O resgate da ancestralidade indígena no Brasil (3)
História e memória como ferramentas de cura da ancestralidade indígena no Brasil
É chegado o terceiro e último artigo da série O resgate da ancestralidade indígena no Brasil, em que se apresenta o cenário brasileiro e os esforços para a reconstrução identitária dos povos e comunidades indígenas como parte integrante do país. Um importante e contínuo trabalho de desconstruir as narrativas coloniais referentes à constituição do Brasil como povo e a sua representação identitária.
Nos artigos anteriores foram apresentadas mudanças na legislação brasileira e no governo brasileiro, assim como a diversidade de tribos indígenas e das línguas faladas no país. A partir do Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode-se recuperar uma parcela considerável da população indígena que não havia sido contabilizada como tal nos censos anteriores. Actualmente, o Brasil apresenta mais de 896 mil indígenas autodeclarados, com uma enorme diversidade étnica e com 305 línguas faladas. O IBGE está a realizar o Censo 2022, durante o corrente mês de Agosto, com adaptações para adquirir mais conhecimento sobre os modos de vida, assim como acerca da cultura e da diversidade dentro dos povos e comunidades indígenas do país.
Parte da reintegração da ancestralidade indígena na cultura brasileira consiste no maior desenvolvimento dos pilares relativos à cultura e à educação. O quotidiano do brasileiro já absorveu a cultura indígena nos usos de palavras incorporadas ao vocabulário do Português, até mesmo com nomes de bairros, de cidades e de estados. Já absorveu também parte da alimentação indígena, como o consumo da mandioca na culinária tradicional brasileira. Mas para além das designações das povoações e dos alimentos, muito disso encontra-se na objectificação da cultura indígena como passível de consumo.
A cultura é vivida, porém, também consumida em museus, em músicas e em viagens terísticas, entre tantas outras atividades. O projecto Amazônia, de Sebastião Salgado, comporta sete anos de trabalho, a envolver-se com doze tribos indígenas com o intuito de apresentar o seu olhar. Este não é o único trabalho sobre os povos indígenas. Pedro Kuperman é fotógrafo e o idealizador da Oficina de Fotografia Ashaninka, realizada com a tribo Ashaninka, no Acre (estado no noroeste do Brasil, na floresta amazônica).
“Eu conheci eles como fotógrafo, pela Osklen, onde eu trabalho e que fez uma parceria com eles muito bacana. Eles, aliás, fazem muita parceria com entidades, com marcas, com quem eles acham interessante [colaborar]. Eles têm a visão de que divulgar a cultura deles sempre da forma correta é bacana… A visão deles é muito interessante em relação à integração com outras culturas não indígenas, porque entendem que a identidade deles fortalece quando você fala sobre a sua cultura e a mostra. Claro, sem apropriação cultural indevida”, declara Pedro Kuperman.
Os Ashaninka são uma tribo indígena localizada na cidade de Marechal Thamaturgo, no estado do Acre. A chegada à cidade dá-se de avião a partir do município Cruzeiro do Sul, de Marechal Thamaturgo sobe-se de barco por três horas para chegar à tribo. Apesar de relativamente isolada, a tribo Ashaninka faz fronteira com o Peru, país de origem dos indígenas e onde muitos parentes ainda se encontram.
A ideia da Oficina de Fotografia Ashaninka surgiu após passar um tempo a trabalhar como fotógrafo na tribo. Conversando com as lideranças, Pedro Kuperman percebeu que eles estavam em busca de um projecto educacional que ensinasse fotografia para que pudessem contar as próprias histórias, com o olhar a partir do indígena Ashaninka. Com isso, o fotógrafo Pedro decidiu realizar um trabalho autoral de fotografia para a tribo. Sendo realizada durante dez à quinze dias por três anos consecutivos – no caso, 2016, 2017 e 2018 –, o projecto de fotografia Ashaninka consiste na capacitação no domínio fotográfico, com o intuito de que a tribo pudesse criar um acervo de imagens e de registros próprios com o olhar do indígena Ashaninka. Esse material tem o propósito de ser usado na educação e na formação cultural dos jovens da tribo, em defesa do seu território, da sua cultura e da comunicação com outras tribos e com o mundo não-indígena.
