, como dizia [Paulo] Freire. Precisamos de recuperar a ideia de que a pesquisa e o ensino devem estar integrados, como apontou [Alexander von] Humboldt. E precisamos de reabilitar as ideias de “liberdade” e de “verdade” para que ninguém se sinta livre para impor a sua Verdade a todos os outros.

(novabrasilfm.com.br)

Faz parte do processo de investigação nutrir a curiosidade inerente aos seres humanos por meio do desejo em saber mais. Não por acaso, estas habilidades estão presentes nos filósofos e nas suas diversas escolas de ensino. O questionamento e a reflexão fazem parte do método de ensino e da aprendizagem entre pupilo e mestre, com o intuito de passar adiante o conhecimento e preparar o pupilo [estudante] para ocupar o seu devido lugar na escola. A criatividade está presente nesta relação entre mestre e pupilo e também na percepção do que é considerado erro. Na gafe, no desvio de pensamento que leva o pupilo a desvirtuar o seu percurso e a traçar uma nova trajetória divergente do seu mestre.

Edgar de Brito Lyra Netto, diretor do departamento de Filosofia,
PUC-Rio. (fil.puc-rio.br)

Por sua vez, o professor doutor Edgar Lyra, director do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), também fala ao sinalAberto sobre a sua trajetória académica. Formado em Engenharia Química pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), começou a trabalhar muito cedo numa refinaria de petróleo, como engenheiro de processo. Apesar de gostar do que fazia, Edgar Lyra não conseguia projectar a sua vida na função em que actuava. O nosso entrevistado diz que o seu percurso até chegar à Filosofia veio a partir do erro, quando decidiu largar a profissão de engenheiro.

Edgar Lyra Netto (puc-rio.academia.edu)

Edgar Lyra Netto (ELN) – Eu comecei a errar. Primeiro, era a ideia de não fazer nada, pensando um pouco na vida, tentando ratificar o meu percurso. A ideia de estar só gastando dinheiro e de não ter receita nenhuma começou a me assombrar. Eu comecei a fazer uns desenhos para vender e as pessoas começaram a comprar. Foi tudo meio inexplicável na vida. Eu comecei a desenhar, comecei a comprar equipamentos, canetas, papéis adequados. Fui para a pintura, aproveitei os meus conhecimentos de química para fazer uma cozinha com óleo de linhaça, com todos esses catalisadores e comecei a pesquisar. Comecei a pesquisar tanto os materiais, a química dos materiais, quanto a História da Arte. E, logo depois, a Filosofia da Arte. Eu cheguei a ter contratos com galerias, tem quadros meus espalhados pelo Brasil. Eu comecei a brigar com as pessoas porque, no fundo, no fundo… a minha veia era muito mais teórica. Eu gostava de discutir a teoria da visualidade da pintura. Um amigo que fazia mestrado nessa época disse que eu precisava de voltar à universidade, que eu não podia ficar “rosnando” para as pessoas.

Edgar Lyra tornou-se um académico, doutor e professor em Filosofia. (nucleodememoria.vrac.puc-rio.br)

O caminho tortuoso, com erros e gafes, levou o engenheiro Edgar Lyra a tornar-se um académico, doutor e professor em Filosofia. A entrada na vida académica veio com muitas questões associadas ao fenómeno do “impostor”, tanto por estar na academia quanto pela mudança do campo de actuação. Um sentimento muito comum para os que percorrem este caminho. Entretanto, diferente do cenário actual referente ao mercado académico, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, ainda era possível, no Brasil, dar aulas e viver minimamente, como bolseiro.

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ELN – Passei bem, em quinto lugar, com bolsa. Foi um mundo novo, de repente, eu despertei para um ecossistema filosófico. Tudo era muito novo. Eu tinha um complexo muito grande, um sentimento de que alguém ia apontar o dedo para mim e dizer: “Olha, pode sair daí, porque a gente já te descobriu! Você não tem graduação em Filosofia!” Eu fiz jus à minha veia de autodidata. Sou autodidata para tudo nessa vida e aí comi com farofa as histórias da Filosofia, tudo o que eu podia, no sentido de superar os meus passivos e acabei ficando. Fiz o doutorado, já comecei a dar aula como auxiliar em pesquisa no final do mestrado. Naquela época, tinha essa possibilidade. Hoje, você não consegue nada sem o doutorado.

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O professor Edgar Lyra complementa ao falar sobre as dificuldades em sustentar uma carreira académica, na situação socioeconómica em que o país vive; e em poder aproveitar os talentos existentes dentro do próprio programa de pós-graduação, para dar-lhes a oportunidade de adquirir experiência lecionando.

