O silêncio das mulheres no século XX
Em Portugal, durante a maior parte do século XX, as mulheres eram silenciosas e foram silenciadas. E esse silêncio resultava diretamente da subalternidade, da repressão, da ignorância e da miséria sexual em que muitas delas viviam.
O tema é bem conhecido e não há a menor dúvida de que a Revolução dos Cravos, há 49 anos, desencadeou uma profunda mudança nos papéis sexuais e uma clara melhoria da autonomia e da liberdade das mulheres portuguesas.
Ao começar esta viagem sobre o silêncio, irei citar testemunhos de mulheres, vozes vivas que recordam uma realidade que nos parece agora impossível e que foi recolhida, entre outros autores, pela investigação de Cecília Barreira, de Irene Flunser Pimentel e de Isabel Freire. Irei falar da minha própria vivência, uma vez que tinha 20 anos no 25 de Abril, e, sobretudo, da minha experiência como sexologista durante os anos 90 do século XX.
As consultas que realizei na Maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra, permitiram-me observar, em primeira mão, de que modo as leis não-ditas do comportamento social, nomeadamente a chamada “supremacia masculina”, o conhecido “duplo padrão de moral sexual”, provocavam infelicidade, não apenas nas mulheres, mas igualmente nos homens.
Voltando ao silêncio das mulheres, deixem-me contar-vos uma das histórias mais impressionantes que ouvi nessa consulta. Uma mulher de cerca de trinta anos, rural, acompanhada pelo marido, começou a consulta dizendo: “Senhora doutora, estou aqui porque não consigo ter excitação sexual. Acontece que, aos 15 anos, fui violada pelo meu avô, num descampado.”
Da história, vim a saber que ela nunca relatou o facto a ninguém e que viveu em silêncio total esta experiência. Apenas falou disso ao marido, que a apoiou o melhor que soube. Depois de alguns anos de infelicidade nesta área, recorreram à consulta. Devo dizer que o resultado da intervenção terapêutica foi feliz, devido à coragem e ao empenho de ambos. Mas a frase “fui violada pelo meu avô, num descampado”, nunca mais a esqueci, nem do tom tranquilo com que ela falou do assunto.
Choca-me a violência deste incesto, mas, sobretudo, o silêncio absoluto e auto-imposto, característico da vítima que se culpabiliza, que rodeou esta mulher nascida nos anos 60 do século XX: “Só contei ao meu marido e, agora, aqui.”
Nesta consulta de Sexologia – e em todas as minhas outras consultas, quer como interna de medicina quer como psiquiatra –, tive a ocasião de testemunhar esta cultura de silêncio em tudo o que dizia respeito à vivência do sexo. Foram inúmeros os problemas de desejo nas mulheres de todas as idades e os casos de dispareunia da mulher, ou seja, dor na relação sexual. Ao apurar as possíveis causas, era visível a ignorância total da anatomia, da fisiologia e da cognição sexual femininas – isto por parte de ambos os sexos. As mulheres desconheciam o seu corpo e temiam o desejo e os homens desconheciam quer a simples fisiologia, quer o universo emocional da excitação sexual.
Por outras palavras, a diabolização do sexo na cultura de então era tão eficaz que o tema era impronunciável nas famílias, rodeando-se de um absoluto silêncio. Mesmo algo tão poderoso como o instinto sexual era travado, não só pelo medo e até repulsa instilados pela matriz social e religiosa, como pelo sentimento negativo, muitas vezes não-consciente, de uma enorme desigualdade. As mulheres eram vistas e viam-se a si mesmas como seres de segunda classe. E tudo isso inibia a sua expressão sexual – porque não há maior censura do que aquela que vem de dentro.
Esta cortina de silêncio e de repressão sexual que se viveu nos primeiros três quartos do século passado, em Portugal, não deve, a meu ver, ser simplisticamente imputada aos homens, às mulheres, à religião católica ou ao regime político em vigor. Ela resulta de muito mais do que isso: da espessura de todo o tecido social em que os universos feminino e masculino estão imbrincados, onde germinam crenças rígidas e injustas que têm atrás de si a força de milénios.
Ana Hatherly, poeta, que nasceu em 1929 e morreu em 2015, diz-nos: “Levei décadas a aperceber-me de que grande parte do meu sofrimento existencial tinha origem na educação que recebera… o sofrimento da mulher na família e na sociedade está relacionado com o grau de independência e afirmação que lhe é concedido. […] o que eu quis foi ser uma pessoa, ser eu própria. Tive de pagar um alto preço por esta minha singularidade.”
