O renovado padre ruivo de Beatrice
Um peso de chumbo afundava Giulio Santorini no colchão.
Tentou abrir um olho, mas só o conseguiu a um terço, em esforço. Os sinais que lhe chegavam eram confusos, no mínimo. A luz era intensa, embora tivesse o aspeto coado e magoado do fim de tarde, como se iluminasse uma besta esgotada. Tinha, no entanto, a noção de estar a acordar de manhã, o que era estranho.
Entravam pelas frinchas da janela os acordes e cantos sublimes do que era, sem dúvida, a Gloria in re maggiore, há pouco, e o Magnificat in sol minore, agora, desse génio que era Vivaldi, que ele, aos oito anos, pediu ao avô para conhecer pessoalmente, na sua inocência, quando ele os tocava num velho gramofone, que mantinha intacto, apesar dos pés de madeira já terem sinais de bicho.
Ele próprio cuidava dele, com um carinho igual ao que lhe dava.
De facto, não se recordava de ter mergulhado na cama.
Poderia ter sido ontem à noite ou há três dias. Tinha de reconhecer que a bússola do tempo estava avariada. Onde estaria? Aqui há 72 horas ou ali há um dia? O espaço e o tempo eram, para ele, ali, um gigantesco arco-íris onde as noções se perdiam e esvaziavam, dos violetas aos vermelhos, em tropeções pelo mundo, do chão ao sol, que, no entanto, estava ali tão perto, na janela.
O avô tinha-o levado a ver Vivaldi, il Prete Rosso de Maradini e, em dois meses, estavam também a assistir os dois ao concerto completo de Le Quattro Stagioni, pela Orchestra di Padova.
Foram de comboio até lá, 200 quilómetros de sonho, numa manhã fresca de primavera. Ainda hoje se recorda da fantástica mistura de sons, cheiros e cores, a ponto de não saber se ouviu os cheiros e viu os sons, ou vice-versa.
A diferença não tem qualquer sentido, pensou, tentando avivar o olho.
Mas acabou por não forçar e, pelo contrário, só deixou uma pequena frincha, filtrada pelas pestanas.
Bom, os vermelhos ficaram mais intensos, poderia estar no deserto, talvez deitado nas folhas frescas e largas de uma palmeira, num oásis perdido, atravessado por duros tuaregues tisnados, com as casas enfiadas em pequenos bornais, às costas de dromedários.
Glória a Deus nas alturas… Porque só Tu és sagrado… O padre ruivo… A música e os cantos pareciam obra do diabo, de tão sublimes. O diabo devia pensar que todos eram cretinos, para fazer maldades destas.
E paz na terra…
Paz?
Paz, para ele, era o gemido celestial dos violinos, mas que agora se sumia lentamente, como se subissem os himalaias, rumo à pura transcendência das almas no vazio, com o ar mais e mais fino, e os anjos já sem forças para bater as asas e esticar as cordas, que já estavam no limite como os cabos da ponte de Akashi-Kaikyo, que davam a volta ao mundo sete vezes.
Sumiu-se de vez e o tempo parou. O rapaz que tocava os CDs, no prédio ao lado, deve ter deslizado com os anjos pelos tenebrosos declives de Annapurna até à morte.
Pois só Tu és santo, o único Senhor…
Bom, já não estava a pensar, só a tremer de frio, como um homem nu, na rua cheia. Afinal só queria medir o espaço, e saiam-lhe cores. Ou os fotões, e saiam-lhe metros.
Mas que diferença fazia? Qualquer medida era imprecisa. Tanto podia ser o rubro deserto como o gélido mar. O por do sol não era vermelho? E punha-se como? Por vezes numa ilha, que era um oásis do mar, com ouriços e conchas, mas também palmeiras e areia.
Ainda assim, torvado como estava, conseguiu olhar pelo telescópio, uma palhinha que tinha na água da mesa de cabeceira, e ver as duas amigas, Beatrice e Martina, as amigas de sempre, da vida e da morte, a transportá-lo como morto em braços, com um pé a raspar o chão e o longo e negro cabelo enfiado na gola da camisola, para não estorvar.
Tinha pelos vistos 18 anos e ar de Cristo.
Beatrice, ci sei? Che cosa succede?
Olhando para cima, onde lhe pareceu ver a ponta da gigantesca campânula da Duomo do Brunelleschi, parecia estar numa lateral da Via della Canonica, bem no centro de Firenze. Martina vivia aí perto, numa velha mansão transformada em appartamento per ragazze, com um belo jardim nas traseiras, que as estudantes usavam para festas e apanhar sol, sempre que podiam.
Dove siete, cari amici? Dove mi state portando?
As imagens iam e vinham, aos soluços, como num velho projetor de cinema de província, desses que ainda lhes ensinavam o pêndulo mortal da pobre Gelsomina entre o artista de rua Zampanò e o palhaço Il Matto, em La Strada de Fellini, outro grande génio do eterno rinascimento, que não para, não para nunca, apesar de olharmos para o lado, guiado pelas síncopes dos génios que nos empurram para a felicidade louca, louca.
Dove sei, Beatrice? Perché mi torturi?
