O XXIV Governo Constitucional

 O XXIV Governo Constitucional

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deu posse aos Secretários de Estado do XXIV Governo, numa cerimónia que decorreu, a 5 de Abril de 2024, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. (portugal.gov.pt)

1 – Que dizer deste governo? Que é de direita. E dito isto, estaria tudo dito. Mas, como em tudo na vida, há sempre mais alguma coisa para dizer. E talvez o mais importante que haja para dizer é que, nos sete meses que medeiam para a apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2025, o governo tudo fará para dar tudo a todos: saúde, forças policiais, educação, forças armadas, salários e pensões. Enfim, vão ser conselhos de ministros para passar cheques. Depois, logo se vê. E se a oposição, lá para Dezembro, reprovar o OE, o argumentário é certo e sabido que será: “Vêm, não nos querem deixar trabalhar!”

(portugal.gov.pt)

O problema é que os governos não são eleitos para passarem cheques. São eleitos para governarem. E governar é, antes de tudo, saber o que falta fazer. O que, no caso português, são dois problemas: a desigualdade e a sua principal consequência, a pobreza. Bastam dois números para termos a noção de como socialmente estamos: um rico para 10 pobres. É esta a distância ou proporção. E um milhão e 700 mil pobres, já depois de distribuídos todos os apoios sociais. Poderá dizer-se que não vai ser em sete meses que se encontrará a solução para esta calamidade. De acordo, mas basta um mês para ficarmos a saber quais vão ser as medidas que serão postas em prática para atacar estes problemas; e para começar, de facto, a pô-las em prática.

Se o governo se diz reformista, venham daí essas reformas. A começar pela diminuição das desigualdades, que não são só salariais. São também na saúde, no emprego, na justiça, na habitação e no ensino. Nestes sete meses, se bem aproveitados, depois da assinatura dos cheques, sobra tempo para começar a trabalhar nas áreas em que há tanto para fazer, de maneira a concretizar “a justiça social”, enquanto lema da governação. E não nos venham dizer que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Pode. Para isso é que há ministros, secretários de Estado, directores-gerais e um “exército” de funcionários para fazerem esse trabalho. Portanto, Senhor Primeiro-Ministro, a partir de 2 de Abril, começou a contar o tempo!

2 Ipsis verbis, o primeiro-ministro afirmou, na sua tomada de posse, que iria “implementar uma reforma estrutural que fortaleça e preserve o SNS [Serviço Nacional de Saúde] como a base do sistema, mas que aproveite a capacidade instalada nos se[c]tores social e privado, sem complexos ideológicos inúteis e com uma única preocupação: o cidadão”. Como as palavras têm significado, a expressão-chave desta passagem do discurso é «SNS como base do sistema», daí para cima, é tudo privado, seja social ou não.

O primeiro-ministro, Luís Montenegro, na tomada de posse do
XXIV Governo Constitucional. (portugal.gov.pt)

Como é sabido, os governos de direita sempre cobiçaram a parte do orçamento que é transferido para o SNS. E, quando falam de reformas estruturais, estão a utilizar um eufemismo para quererem dizer que tem de se comprar mais serviços ao sector privado. Analisando a conta satélite do SNS, de 2017, a última disponibilizada pelo Instituto Nacional de Estatística, verifica-se que a despesa, nesse ano, foi de 17456492 euros. Destes, 37,5% correspondem a compras de cuidados de saúde ao sector privado. Se lhe juntarmos a despesa que o SNS paga às farmácias privadas (2536047 euros), teremos, então, 52% da despesa do SNS que vai directamente para esse sector. Ou seja, já mais de metade da despesa do SNS vai directamente para a conta desse sector. Sabendo-se que a titularidade da venda de produtos farmacêuticas se manterá privada, a reforma estrutural de que fala o primeiro-ministro é a de aumentar os 37,5% que já saem do orçamento do SNS. Portanto, do que se irá tratar, eventualmente com o mesmo orçamento de que dispõe, é transferir, para as grandes empresas, a prestação de cuidados de saúde, quiçá, até chegar aos 50%. Nesse caso, teríamos, então, realizado o projecto de Sistema de Saúde com que tanto sonham: 1/3 público e 2/3 privado. 

