Obesidade e erosão

 Obesidade e erosão

(© Fernando Botero – notimerica.com)

Quando o Partido Socialista (PS) ganhou, folgadamente, as eleições legislativas de janeiro de 2022, não houve um único comentador que recorresse às enfadonhas teorias sobre a erosão do poder, segundo as quais, quem está no governo sofre o “inevitável” desgaste. Pudera, o PS governava ininterruptamente desde novembro de 2015, portanto, há seis anos e dois meses. Como se compreende então que, agora, ao fim de tão pouco tempo, a erosão precoce ocorra com tanta intensidade?

PS vence legislativas com maioria absoluta. (Créditos de imagem: euronews)

Para responder a esta perplexidade, recorro a um conceito da “família da saúde”, que é o de “obesidade”: a força política que alcança a maioria absoluta “senta-se” no poder que acha seu, deixa de “fazer exercício” na negociação de programas e de medidas e torna-se extremamente vulnerável às suas contradições internas e à voracidade das suas numerosas clientelas.

Mas, voltando um pouco atrás, importa perceber que, nas anteriores legislaturas, o PS era o único partido no governo, mas, verdadeiramente, não governava sozinho, vendo-se obrigado a consultas frequentes com os partidos, à sua esquerda, com quem tinha firmado acordos. Esta saudável ginástica era necessária para demonstrar a superior qualidade da governação socialista que corrigia as políticas anteriores da direita, traduzindo-se em muitas medidas favoráveis aos sectores mais carenciados da população.

Resultados finais das eleições legislativas de 2019, em que o PS venceu sem maioria absoluta. (tsf.pt)

Nas legislativas de 2019, não houve erosão, pelo contrário, esse inovador “arco de governação” viu a sua maioria alargar-se de 122 para 139 deputados.

Nas legislativas de janeiro de 2022, após a rutura provocada pela não aprovação do Orçamento de Estado, aritmeticamente o mesmo conjunto tem 131 deputados, mas já não é um conjunto: a obesidade instalou-se e o PS pode, enfim, governar “a partir de casa”. Sobre as causas desta alteração, disse-se já quase tudo. Os efeitos estão à vista. Procuremos, então, raciocinar para o futuro.

O futuro dirá se a “geringonça” foi um breve intervalo lúcido na triste colaboração do PS com as políticas da direita ou se, pelo contrário, há forças dentro do Partido Socialista para retomar o entendimento à esquerda.

Orçamento do Estado para 2022 foi chumbado pelo Parlamento, na generalidade. (rtp.pt)

O tempo escasseia. Grandes conquistas sociais como o Serviço Nacional de Saúde e a educação pública estão presas por arames, carentes de atrair milhares de profissionais, de resolver problemas de instalações, de recuperar a estima dos cidadãos e de refazer uma cultura de serviço público universal. Nas florestas está quase tudo por fazer e a escassez de água atinge, duramente, boa parte do País. Outros dramas sociais sempre adiados, como o da habitação, exigem grande investimento público e a determinação com que foi enfrentada a renovação da ferrovia.

Por outro lado, a direita fareja essas oportunidades de investimento e não é por acaso que cerca, justamente, o Ministério das Infraestruturas. Quer ser ela a fazer os cadernos de encargos e a escolher os adjudicatários.

(flytap.com)

Os próximos meses serão determinantes. Ou o Partido Socialista consegue regressar ao trabalho e à atividade física, suster as hostes e as clientelas e retomar a dinâmica de governação com clareza de propósitos, ou então o País regressará, penosamente, à situação de que saiu em 2015. O que se passar em Espanha vai ter influência, mas é sobretudo aqui, em torno das questões e das políticas concretas, que se jogará o nosso futuro imediato.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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01/06/2023

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Jorge Gouveia Monteiro

Exerceu funções de direcção política no Partido Comunista Português. Foi vereador da Câmara Municipal de Coimbra, entre 1997 e 2009. Ajudou a fundar e a desenvolver múltiplas associações de moradores e culturais, bem como a Associação Grupo Gatos Urbanos. É coordenador da Direcção do Movimento Cidadãos por Coimbra (CpC) e sócio-gerente do bar e espaço cultural Liquidâmbar.

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