No século XX houve três momentos-chave que produziram mudanças políticas decisivas em Portugal: a Implantação da República, em 1910, a revolução de 28 de Maio de 1926, que deu início à ditadura salazarista, e o 25 de Abril de 1974. A primeira, embora imbuída de ideais próximos da Revolução Francesa, o famoso lema ou divisa “Fraternité, Égalité et Liberté”, trouxe consigo um profundo sentimento anticlerical e anti-religioso, mas nenhuma “égalité” para as mulheres. Estas não tiveram direito de voto, por exemplo, e as tentativas para mudar esse estado de coisas foram criticadas e achincalhadas. Continuou a vigorar a realidade da mulher submissa, procriadora, sem direito a prazer sexual e excluída socialmente, se se atrevia a ir contra a norma.
O Estado Novo, se deu o voto às mulheres em 1933, nessa mesma década apertou ainda mais o torno ao proibir o casamento às telefonistas, às profissionais do Ministério dos Negócios Estrangeiras, às hospedeiras do ar e às enfermeiras – e só no início dos anos 60 foram levantadas estas proibições. As próprias professoras do ensino primário tinham de solicitar especial autorização ao Ministério da Educação Nacional para casar. Nenhuma mulher podia ser juíza nem diplomata, nem até de sair para o estrangeiro sem autorização do marido.
Dou agora a palavra à cantora e fadista Amália Rodrigues: “Quando casei pela primeira vez (1940) encontrava-me tão vestida na noite de núpcias que o meu marido me perguntou pelo guarda-chuva.”
Também a imprensa, nomeadamente as revistas femininas conservadoras, moldava a imagem desejável das mulheres (In Menina e Moça, 1959 – revista publicada pela Mocidade Portuguesa Feminina): “A mulher não foi criada para ser advogada, médica ou engenheira. Foi criada para ser esposa e mãe.”
Este paradigma – a mulher passiva, assexuada, ignorante, obediente, crescendo num gineceu doméstico cujas paredes eram feitas de silêncio, rodeada de homens cujo androceu é a rua e o café, é descrito pela professora universitária e historiadora Miriam Halpern Pereira, ao falar da década de 50 em Portugal: “A separação entre rapazes e raparigas gerava uma excitação sexual que se exprimia de forma degradante. Juntavam-se turbas de rapazes à saída dos liceus femininos em dichotes obscenos.”
Eu própria recordo, nos anos 60, essas saídas do liceu e a distância de 100 metros a que deveriam estar esses cachos de rapazes excitados, o assédio grosseiro dos homens em plena rua, a proibição de usar calças compridas, os cabos do mar vigiando e multando os biquínis nas praias. Recordo-me de ler: “A mulher ideal de 1968 deveria ter três qualidades imprescindíveis: – saber dirigir o lar; possuir cultura (nada de sabichonas, isso pode ser mesmo o contrário da ‘mulher ideal’); e habilidade culinária.”
A cantora e atriz Simone de Oliveira comenta: “Minhas queridas, o marido ajudar na lida da casa? Isso dava para rir! O marido era o senhor, o tal, uma espécie de ‘dono da verdade’… a mulher ficava em casa.”
De facto, os papéis sexuais espartilhavam ambos o sexos: o homem devia ser o chefe, o provedor da família, o decisor inflexível, exigente e pouco demonstrativo, para quem os trabalhos domésticos eram degradantes. A mulher devia ser dedicada, obediente, doce, emocionalmente frágil, e, portanto, talhada para a maternidade e para a lida da casa.
Sobre o prazer sexual das mulheres, diz-nos a escritora Maria Velho da Costa, em 1971: “Coisas que toda a gente sabe não eram faladas. Nós éramos capazes de discutir violência sexual até, mas não essas coisas. Era um tabu inconsciente. Nem mesmo a Teresa (Horta), muito audaciosa, falava disso.
O tabu era tão profundo que nem ocorria. O orgasmo não fazia parte da nossa linguagem. Essa palavra não existia no nosso discurso.”
Não existia, habitualmente, nenhuma informação sobre anatomia e fisiologia sexual, nem acerca da menstruação, da masturbação e das relações sexuais. Nada de nada. Apenas se dizia “que os rapazes eram maus”, e havia todo um policiamento feroz que nos parece, agora, inimaginável. Tudo “parecia mal” e, por exemplo, as mulheres não podiam ir sozinhas a um café. O silêncio e a ignorância não existiam apenas na família, mas também na escola e até na faculdade de Medicina. A sexualidade não constava dos curricula. Ao fazer ações de formação de Educação Sexual a professores liceais e a médicos na década de 90, eram visíveis o embaraço e a desinformação do público-alvo.
O 25 de Abril, para além do evidente impacto político, foi um verdadeiro terramoto das relações de poder até aí intocadas. Como em todas as revoluções que põem termo a ditaduras, houve um imenso alívio, uma explosão de cólera contra as injustiças cometidas, mas, principalmente, vontade de mudança. A “democracia” era uma palavra para ser levada a sério. E, de repente, tudo podia ser – e foi – posto em causa –, nomeadamente qualquer relação hierárquica. De facto, todas as profissões em que existia um vínculo de poder viram abalado o seu prestígio. Também isso aconteceu nas relações entre homens e mulheres. Tornou-se mais difícil aos homens conservarem o seu estatuto de intocáveis, de senhores e de mandadores.