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ELN – Eu tenho uma política, agora, de ir absorvendo os meus doutorandos mais talentosos em cursos de especialização e de extensão. A gente prepara, procura identificar as vocações. Tem dado muito certo, como começo de vida, nesses tempos difíceis. As [ciências] Humanas padeceram, no período [de Jair] Bolsonaro, com escassez de vagas. Agora, estamos esperando a recomposição das políticas públicas do MEC [Ministério da Educação].

(Créditos fotográficos: Christian Lue – Unsplash)

A ciência é feita por seres humanos. Com isso, deve-se manter uma continua e constante reflexão sobre os processos considerados científicos e a sua evolução. “O cientista se nutre de bases de dados”, menciona Edgar Lyra. O próprio conceito de “observação científica” alterou-se ao longo dos anos. É preciso ter um arcabouço teórico para interpretar e fazer a prática científica, assim como para apresentar o seu rigor metodológico. O professor Lyra continua a falar sobre a questão da divulgação pública e da problematização do ensino da ciência.

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ELN – Você ensina para a criança que o Sistema Solar tem o Sol no centro e os planetas orbitando, helipticamente, ao redor do Sol. Mas você não ensina como foi que a comunidade científica estabilizou esse modelo. Chega o negacionista e diz: “Por que você acredita nisso?” O leigo responde: “Eu não acredito, isso é ciência.” Só porque você quer. Por que você acredita? Porque o seu professor disse, porque está num livro, porque o livro tem um título de ciência, é isso? Então é mesma coisa que religião. Eu acredito na Bíblia e você acredita na religião. E a maioria das pessoas, à luz do tipo de ensino de ciência que recebeu, não tem como apresentar nenhuma razão pela qual acredita no sistema solar canónico. Porque você olha no céu e não vê nada disso.

Sistema Solar (Créditos de imagem: ESA – Silicon Worlds – sicnoticias.pt)

O professor de Filosofia aponta sobre um problema no ensino de ciência, desde as idades mais tenras, para que possa munir a população de conhecimentos que não serão, posteriormente, problematizados por negacionistas. “A ciência precisa de ser perspectivada em teoria para ser interpretada correctamente”, salienta Edgar Lyra. Muitos filósofos denunciaram o perigo de ensinar a ciência sem se apresentar as respectivas bases teóricas e de torná-la dogmática, a trazer um empobrecimento e a alienação do ensino da própria ciência.

Apesar do aspecto sombrio do cenário educacional e científico no Brasil, Edgar Lyra diz experimentar momentos muitos bons por meio de trabalhos interdisciplinares: participa no Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Tecnologia, no Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio, no Grupo de Ética, Mediação Algorítmica de Processos Sociais (EMAPS), no Grupo de Pesquisa em Engenharia Semiótica (SERG) e representa a PUC-Rio no grupo de trabalho sobre Inteligência Artificial da SACRU (Strategic Alliance of Catholic Research Universities) e leva o campo da Filosofia para inúmeras áreas. Para além disso, o professor Lyra também coordena o projecto de ensino Núcleo de Pesquisa e Reflexão sobre Cultura Digital e Ensino Médio, financiado pela FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), em que se compromete a levar e a ensinar ciência aos jovens da comunidade do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) 303 Ayrton Senna da Silva, na Rocinha. Munidos de conhecimento e de esperança, os docentes do país buscam alternativas para sanar as deficiências encontradas pelo caminho.

O Ciep 303 – Ayrton Senna da Silva, em São Conrado, foi uma das sedes da programação da 5.ª Semana Nacional de Educação Financeira (Enef), em Maio de 2018. (©Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro – Seeduc RJ / facebook.com).

09/11/202

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Roberta Avillez

É jornalista, pesquisadora da área de identidade e imigração brasileira, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Investiga a Identidade da Imigração Jovem Brasileira nos Estados Unidos da América e em Portugal. Foi bolseira no Institute of Latin American Studies, Columbia University, para pesquisar a identidade de brasileiros imigrantes em Nova Iorque. Participou do Projeto de Pesquisa "Narrativas de sofrimento e processos de identificação: risco, compaixão e testemunho", no âmbito dos Laboratórios do IDEA - Programa de Estudos Avançados na linha de Mídia e Mediações Socioculturais na ECO-UFRJ. Colabora no Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM) e no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR)-UFRJ. É também mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, nas áreas de migração, jornalismo e género.

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