3 – O que de mais relevante aconteceu, na noite de 26 de Março de 2024, não terão sido as três tentativas para se encontrar o deputado que iria presidir à mesa da Assembleia da República. No dia seguinte, 27 de Março, Dia Mundial do Teatro, o enredo foi retocado e o deputado António Filipe lá conseguiu concluir a tarefa para que fora nomeado pelos seus pares. O primeiro acontecimento a sublinhar foi a pulsão da Aliança Democrática (AD) para se entender com a extrema-direita. Diriam os de antanho que lhes está na massa do sangue. Porém, alguém deve ter notado que esse sinal lhe seria fatal, dado os efeitos que iria ter no discurso da oposição e na margem de manobra política do governo. Daí, o terem dado o dito por não dito, seguindo-se o que se viu. Nem outra coisa se poderia esperar. O segundo acontecimento – porventura, mais importante – foi o entendimento entre as quatro “esquerdas”. 90 foi, sempre, o número de deputados que votaram de acordo com a lógica política do acontecimento.

O presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, na Reunião​ Plenária de 27 de Março de 2024. (parlamento.pt)

Começando desta maneira, não deixa de ser auspicioso, para a esquerda, o ciclo político que se iniciou em 10 de Março. O assunto para a convergência prestava-se a isso. No entanto, não terão sido necessárias grandes conversas, nem papel assinado, para terem chegado a uma sintonia. Viu-se, aliás, as televisões fixaram o momento: Pedro Nuno Santos e Paulo Raimundo a conversar, cada um sentado na sua cadeira da Assembleia da República. Presume-se que não estavam a combinar onde iriam cear, a seguir à terceira e inconclusiva ronda de votações. Contundo, não deixou de haver quem prenunciasse dificuldades inultrapassáveis na relação entre o Partido Comunista Português e o Partido Socialista, comiserando as primeiras declarações que os comunistas fizeram sobre a invasão da Ucrânia, omitindo que, posteriormente, o actual secretário-geral a condenou publicamente. Portanto, a noite de 26 de Março, não tendo sido de “facas longas”, alguém levou uma facada. Essa foi dada à AD. E a esquerda averbou a primeira vitória.

(cgtp.pt)

Por me ter dedicado, durante alguns meses, ao assunto das desigualdades sociais, surpreendi-me quando apareceram as primeiras justificações sobre o crescimento eleitoral do partido Chega. De um para oito, e para 50 deputados, em cinco anos. Isto não aconteceu porque um fenómeno transcendental se abateu sobre o eleitorado português, mas porque existe uma base social de recrutamento para o que sucedeu a 10 de Março. Sendo imanente aos regimes capitalistas a existência de desigualdades, seria surpreendente que essas desigualdades não se manifestassem sob a forma de pobreza. No caso português, em 20 anos (de 2002 a 2022), os governos conseguiram que a taxa de pobreza tivesse passado de 41,3% para 42.5%; e depois das transferências sociais, de 20,4% para 16,4%, no mesmo período. Contas redondas, teremos um milhão e 700 mil pobres que, não sendo sempre os mesmos, constituem, no entanto, um fenómeno estrutural da nossa sociedade.

E é este fenómeno que alimenta todos os populistas de extrema-direita. A História está cheia de exemplos. Não sendo ideológica, esta escolha, no caso português, só pode ser de protesto, por nenhum governo começar a trabalhar para erradicar esta doença social endémica. Diminuir 300 mil pobres em 20 anos, à razão de 15 mil por ano, é irrisório. E tão grave como isso é terem entrado nesta classificação seis mil pessoas, em cada ano, no mesmo período.

Um retrato das desigualdades de rendimentos e da pobreza no país. (ffms.pt)

Coloque-se o combate às desigualdades no topo da agenda política e veremos como a pobreza diminui, e com ela a fonte de recrutamento eleitoral do Chega. Andar às voltas com adereços, procurando o que melhor se adapta para explicar o que está por toda a parte, é caucionarem-se as políticas dominantes. Alguém se pode admirar com aquele resultado eleitoral, quando se ouve apregoar – e os pobres também ouvem –, que o governo teve um excedente orçamental, enquanto a taxa de pobreza se mantém praticamente incólume? Quando os dois principais partidos que têm governado o país, juntos, já não chegam a 60% dos votantes? Mais do que uma preferência pelo Chega, estes resultados foram um severo castigo político a quem nos tem governado.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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08/04/2024

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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