“Eles recebiam muita gente lá, fotografando. Incluindo, fotógrafos famosíssimos, como Sebastião Salgado. Eles têm o maior respeito por essas pessoas. Mas eles viam que, sempre que [alguém] ia lá fotografar, não conseguia enxergar o que eles enxergam. Não conseguiam ver as coisas da forma deles. Não captavam as coisas que, para eles, são importantes. No final das contas, a gente sempre tem um olhar meio exótico. O que atrai a gente é a cultura do diferente. E quem é de dentro da cultura vai sempre falar de outra forma, aquilo é a vida deles. A forma de eles falarem vai ser outra, é claro”, expressa Pedro Kuperman.
As etapas seguintes seriam as de adquirir parceiros e apoiantes do projecto e de conversar com fotógrafos educadores, como Miguel Chikaoka e João Roberto Ripper, para delinear um curso imersivo e dizendo respeito às culturas e aos povos indígenas. Para além dos apoiantes, o projecto contou com um financiamento, por meio de crowdfunding, que possibilitou a sua realização. Em cada ano, seriam relembrados os conceitos e os trabalhos feitos até àquele momento, com o intuito de fortalecer o conhecimento aprendido e a prática adquirida. Pedro Kuperman conseguiu o apoio do Instituto-E e da Apiwtxa – Associação Ashaninka do Rio Amazônia, bem como da cooperação da Representação da UNESCO no Brasil.
“O Miguel Chikaoka – que é um professor de fotografia de origem paulista, mas que mora no Pará há muitos anos, [sendo] uma referência em fotografia no Brasil e na América Latina – começou a me orientar. Então, a gente montou muito com a orientação dele, [sob] uma metodologia que iria abordar a fotografia nos princípios mais básicos. [Partindo da noção de] como é que a luz se forma na caixa escura [e do] fenómeno físico da luz, [percebendo] como é que a imagem aparece de cabeça para baixo – que também é um fenómeno físico e que acontece naturalmente, independentemente de o homem interferer ou não. Se tiver uma caverna, uma caixa, alguma coisa que permita um furinho, uma câmara escura dentro, a imagem vai se formar invertida. Então, [interessa] proporcionar-lhes essa experiência de como acontece na Natureza. E a partir daí [ficar a saber] como é que você vai chegando a gravar a imagem através de câmaras artesanais”, esclarece Pedro Kuperman, adiantando que são “processos totalmente artesanais, para, passo a passo, chegar às câmaras digitais”. “Esse era o processo. Que eles fossem construindo, usando elementos da cultura deles, matérias e materiais deles. Tentando [organizar] até a forma de trabalhar cada processo junto com eles. [Ou seja,] apresentar o esqueleto e trabalhar junto”, sublinha.
O fotógrafo Pedro Kuperman conta que ter o Miguel Chikaoka como consultor técnico foi importante, pois ele apresentava alguns modelos de tenda-laboratório portátil de fotografia que pudesse dobrar e levar na mala para montar na própria tribo. Havia uma preocupação em criar um ambiente propício para o ensino de fotografia e um cuidado ao descartar os produtos químicos usados na revelação das imagens analógicas. Por conseguinte, todo o lixo foi recolhido em potes e levado com os organizadores, ao retornar do projecto. Também foi importante ter o fotógrafo João Ripper, considerando a longa trajetória de trabalho com as comunidades indígenas.
A Oficina de Fotografia Ashaninka gerou bons resultados. Yara Luiza Piyãnka, também conhecida por Pinhanta, com 18 anos, é uma das jovens Ashaninka que participou no projecto de capacitação fotográfica organizado por Pedro Kuperman. Em entrevista para o sinalAberto, Yara Pinhanta conta como foi a sua experiência ao participar na Oficina de Fotografia Ashaninka e como a capacitação a tornou responsável pelas atividades internas e externas da comunidade, com o registro do quotidiano da tribo:
sinalAberto – Como foi para você participar de um projecto de ensino de fotografia?
