O sustento oculto nas sombras da economia paralela

 O sustento oculto nas sombras da economia paralela

Cerca de 100 pessoas juntaram-se para dançar noite fora no centro de Lisboa, em plena pandemia. A festa passou completamente despercebida às autoridades e à maior parte dos lisboetas.

Ficaram sem o sustento com a chegada da pandemia e a solução mais próxima carece de legitimidade. Desde vender percebes e choco frito, até criar uma rede de festas clandestinas, foram várias as maneiras de alguns contornarem a crise pública que atingiu a sociedade. Alguns enfrentaram as ondas e rochedos, outros abriram as pistas de dança até de madrugada. Em tempos de cólera, existem atividades paralelas que movem a engrenagem invisível da economia sem lei.

O traficante com olho para o negócio

A chegada de um vírus que não deixa ninguém indiferente roubou o sustento a muitos e a criatividade não faltou na hora de procurar rendimentos. A. (nome fictício) tem 30 anos e bebe um chá, enquanto conta as peripécias que tem vivido após o início da pandemia. Remexe nos cigarros nervosamente e olha em redor, procurando fumadores, para que possa pedir o isqueiro emprestado. Trabalhava no ramo imobiliário com o pai, mas tudo isso se desvaneceu com o vírus. Conta que a venda de estupefacientes disparou com a pandemia, assim como o consumo e os preços. “Acho que as pessoas não têm nada para fazer em casa, por isso consomem mais. Eu próprio voltei a fumar com a pandemia” confessa.

Ao verificar a crescente procura por drogas, uma coisa levou à outra e decidiu começar a vender marijuana para subsistir. Devido à descriminalização deste tipo de substância em Portugal “pode-se transportar várias gramas para consumo próprio e eu mantenho-me dentro dos níveis da lei”, conta o jovem. Fica-se pelo tráfico de marijuana por representar um menor risco e por considerar tudo o resto “dinheiro sujo”. “A erva é plantada, a cocaína é importada e morreu muita gente até cá chegar”, diz convicto, reforçando que não envereda por esses caminhos.

Não tem medo da polícia, mas arrisca pouco e não é ganancioso. “É muito aliciante escalar para outras drogas, todos se conhecem e quem arranja uma coisa arranja outras” afirma, sublinhando que é essencial ser cauteloso. Conta ainda que a cocaína é a droga com mais procura. “Quem a quer, quer sempre” afirma, com um toque de experiência própria na voz. A “erva” chegou a inflacionar três vezes o preço original, já a cocaína não se alterou. A. defende que são as altas esferas que assim o permitem, pessoas no poder que consomem e movem o esquema com fios invisíveis. Apesar das aparentes dificuldades de importação que a pandemia acarretou, isso não afetou o tráfico, nem o consumo.

Finalmente avista um fumador. Levanta-se, pede o isqueiro e, por fim, acende o cigarro. Antes da pandemia, A. era DJ horas fora, mas também essa atividade estagnou por completo. Conta que, ainda em 2020, o aniversário de um amigo se aproximava e decidiram organizar uma festa em Julho. Cerca de 100 pessoas compareceram na propriedade em Azeitão e a festa decorreu com poucas preocupações. “A polícia apareceu e mandou-nos desligar tudo, mas assim que foram embora voltámos à festa. Não nos multaram nem nada” conta, prazenteiro. Foi então que viu uma nova oportunidade para conciliar uma das suas paixões com as saudades de dançar.

Economia paralela: a sombra da economia formal

Paulo Pinto, 43, é jornalista no jornal Dinheiro Vivo e considera que se deve, primeiramente, “definir conceitos sobre economia informal, ilegal ou paralela” por ser algo difícil de aclarar. A Economia Paralela (ou não registada) resume-se a qualquer transação económica que não seja contabilizada pelo Estado, seja qual for a razão. Este setor da economia subdivide-se em Economia Subdeclarada, Ilegal, Informal, Subcoberta por deficiências estatísticas e no Autoconsumo. “Eu gosto de lhe chamar economia não observável que depois se subdivide em legal ou ilegal” especifica o jornalista.

“As crises são férteis para a criação de esquemas paralelos” afirma Paulo. Numa altura

como a pandemia, muitos foram os que tiveram de se virar para e economia paralela como forma

de subsistência. Apesar desta pandemia ter afetado todos, as classes com baixos rendimentos, educação, e empregos sazonais são os grupos mais suscetíveis a procurar estas fontes de rendimento alternativas. “São atividades que trazem um rendimento rápido. Criam um oxigénio para as pessoas subsistirem. É dinheiro fácil e as pessoas acabam por ser empurradas para estas atividades, mesmo com os riscos que isso acarreta” declara o jornalista.

O Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), Óscar João Afonso afirma que, apesar de ser cedo para perceber, a dimensão da economia paralela será ainda maior devido à pandemia. “Espera-se que aumente em valor absoluto, mas também em valor relativo, uma vez que o valor do PIB diminuiu. Se o denominador cai, o rácio aumenta”, esclarece, referindo que o cálculo é feito através de uma equação onde a economia não registada corresponde ao numerador, a dividir pelo denominador, que consiste no valor do PIB. O Presidente do OBEGEF salienta que a fatia maior da economia paralela é composta pela “fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais”, por falta de medidas e meios que permitam controlar e punir quem as pratica. “Isto revela que não há vontade política” realça Óscar Afonso.

O último estudo feito por aquele Observatório, em 2015, declarou que a economia paralela valia 27,29% do PIB, o correspondente a 48993 mil milhões de euros. Este valor seria capaz de suportar o orçamento do Ministério da Saúde durante cinco anos. Os estudos revelam uma trajetória crescente para este valor, desde 1970, e o ano de pandemia não foi exceção. “Eu penso que esse valor está subavaliado” declara Óscar Afonso, referindo que são atividades difíceis de observar e medir com exatidão.

Paulo afirma que, para este valor diminuir, é essencial fazer a economia crescer ou criar incentivos que aliciem as pessoas a declarar os rendimentos. “A recuperação (da crise) acabará por acontecer e trazer as pessoas de volta à economia formal. O Estado pode criar condições para que a economia se desenvolva de tal forma que as pessoas não caiam na economia informal ou ilegal” conta. Uma das medidas criadas na pandemia consistiu em oferecer apoios a pessoas que não tivessem descontado no ano anterior, com a condição de se comprometerem a descontar durante 30 meses para a Segurança Social. “Se não houver um Estado paternalista, há pessoas que ficam sem nada. O Estado serve para isto, amparar todos nas crises, como a que estamos a viver” conclui.

Enfrentar o mar e o rochedo para subsistir

João Costa tem 28 anos. É natural do Porto, sempre pescou e fez bodyboard e com 16 anos apanhava percebes para fazer uns trocos. Como reza a expressão, “há mar e mar, há ir e voltar” e, com a pandemia, regressou ao ofício. Depois de dois meses a vender choco frito com um amigo na área de Lisboa, resgatou o fato de mergulho e a espátula e dedicou-se a apanhar percebes nas praias de Sintra. “Se a maré era às 6 da manhã, eu ia” conta João. Depois de seis horas a apanhar percebes, esperavam-no mais seis para os limpar. Ao todo, eram 12 horas dedicadas ao ofício para depois vender os percebes a 15 euros o quilo, a quem o quisesse comprar. Só vendia a amigos e pessoas conhecidas, otimizado pelo “passa-a-palavra”. A procura era tanta que às vezes não tinha “nem metade do que pediam”.

João apanhava vários kilos de percebes por dia, que não chegavam para responder à procura que havia.

É um trabalho sazonal, duro e que requer perícia, pois é “preciso procurar nos sítios certos”. O perigo é maior quando a maré está agitada, o que já provocou “muitas feridas nas mãos, costas e cabeça” de João. A polícia fazia algumas visitas à zona que o jovem frequentava. “Quando víamos a polícia íamos para debaixo de água até irem embora, para não levarmos uma multa” relata o jovem, entre risos. Conta que é praticamente impossível obter a licença de mariscador em Lisboa, “só com uma nota de 200 euros debaixo do formulário”. Fazia o que podia.

O setor da cultura foi um dos mais afetados com a pandemia, com quebras na ordem dos 31% na União Europeia, segundo um relatório da consultora Ernst and Young. João trabalhava numa agência de artistas e produção de eventos e a pandemia fez com que o seu trabalho parasse por completo. “Não havia preparação possível para um cenário destes” afirma, com o pesar de quem se viu subitamente desempregado. Apesar de João trabalhar a recibos verdes, estava confortável com o que recebia e considerava a remuneração justa. Conta que, derivado da sazonalidade, no inverno não há tantos eventos como no resto do ano. “Estrategicamente não passei recibos nos primeiros meses de 2020” relata. Os apoios foram dados aos trabalhadores independentes consoante o seu rendimento nos últimos três meses de atividade antes da pandemia e João ficou completamente desamparado. Apesar de ter descontado mais de uma dezena de milhares de euros no ano de 2019, recebeu um apoio de apenas 98 euros por mês. “Não há justiça neste processo”, afirma veemente. Hoje, trabalha num call center e dá os primeiros passos com a sua empresa de entrega de comida para cozinhar. Não tenciona voltar a trabalhar no setor dos eventos devido à grande carga horária e por não conseguir planear a sua vida a longo prazo.

“Os apoios foram sendo corrigidos ao longo dos meses por não atenderem às necessidades reais dos vários setores” afirma Paulo Pinto, sem descurar que “o regime foi criado de forma cega, sem ter em conta muitos trabalhadores, como os do setor da cultura”.