Claro que não foi só esta nova liberdade que provocou a mudança entre os sexos… A evolução dos costumes já se vinha processando desde o final dos anos 60, com os movimentos contestatários em todo o Mundo, nomeadamente o movimento hippie nos Estados Unidos da América (EUA), o Maio de 68 em França, a existência da pílula (a síntese da progesterona foi feita no final dos anos 40, e a pílula introduzida na Europa e nos EUA no início dos anos 60), o surgimento em Portugal da Associação para o Planeamento da Família (em 1967), o crescente acesso das mulheres ao ensino universitário e, sobretudo, a sua independência financeira.
Mas foi só após o 25 de Abril que aparecerem as consultas de Sexologia nos hospitais centrais – no ano de 1975, em Coimbra. Em 1976, o médico Albino Aroso criou as consultas gratuitas de Planeamento Familiar nos centros de saúde, o que constituiu um enorme passo para a autonomia sexual das mulheres. E só em 2007 é que foi legalizada a interrupção voluntária da gravidez.
Há três fatores que me parecem importantes em toda esta mudança. Primeiro, a consciência, por parte das mulheres, de um novo equilíbrio de poder entre os sexos. Segundo, o desaparecimento da censura, nomeadamente sexual, e a profusão de nudez feminina que invadiu tudo, principalmente capas de revistas e de livros – lembro-me que qualquer livro de bolso, fosse qual fosse o seu conteúdo, trazia uma mulher nua na capa. E, embora isso fosse revelador do velho duplo padrão, foi ainda assim um avanço. Um terceiro fator que diariamente estava presente nas casas da maior parte dos portugueses foi a transmissão das telenovelas brasileiras, trazendo de súbito à luz a existência assumida do sexo, os beijos, as relações sexuais fora do casamento, o desejo feminino, a liberdade de escolha, as separações e os divórcios, tudo coisas impensáveis de serem ditas até então. Aquilo que era completamente escandaloso nos anos 60 passou a ser aceitável e banal uma década depois.
Claro que o 25 de Abril não foi uma panaceia que suprimisse as dificuldades sexuais das mulheres. Para a geração que era jovem na altura, criou um desfasamento, ao incentivar as mulheres a serem mais afirmativas e a contestarem a alegada supremacia dos seus parceiros, enquanto estes, educados numa cultura fortemente machista, continuavam agarrados aos seus preconceitos. Toda uma geração foi triturada nesta armadilha de conflitos de poder entre homens e mulheres.
E, se bem que a alteração de poderes fosse inexorável, ela não foi, nem é, repentina ou sequer homogénea. Comecei a exercer medicina em 1977, e continuei a ouvir, da parte de mulheres rurais, o velho eufemismo “quando o meu marido se serve de mim”. Continuei a ouvir queixas de jovens nascidas após o 25 de Abril, cuja educação religiosa as impedia de se excitarem sexualmente, mesmo quando isso já era permitido, ou seja, após o casamento. Ou a ouvir, na década de 90, a maior parte dos alunos das escolas dizendo que não se falava de sexo na família.
Casos esporádicos dizem-nos que ainda há muito a fazer. Em 2014, os juízes do Supremo Tribunal Administrativo alegaram que a mulher vítima de negligência médica (com lesão do nervo pudendo) e, assim, incapacitada de sentir excitação sexual, “já tinha 50 anos e dois filhos”. Isto é, “uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança.” (Público, edição de 9 de abril de 2015).
A verdade é que o sexo fugiu do cerrado controlo religioso e até civil e passou a ser algo eminentemente privado. E esse espantoso avanço deveu-se, não tenho a menor dúvida, à nova liberdade que o 25 de Abril veio permitir a todos os níveis, e que possibilitou que as mulheres se reconstruíssem a si mesmas, no seu papel e na sua sexualidade, com esforço e com coragem.
Estando, agora, dentro da esfera do privado, a sexualidade é regulada pelos valores, já não da sociedade, mas do casal. No entanto, queiramos ou não, a influência social continua a fazer-se sentir e a noção de superioridade masculina ainda não desapareceu.
Um outro fenómeno emerge, denunciado recentemente pelos media, inclusive com campanhas de alerta na TV: o da violência, física e moral, dentro do namoro.
Até que ponto a excessiva permissividade na educação das crianças (na família e na escola), a ausência de regras e de limites, a quase deificação da criança, não estão a construir uma geração violenta, sem valores cívicos, cujos comportamentos terão grave repercussão na sexualidade das mulheres?
É algo a que deveremos estar atentos, como cidadãos. Além disso, as desigualdades ainda subsistem, embora de modo muito mais velado. Mas não nos esqueçamos que, apenas numa geração, se dissipou grande parte da distorção brutal e silenciosa que pesava sobre a sociedade portuguesa, em especial sobre as mulheres.
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30/10/2023