O regresso do Carnaval e das máscaras
O Carnaval é uma das minhas festas ou datas de comemoração mais queridas.
Apaixona-me o Carnaval Trapalhão, modesto e inventivo dos carnavais populares transmontanos nos quais se recicla e estão presentes elementos naturais, cortiça, musgo, feteiras, penas, cornos, madeira, espigas de milho ou palha. Diverte-me ver homens “trasvestidos” em mulheres e mulheres em homens, guardando o silêncio para não serem identificados, elemento paradoxal no Carnaval, que se caracteriza, precisamente, pelo oposto: o barulho, o caos, a anarquia e a estridência dos chocalhos.
As origens do Carnaval são remotas e telúricas. É identificado como uma das mais antigas festividades da Humanidade, supondo ter sido iniciado nas saturnais romanas, também estará, de alguma forma, relacionado com as Dionisías gregas e com alguns ritos dedicados a Osíris, o deus egípcio, reencarnado no Dionísio grego ou Baco romano.
Lembro-me dos meus carnavais de infância: o desfile de corsos, as roupas improvisadas por mim e pelo irmão Marcelo e a fuga para a rua, território do ruído, onde imperava o barulho e os estampidos do rebentar de petardos e de outros pequenos artifícios de pólvora.
A primeira máscara da qual me lembro foi uma inventada pela minha mãe. Era eu ainda pequeno e observava-a quando limpava a cara com cremes desmaquilhantes. Colocava uma porção na testa, outras Dionísios grego nas maçãs do rosto e no queixo. E virava-se para mim, subitamente, exclamando: – Bu!…
Eu, inicialmente, assustava-me, mas, com o tempo, passou a ser um jogo. Não sou capaz de estabelecer o momento em que o medo se transformou em gozo, e o gozo em jogo. Era um jogo secreto entre a minha mãe e eu.
O “Bu!…” está na raiz da Bauta (ou Bautta), a mais célebre máscara veneziana1. É uma máscara refinada que inclui – além da própria máscara – chapéu, véu e capa. O quadro “Visita em máscara Bauta”, de Pietro Longhi, é, talvez, a mais representativa das pinturas venezianas da época. Tão famosa como a máscara da peste, máscara que, originalmente, defendia do contágio os médicos e os assistentes. A cidade de Veneza sempre foi, pela sua situação geográfica e pela sua própria estrutura natural e urbanística, um poço de contaminação da qual temos notícias através das crónicas da época2.
Uma das últimas epidemias referenciadas foi uma epidemia de cólera, como recorda o belíssimo filme, de Luchino Visconti, “Morte em Veneza”, baseado na novela “Der Tod in Venedig”, escrita por Thomas Mann e publicada, pela primeira vez, em 1912.
O regresso das máscaras é natural nesta festividade. E, na minha pequena colecção, guardo algumas máscaras compradas nas minhas viagens: miniaturas das máscaras do teatro (tragédia e comédia) compradas em Atenas, bem como máscaras venezianas; também miniaturas em porcelana Sargadelos da Galiza e outras feitas, por mim, para os meus espectáculos. E, uma que, talvez não acreditem, encontrei, por acaso e felizmente, na rampa que dá para a Rua de Azevedo de Albuquerque, no Porto. Quando eu saía da galeria da Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas, enquanto subia, vi um objecto vermelho brilhante no chão. Era uma máscara, em lata, de Trás-os-Montes. Olhei à minha volta, para ver se aquilo pertencia a algum transeunte que a tivesse perdido, há pouco tempo. Ninguém! Acreditei, então, que seria, para mim, um presente profano para eu guardar.
Aquela máscara – assim como outros objectos teatrais – já esteve exposta no Teatro Municipal Rivoli, há quase 25 anos, quando fiz uma exposição sobre os meus 25 anos de teatro em Portugal, para a qual contei com o generoso apoio de muitas pessoas amigas e instituições, a exemplo do Governo Regional da Madeira, da Câmara Municipal do Porto e da Fundação Calouste Gulbenkian, a da minha escola (a ESAP – Escola Superior Artística do Porto) e do Teatro Art´Imagem. Foi uma exposição carinhosamente acolhida por Isabel Alves Costa, então directora artística do Teatro Municipal Rivoli, saudosa amiga e companheira no teatro e no ensino.
Aquela máscara vermelha era uma das que se iria juntar àquela primeira que a minha mãe, com instinto maternal e brincalhão, idealizou para mim. Nessa altura, ela estava muito longe de pensar neste relato e nesta recordação e, sobretudo, no sentido e na importância que as máscaras iriam ter na minha vida futura.
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Notas:
1 – A máscara Bauta (Bautta), personagem Vetu do traje veneziano, consiste na capa preta, o chapéu tricórnio preto e a máscara branca: “Visita em máscara Bauta”, pintura de Pietro Longhi (1702-1785).
2 – A peste assolou Veneza por quase 80 vezes entre o ano de 954 e 1793. Alguns episódios foram mais marcantes dizimando a cidade e matando parte da população. Noutras ocasiões, a repercussão foi um pouco mais leve. Mas, porque a peste sempre fez parte da História da cidade, inclusive dando origem ao termo “quarentena”. A “Sereníssima”, durante séculos, manteve o seu título de “rainha dos mares”, graças a um intenso movimento de navios que transportavam mercadorias de diversas partes do Mundo até ao seu território.
Entre os imprevistos da navegação estavam problemas mecânicos, ataques de piratas e a temida peste, que se dissipava de forma rápida e ameaçadora. Assim, a República teve de criar, então, as leis sanitárias e muitas regras para se proteger. A mais importante delas consistia em isolar por 40 dias marinheiros e cargas suspeitas de contaminação. Era a famosa contumácia que, em Veneziano, era chamada de quarantina, assumindo o nome de quarantena. Sim, o termo “quarentena” foi criado em Veneza.
O isolamento era feito nos lazzaretto, também um termo veneziano. O primeiro lazzaretto foi construído no ano de 1423, numa ilha que acolhia a igreja Santa Maria de Nazareth, daí o nome. Porém, algumas fontes atribuem a denominação a São Lázaro, que era o protector dos leprosos.
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22/02/2024