Por vezes ele, Beatrice e Martina, pegavam no velhinho 2CV e percorriam as pequenas cidades de província, perdidas no campo num raio de 50 km, aos fins de semana, e assim navegavam pelos intricados canais venezianos que todos os bertoluccis, fellinis, viscontis, antonionis e rossellinis foram tecendo, em atos sucessivos de paixão e de amor, que os urbanitas da nova Firenze trocavam agora pelo rapé de Hollywood.
A capital da Galleria dell’Accademia e da Galleria Uffizi, de Michelangelo e Botticelli, de David e da Nascita di Venere, era, hoje, demasiado rica e soberba para lhes revelar as subtilezas do amor platónico e estético entre Aschenbach e Tadzio, da Morte a Venezia de Visconti, que os pragmáticos de hoje não toleram, por inacabadas. Ou que o novo santo ofício não digere, por serem impuras.
Non lasciarmi al cinema I Gigli, Beatrice. Te chiedo tutto, per l’anima degli illuminati.
E lá estava ele, Giulio, ainda sóbrio, com Beatrice atada ao pescoço, a catar-lhe as flores amarelinhas que se desprendiam das tílias. Parecia mordiscar-lhe as orelhas, suavemente, como as aves que alimentam as crias no ninho.
Martina sentava-se nos joelhos, enrodilhando discretamente os dedos de medusa nos caracóis de pelos sob a camisa, entre dois botões. Olhavam uma para a outra e riam-se, como tontos de aldeia que não se importam com o que fazem, enquanto lhe davam um líquido escuro de cor castanha, parecia um nocino, ou seria um brandy barato?, em pequenos goles, essa bebida que até os deuses bebem quando estão em festa.
Basta, tesoro, Martina, non vedi quello che fai?
Lembrava-se agora que gostaria de ter subido ao apartamento, e que queria pedi-lo a Martina, mas que tinha medo que as amigas das amigas não gostassem, e que o pai de Beatrice, que era o diretor da Uffizi, lhe viesse a dizer que não, que ele não podia lá entrar mais, pois podia envergonhar os nus, e o deixasse à porta da vida.
Mas a indecisão não parecia ter encantado as amigas. Fermati, Martina, non vedi quello che fai?
A mãe de Beatrice telefonou-lhe agora mesmo, dove sei stato, ragazzo, non ti vedo da due giorni.
Perché hai saltato la cena?
Ele, Giulio, tinha faltado ao jantar… O jantar era na quinta-feira e devia estar ele, Beatrice e os pais… Olhou para o relógio e viu que estava na cama há pelo menos dois dias. O calendário do relógio não mentia, eram pelo menos dois dias.
Adormeceu novamente e acordou às 8 horas, dizia novamente o relógio. Tinha passado mais meio dia, pelo menos dois dias e meio desde o nocino, segundo parecia.
Sei ancora lì, Beatrice?
Ah, regressava do concerto em Padova, com o avô. Parecia que iam agora acompanhados pelo próprio Vivaldi, o mais solar de todos os compositores, com a sua cabeleira ruiva ao vento.
O avô recomendava-lhe, no tom quente e suave que ainda sentia hoje, apesar de já não o ter, que vivesse sempre a vida, não pelo que não tivesse conseguido viver, mas pelo que sentisse, em cada momento, que deveria viver. Dizia-lhe como faziam as crianças pequenas, que se sentiam encantadas com tudo, porque tudo era novo e elas eram curiosas, e assim viviam uma vida encantada.
Não lhe dava grandes ouvidos, porque os jovens ouvem mal, principalmente quando se trata do futuro, que não entendem bem.
Sim, ainda estou aqui, Giulio. Não no mesmo sítio, mas ainda aqui. Amo-te, Giulio.
Pareceu-lhe que os anjos, que eram imortais, deviam ter conseguido voltar a subir o Annapurna e recuperar o rapaz dos CDs. A Gloria e o Magnificat voltavam novamente, mais suaves, mas mais intensos.
Nós Te abençoamos, nós Te glorificamos…
Teve energia para se levantar e dar os primeiros passos. Pareciam os primeiros da sua vida. Eram certamente pesados e trapalhões, como os primeiros. Olhou-se ao espelho, como os homens normais fazem quando acordam, e mediu forças com os anjos.
Beatrice, o teu pai ainda é o diretor da Uffizi?
Não, amor, mas ele disse-me que deixou instruções para que tu pudesses continuar a visitá-la quando quisesses.
Olhou a janelinha da sua casa de banho, enquanto fazia a barba de dois dias e meio, e via ao longe Beatrice e Martina a encherem um copo grande com nocino, pousado numa mesa traseira, sempre que ele se deixava descair para beijar uma delas.
A bebida era sublime e o líquido subia e descia no copo, como num suplício de tântalo.
Então vamos lá hoje, amor.
Finalmente conseguia despedir-se do avô. Fê-lo com um beijo e um longo abraço, com se fosse o último.
Viu ao longe um oásis, que poderia ser uma pequena ilha perdida no meio do mar, com palmeiras e conchas. Dirigiu-se para lá. Ainda ouviu o avô dizer-lhe, sussurrando ao longe, que não olhasse para o mapa, que chegaria lá.
A luz era amarelada e subtil, como nunca tinha imaginado que fosse, num meio dia de junho.
Beatrice estava lá e correu para ele, logo que dobrou a Piazza della Signoria em direção à Piazza degli Uffizi.
Parecia envolta num arco-íris e escoltada por dois tuaregues, majestosamente sentados em dromedários subterrâneos.
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