O dever da resistência

“Eu considero um dever cívico o que nós e os outros resistentes fazemos” proclama A., com o orgulho de quem organizou inúmeros eventos durante a pandemia. “Nunca tinha organizado nenhuma festa, mas vou continuar, sem dúvida” afirma agora, 12 festas depois. Refere que estes eventos requerem um grande planeamento e organização, desde os convidados até ao local. “É preciso que nos aceitem no local e fazer ensaios nos dias anteriores para verificar o barulho”, confirma, justificando todo o cuidado para evitar a polícia. A PSP e GNR encerrou 120 festas ilegais entre Janeiro e Abril de 2021, algumas com a presença de centenas de pessoas, segundo dados enviados à agência Lusa. As festas organizadas por A. não se encontram neste grupo.

Ao início, só cobravam aos convidados o suficiente para cobrir as despesas do sistema de som. Aos poucos, começaram a pedir mais dinheiro à entrada e chegaram até a incluir serviço de bar nos eventos. O entusiasmo falou mais alto e as festas passaram a ser cada vez maiores, tendo chegado a acontecer um festival de três dias numa propriedade privada no Alto Alentejo, durante o verão. Passou a haver toda uma logística e equipa para organizar as festas, desde técnicos de som e DJ’s até barmen. Com o passar do tempo, as festas começaram a render. “Inicialmente nunca o fizemos pelo dinheiro. Quisemos dar a oportunidade aos amigos que trabalhavam neste setor e que estavam parados”. E, claro, pelas saudades de dançar.

Quanto à escolha de convidados, só poderão comparecer a convite de pessoas que sejam da confiança da organização. Há todo um processo de seleção para evitarem serem descobertos. Quando a música começa, as portas fecham-se e os corpos soltam-se. Os convidados só podem sair quando a festa terminar, com a alvorada do dia seguinte. Durante o evento, qualquer publicação nas redes sociais é expressamente proibida. Só é permitido dançar. “Sou

completamente contra tirarem-nos direitos. É por isso que temos de dançar, para abrir a mente e para nos revoltarmos” diz. “A cultura estimula o pensamento. O Governo não quer um povo que pense, que seja informado. Nós não deixamos esta cultura morrer”, declara com o orgulho de quem carrega e declara as convicções que leva ao peito.

As festas requeriam uma organização laboriosa para que se assemelhassem a verdadeiras discotecas, um cenário já distante da pré-pandemia.

A sua maior festa foi na passagem de ano. Compareceram mais de 100 pessoas e teve lugar num antigo cinema dos anos 80, em pleno centro de Lisboa. Conseguiram permissão para utilizar o local com a justificação de serem estudantes de cinema que precisavam de fazer filmagens para um projeto da universidade, em que teriam de encenar uma festa. “Até tínhamos um documento falsificado de uma faculdade e uma folha de encargos com as funções de cada um (realizador, cameraman, etc)” relata, entre risos. As pesadas portas do local impediram que a música se ouvisse, e a festa decorreu no âmago cosmopolita até de madrugada, totalmente despercebida. A face de A. espelha tudo, menos culpa. “Nunca tivemos nenhum caso de COVID-19, mas também não tivemos cuidados” afirma, dizendo que nunca houve preocupações com o uso de máscara, gel desinfetante ou distanciamento. “Baseamo-nos na consciência de cada um”.

Sem medo do vírus, A. esclarece prontamente: “Eu não sou negacionista, mas o sentimento de culpa que impõem às pessoas é descabido”. Conta que há todo um negócio em redor das festas ilegais e que há pessoas a lucrar muito. Algumas são descobertas, mas a maioria acontece debaixo dos narizes de todos. “Todas as semanas há mais do que uma festa em Lisboa, algumas com centenas de pessoas” conta. Há muitos bares que abrem “à porta fechada”, depois das horas de encerramento, e continuam pela noite dentro. Agora, A. procura licenças para poder organizar festas dentro da legalidade.

João sempre trabalhou neste setor, pelo que não faltaram convites para festas clandestinas durante a pandemia. “A maior parte dos meus amigos é DJ e eu não fui a nenhuma festa. O empresário defende que “devemos ter um papel ativo” e “pensar no bem comum”. “Não é concebível fazer festas na passagem de ano para 500 pessoas, é uma irresponsabilidade” declara, com alguma revolta. Quanto à possibilidade de denunciar as pessoas que organizavam as festas, como foi visto nas redes sociais, reprime veemente: “Os direitos fazem-se dentro de casa. Prefiro influenciar o meu circuito fechado de amigos do que fazer essas manifestações” diz. Considera que quem trabalha no setor não pode compactuar com estas situações. “É uma questão de não nos acharmos acima da lei” conclui.

Com ou sem apoios, os marginais seguem neste reflexo escondido da economia formal, que se revela cada vez maior. Um mundo paralelo onde quem escolhe entrar se rege pelas leis de ninguém, mas onde a subsistência parece prosperar, à falta de solução melhor. Parece que em tempos de pandemia, quem tem olho é rei.

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Leonor Wicke

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