O senhor António

 O senhor António

(Créditos fotográficos: Arquivo Tony Dias/Global Imagens – jn.pt)

O senhor António sou eu, nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), no centro de saúde do meu bairro e nos privados (também eles, hoje, formigueiros de gente), todas as vezes (e são tantas) que a idade me obrigou e obriga a recorrer aos serviços que ali me prestam.

“Senhor António” é assim que sou chamado e tratado. “Senhor António” chega perfeitamente, dito com simplicidade, umas vezes mais, outras vezes menos atenciosamente, mas tudo bem. O tratamento da lesão ou da enfermidade é o que mais importa. E é de justiça dizer que é sempre bom; algumas vezes, muito bom.

A exposição do corpo às mais diversas enfermidades não olha à condição sociocultural de quem necessita de recorrer a uma destas, perdoe-se-me a expressão, “oficinas especializadas na reparação da saúde de pessoas”. É para reparações deste tipo que os mais abastados acedem às clínicas privadas, enquanto os mais necessitados esperam horas nas urgências dos hospitais do SNS. Porém, diga-se, em abono da verdade, que, uma vez lá dentro, nada lhes falta. A partir do momento em que se despe a roupa pessoal e se veste aquela “camisa” de hospital, só há senhores Antónios. E eu sou testemunha disso, por ter estado internado, umas quatro vezes, em outros tantos hospitais, quer do SNS quer do sector privado.

(healthnews.pt)

Todos sabemos que, via de regra, o doente é uma pessoa fragilizada, física e psicologicamente. Precisa que lhe cuidem do corpo e, quanto a isso, não há nada a dizer. Todavia, também precisa (tantas vezes, muito) de amparo e de conforto para a alma. Tendo em conta, apenas, a minha experiência pessoal, constato que, com pouquíssimas excepções, que sempre as há, os médicos e as médicas que me têm assistido trataram-me não como uma pessoa inteira, de corpo e alma, a necessitar de ajuda, mas, sim, somente como um corpo material, a pedir tratamento. Executam, e bem, essa a parte que lhes diz respeito, como profissionais. Tal como um amolador de rua amola uma faca ou uma tesoura. Pouco ou nada lhes interesso como pessoa. Não têm tempo nem disponibilidade para mais. Para esses, estou em crer que nem chego a ser um senhor António.

Aquando dos internamentos (continuo a falar da minha experiência pessoal), diz a enfermeira: – Senhor António, o Senhor Doutor já vem falar consigo!

As mais das vezes, a gente espera, espera, e as horas custam a passar. Por fim, como a luz por que almejamos, lá nos aparece o clínico de serviço nesse dia. Olha para algo que está escrito numa informação pendurada aos pés da cama, pergunta ou diz qualquer coisa e, se for preciso, palpa, ausculta, manda abrir a boca e mostrar a língua; e, dois ou três minutos depois, desaparece e nunca mais ninguém o vê. E é assim todos os dias. É verdade que tem vários doentes a assistir e que não pode dedicar muito tempo a cada um. Mas poderia, perfeitamente, passar duas, três ou mais vezes por todos eles. E dar-lhes uma palavra ou um simples sinal de encorajamento, tão importantes para quem sofre e julga ver, no médico, o conforto para o seu sofrimento ou, mesmo, a esperança para a sua salvação.

(semmais.pt)

Em duas ou três vezes que perguntei a um médico, numa das várias especialidades a que recorro, sobre esta dor aqui ou acerca daquele incómodo ali, obtive por resposta, clara e imediata, algo como: – Marque consulta para o colega da especialidade.

Longe de mim dizer que o doente é maltratado. Pelo contrário, já o disse, nada lhe falta. Contudo, apenas, insisto em dizer, no que se refere ao tratamento do corpo. A versão de 2017 do juramento médico (ou do Juramento de Hipócrates), creio que actualmente usada em Portugal, diz, num dos seus preceitos: “A saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações.” Quanto às do corpo tenho a certeza de que sim, mas as do bem-estar emocional deixam muito a desejar. O acamado na enfermaria ou, ainda pior, no quarto individual, além dos males físicos, sofre horas de doloroso isolamento.

(Créditos fotográficos: National Cancer Institute – Unsplash)

No seu trabalho diário, os enfermeiros e as enfermeiras, assim como os técnicos e auxiliares cumprem tudo aquilo que lhes compete. Uns mais e outros menos carinhosamente, mas cumprem e bem. É justo dizer que são, apenas, estes e estas que lidam connosco e se aproximam de nós, não tantas vezes quantas desejamos. No entanto, diga-se, as necessárias. São, sobretudo, estes profissionais, pela sua própria natureza, que nos prestam algum refrigério.

O desconforto de uma noite inteira, no silêncio e na semiobscuridade de uma enfermaria ou de um quarto, é sempre bruscamente interrompido, pela manhã, quando ligam as luzes e se ouvem as suas vozes frequentemente impessoais, mas sempre encorajadoras: – Bom dia, senhor António!

(Créditos fotográficos: Fernando Fontes/Global Imagens – tsf.pt)

Por agora, estou muito bem de saúde, ao nível a que se pode estar na minha idade, graças, repito, ao facto de o tratamento das minhas enfermidades ter sido sempre bom. Algumas vezes, muito bom. E, aqui, devo acrescentar, graças também aos prodigiosos avanços científicos e tecnológicos na área da saúde, sem esquecer os do domínio farmacêutico.

E é por isso que estou vivo e que pude observar por dentro, nestes últimos cerca de vinte anos, uma muito pequena amostragem dos nossos serviços de saúde (cinco hospitais públicos, dois centros de saúde e três hospitais privados), aproveitando para acrescentar que, ainda assim, uma vez dentro, prefiro o serviço dos hospitais do SNS.

A mercantilização do acto médico é, em teoria, reprovada pelo Código de Ética Médica. Todavia, na prática, ela existe nos hospitais privados, com administrações e accionistas naturalmente interessados no lucro.

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Nota:

Talvez exagere esta minha apreciação de alguns elementos da classe médica, mas a verdade é que, por infortúnio meu, ela reflecte um sentimento bem interiorizado das muitas vezes que senti o que acabo de relatar. Uma delas, mesmo, de declarada deselegância (num hospital privado, refira-se), para usar uma palavra mais suave.

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04/12/2023

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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