Yara Pinhanta – Bom, primeiro, foi uma experiência muito boa. Eu já tinha interesse na fotografia, só não sabia o que era. Com a Oficina, aprendi muita coisa que carrego comigo. Um aprendizado muito grande e vou carregá-lo para o resto da minha vida. A minha dificuldade foi com a comunicação, eu era muito tímida e era bem distante das pessoas. Com a oficina, aprendi muita coisa e aprendi a dialogar mais com as pessoas através da fotografia.
sA – O que você costuma fotografar e como diferencia o seu olhar do olhar de fotógrafos que não fazem parte da comunidade?
YP – Bom, a diferença é que eu tô ali na comunidade e sei como as coisas funcionam, [bem como] o significado de cada coisa que tem lá, seja pessoa, casa, animal, objectos ou paisagem… O valor de cada coisa, a história que nossos ancestrais nos deixaram para cuidarmos e preservarmos. Então, o meu olhar é esse.
sA – O que você gostaria de mostrar às pessoas com as suas fotos?
YP – Eu gostaria que elas entendessem mais sobre o nosso povo [e que] conhecessem mais sobre a nossa história e sobre os costumes de cada pessoa que é lá, da aldeia. Não de uma pessoa de fora que vai só uma vez e tira a foto e divulga. Espero que elas [as fotos] façam essa diferença.
sA – O que deseja para o seu futuro e para o futuro da sua comunidade?
YP – Bom, o meu sonho é ser fotojornalista e poder ajudar a comunidade através da comunicação, da sabedoria, do costume e da tradição do meu povo. Mostrar para o mundo a importância de manter os povos indígenas em suas terras e florestas, com animais, água e vida. Na minha visão, busco coisas interessantes, [na intenção de] mostrar a cultura. Isso é o que a comunidade está querendo hoje: mostrar a sua cultura, a sua arte, a sua identidade. Busco não somente a beleza, eu procuro a beleza da cultura nos mínimos detalhes que o povo tem. E isso ajuda muito a comunidade, porque ajuda a divulgar tanto os seus trabalhos como também a combater o preconceito.
Yara Pinhanta foi selecionada, em Abril de 2022, como uma das bolsistas (ou bolseiras) da segunda edição dos “Guardiões da Amazônia” (sublinhando a importância do grupo ativista de indígenas da Amazônia brasileira que colocam as suas vidas em risco ao protegerem a floresta amazônica da destruição), organizada pela Casa NINJA Amazônia (centro digital que mobiliza colaboradores para uma rede de suporte permanente da Amazônia, promovendo uma programação contínua de rodas de conversa, workshops, encontros, reuniões e campanhas voltadas para as agendas de combate aos retrocessos ambientais) e pela Mídia NINJA, em parceria com o Comité Chico Mendes (é uma articulação de movimentos e de militantes criada logo após o assassinato do ativista ambiental Chico Mendes).
A actuação indígena em atividades culturais expandiu-se para os mais diversos ambientes, como o da curadoria de exposições. Em parceria com museólogos e antropólogos, a comunidade indígena é chamada a dialogar e a fazer a curadoria de exposições com temáticas indígenas, dando a conhecer uma perspectiva única e mais i nclusiva, em comparação com a perspectiva do ser exótico.
A actuação cultural indígena também ocorre dentro do sistema educacional brasileiro por meio da mudança de paradigma, ao apresentar o período colonial pela visão dos povos indígenas e ao ofertar o ensino das línguas indígenas. Hoje, a educação brasileira é dividida entre campo e cidade – pelo que concerne ao campo, a educação rural, indígena, quilombola e em assentamento.
