“Obscuro desejo” e/ou “O Jogo do Mundo”
Ninguém se ilumina fantasiando figuras de luz, mas tornando consciente sua escuridão. – O mundo não é composto apenas de luz, mas também de trevas; um complementa o outro. Ser capaz de reconhecer as fraquezas ou “sombras” de si mesmo não é sinal de inferioridade, mas, ao contrário, de força. (Carl Jung)
O excerto inicial aparece, citado correctamente como de Carl Jung, na série mexicana (temporada dois) intitulada Obscuro desejo (Deseo oscuro, no original). Independentemente do valor da série, esta recupera dois autores sobre os quais gostava de comentar.
A primeira escritora é Rosario Castellanos, lembrada através dos seus poemas e vida. Rosario Castellanos (1925-1974) é uma poetisa, narradora e autora mexicana. Junto com os outros membros da Geração de 1950 (os poetas que escreveram após a Segunda Guerra Mundial, influenciados por César Vallejo – grande poeta peruano – e outros), foi uma das mais importantes vozes literárias do México, no século XX. Ao longo da sua vida, escreveu eloquentemente sobre questões de opressão cultural e de género, e o seu trabalho tem influenciado a teoria feminista e os estudos culturais.
Partindo da citação inicial, os argumentistas tentaram (?) ilustrar com esta frase um clima sombrio que impera na trama da série que, devido ao êxito da primeira temporada, continuou numa segunda… O outro autor recordado é o argentino Julio Cortázar (1914-1984), através de duas das suas obras, Antologia Pessoal e Rayuela. Esta foi publicada em Portugal, no ano de 2014, inexplicavelmente, 45 anos depois da sua primeira edição em Espanhol!
Cortázar começou a sonhar com esta obra em 1958, a qual foi publicada em 1963. A partir desse momento, mudou a História da Literatura e agitou a vida de centenas de jovens em todo o Mundo, pela sua ambição literária vital e renovadora das ferramentas narrativas.
Rayuela, traduzido à letra, é o infantil “jogo da macaca”, desenhado no chão com giz… É o mundo imaginado, o caminho para o céu, o saltitar ao pé-coxinho, imitando – em mimicry (conceito de Roger Caillois) – um caminho labiríntico de ascensão!
Como escreve Jaime Alazraki (1973), trata-se de “um jogo que na antiguidade era um labirinto no qual se empurrava uma pedra (a alma) para a saída, e que com o cristianismo se simplifica e se torna o desenho de uma basílica: ao atirar a pedra se procura transportar a alma para o céu, para o paraíso, à coroa ou glória, cujo retângulo coincide com o altar-mor da igreja”.
Rayuela é uma obra fundamental na literatura ibero-americana; e o seu autor, poeta, dramaturgo, narrador e romancista é uma das figuras-chave da nossa literatura. Romance escrito para ser lido e construído através da sua leitura, o autor dá-nos a liberdade – naquilo que alguns críticos chamaram de “neofantasia” (como parte mais ampla da proposta canonizada por Franz Kafka) – de poder construir o nosso próprio romance, à medida que avançamos ou recuamos na leitura!
Ao lermos o interessante artigo, da autoria de José Mário Silva, “O Jogo do Mundo (Rayuela)”, publicado em 23 de Agosto de 2014, a propósito do centenário de Julio Cortázar, no âmbito de um dossiê desenvolvido no portal Esquerda.net, recuperamos um texto divulgado no suplemento Actual do semanário Expresso:
“Rayuela, modo de usar
Logo no início do romance Rayuela, finalmente editado em Portugal pela Cavalo de Ferro (com um atraso de quase meio século), Julio Cortázar oferece ao leitor uma “Tábua de orientação” onde explica que o seu livro “é muitos livros”. Os 155 capítulos desta narrativa não-linear podem ser percorridos como se queira: tudo de seguida, aos saltos, do fim para o princípio, aleatoriamente ou até deixando de lado uma parte inteira (há 99 capítulos considerados “prescindíveis” pelo autor). Não apenas por isto, mas também por isto, Rayuela – que se converteu em O Jogo do Mundo na excelente tradução de Alberto Simões – abre a porta a uma experiência literária singular e talvez única, porque a ordem da leitura que escolhermos (uma entre milhares de possibilidades) pode não ter sido escolhida por mais ninguém.”
Entre a vasta obra literária de Cortázar, encontramos um texto dramático, Os Reis. O único que conheço e que se inspira no mito cretense do Minotauro e do labirinto, como regista a página electrónica da Agencia Literaria Carmen Balcells:
Es el primer libro publicado por Cortázar con su verdadero nombre. Se trata de un poema dramático donde el autor propone una curiosa variante del mito del Minotauro: Ariadna no está enamorada de Teseo, sino del monstruo que habita en el centro del laberinto; y lo que pretende es que el Minotauro se escape sirviéndose del famoso hilo que llevará Teseo. Gran conocedor de la estructura cerrada y fatal de los mitos griegos, Cortázar se las ingenia para que la historia tenga igualmente el desenlace conocido: a pesar de las intenciones de su amada, el monstruo elige morir a manos de Teseo. Esta obra de rara belleza logra el prodigio de cumplir con la tradición al tiempo que las trasgrede. Y con su serena y clásica luminosidad ocupa un lugar de excepción dentro de la riquísima obra literaria del gran escritor argentino.
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Quero ainda mostrar-vos dois belos momentos literários para recordar Cortázar.
O primeiro é, por exemplo, este excerto (fragmento do capítulo 93) da sua obra-prima Rayuela:
Pero el amor, esa palabra… Moralista Horacio, temeroso de pasiones sin una razón de aguas hondas, desconcertado y arisco en la ciudad donde el amor se llama con todos los nombres de todas las calles, de todas las casas, de todos los pisos, de todas las habitaciones, de todas las camas, de todos los sueños, de todos los olvidos o los recuerdos. Amor mío, no te quiero por vos ni por mí ni por los dos juntos, no te quiero porque la sangre me llame a quererte, te quiero porque no sos mía, porque estás del otro lado, ahí donde me invitás a saltar y no puedo dar el salto, porque en lo más profundo de la posesión no estás en mí, no te alcanzo, no paso de tu cuerpo, de tu risa, hay horas en que me atormenta que me ames (cómo te gusta usar el verbo amar, con qué cursilería lo vas dejando caer sobre los platos y las sábanas y los autobuses), me atormenta tu amor que no me sirve de puente porque un puente no se sostiene de un solo lado, jamás Wright ni Le Corbusier van a hacer un puente sostenido de un solo lado, y no me mires con esos ojos de pájaro, para vos la operación del amor es tan sencilla, te curarás antes que yo y eso que me querés como yo no te quiero. Claro que te curarás, porque vivís en la salud, después de mí será cualquier otro, eso se cambia como los corpiños.
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O segundo relevante momento está, a meu ver, neste poema de Julio Cortázar, traduzido por Albino M., divulgado no blogue Rua das Pretas:
De Rosario Castellanos, escolho o poema:
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Nota:
(*) O bolero é um ritmo cubano que mistura raízes espanholas com influências locais de vários países hispano-americanos. Apesar de nascer em Cuba, tornou-se também bastante conhecido como canção romântica mexicana.
05/01/2023