A professora Suzana Cavalheiro, da Universidade Federal do Pampa, explica que a educação indígena, diferenciada, intercultural e bilíngue foi pensada pelos povos indígenas e para os povos indígenas, a evidenciar algumas variações quando comparada com a educação da cidade: “Então, o currículo acaba sendo praticamente o mesmo. Hoje, as escolas do campo têm essa discussão que considera em alguns lugares do país que esse campo é indígena. Vai considerar as questões territoriais e identitárias; e, em alguma medida, vai ter de considerar as questões linguísticas. Mas tem, paralelamente a isso, as escolas indígenas que vão considerar a educação intercultural e bilíngue. Esse modelo de educação intercultural e bilíngue parece que vai se adequar mais às populações indígenas que mantêm uma lingua própria, porque muitos povos indígenas, no Brasil, não possuem mais a sua língua – eles falam o Português. Os Karipuna falam um Francês crioulo, o patoá francês.”
De acordo com a Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas do Amapá, o estado acrescido do norte do Pará abriga nove etnias, 10.065 indígenas localizados na região Oiapoque. Entre essas etnias, os Karipuna e Gabili Manrworno falam o Francês crioulo. Suzana Cavalheiro explica que as escolas do campo focam saberes que possam ser aplicados no próprio campo, a estimular o trabalho local por meio do conhecimento específico das necessidades: “As escolas do campo, considerando essa parcela de campo indígena, têm, sim, um movimento para pensar o currículo diferente. Para pensar a extensão do currículo de ciência e tecnologia para esse campo, que não seja só ciência e tecnologia do agronegócio, das máquinas, das colheitadeiras, dos tratores fechados. Que seja alguma coisa que contribua para a agricultura de pequena escala, para a produção de alimentos para a subsistência, geração de renda e fortalecimento de cadeias curtas de economia nesses lugares. Eu acho que o ensino por área vem muito desse sentido. Ao invés de a gente pensar o ensino por disciplinas, pode-se pensar por áreas. Aqui, no meu trabalho, eu dou um curso de educação no campo, numa licenciatura que forma para a área das ciências da Natureza, ainda que, quando saiam daqui, eles vão trabalhar com ciências no ensino fundamental e ainda vão trabalhar com química, física e biologia, no ensino médio. O currículo ainda é disciplinar.”
Ana Luiza Lacerda (pesquisadora e doutoranda do programa de educação da Universidade de Toronto) explica sobre a importância do ensino de História como ferramenta para estabelecer o resgate da identidade indígena no país: “Lá no Ceará, eles lançaram um currículo novo, em 2020, em que eu fiz uma análise rápida do currículo de História. A diferença desse currículo para o anterior é gigantesca. Uma das palavras que mais aparece, finalmente, é indígena. Eles têm diversas unidades falando sobre os indígenas do Ceará. Então, assim, é um acordar que está acontecendo.”
É importante contar a história do país pela perspectiva dos povos originários como parte integrante da constituição tanto histórica quanto identitária do povo brasileiro. O ensino e a instrução sobre quem são os povos indígenas ocorre nas mais diversas formas. Aline Rochedo é guarani, formada em História e ativista indígena, publicou livros sobre poemas com temática indígena e livros infantis bilíngues que pudessem passar a cultura e identidade indígenas para todos. Busca apresentar as questões indígenas por meio da educação e da instrução de adultos e de crianças. Além disso, os jovens têm obtido cada vez mais visibilidade, ao apresentarem os seus quotidianos, culturas e questões nas redes sociais. Fazem uso do Instagram como plataforma para divulgar as suas expressões artísticas e questões políticas. Como é o caso da Ana Patte, indígena do povo Xokleng, em Santa Catarina. Ana Patte é co-fundadora da organização ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade) e integrante da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
A recuperação da História e da memória é, apenas, o início de uma longa jornada de cura e de recuperação identitária da ancestralidade indígena no Brasil. Um trabalho que requer a actuação de todos os povos e comunidades, bem como de todos os brasileiros e estrangeiros.
08/08/2022